NIETZSCHE E LOBATO (1)
Aluizio Alves Filho *
Numa primeira aproximação, de comum entre
Nietzsche e Monteiro Lobato, não há mais do que uma vaga generalidade: trata-se
de autores consagrados, constantemente colocados na ordem do dia. Originalmente
a filosofia de Nietzsche foi divulgada no Brasil através de artigos publicados
por José Veríssimo, em 1902, no Correio
da Manhã. Em 1904, Nietzsche seria objeto de estudos publicados no Almanaque Garnier por Araripe Júnior e
João Ribeiro. Logo em seguida proliferava como moda filosófica. Regressaria ao
estrelato diversas vezes, como está voltando a ocorrer atualmente. Há um surto
de palestras, artigos e livros sobre Nietzsche e é fácil detectar novos
nietzschianos que, citando de cor fragmentos do Assim Falou Zaratustra,
apocalipticamente diagnosticam a morte da ciência. Quanto a Monteiro Lobato,
desde 1918, ano em que vitoriosamente estreou com Urupês, nunca mais deixou de ser citado. Sua literatura infantil
parece resistir à fúria do tempo dos que, teimosamente, insistem em
classificá-la como obsoleta.
Outro paralelo que pode ser feito entre
os dois reside nas discordâncias existentes entre os comentaristas de suas
respectivas obras. Paradoxalmente, Nietzsche tem sido apresentado como um gênio
ou como um louco. Para uns, trata-se de um fecundo crítico da alienação humana,
um anarquista que via a salvação da espécie na transmutação de todos os
valores. Para outros, não passa de um racista, cuja obra constitui um dos
pilares do mito arianista. Há quem pense seus aforismos enigmáticos e
desconexos e há quem os julgue lúcidos e coesos. Existem liberais que detestam
Nietzsche e existem liberais que o adoram. Entre marxistas ou freudianos esta
ambigüidade se mantém. Ora a obra de Nietzsche é interpretada como um discurso
novo, ora como o auge do irracionalismo. Apercebendo-se da polêmica que
causava, Nietzsche escreveu como subtítulo do Assim falou Zaratustra: “Um livro para todos e para ninguém”. E
provocativamente em Ecce homo: “Eu
não sou um ser humano, sou dinamite”.
Como ocorre com Nietzsche, a obra de
Monteiro Lobato tem sido objeto de incongruentes comentários. Os mesmos
aspectos são exaltados ou execrados pelos estudiosos. Sustentam alguns que os
primeiros livros de contos de Monteiro Lobato, publicados antes da célebre
semana de 1922, se caracterizam pelo rompimento com o linguajar parnasiano.
Sustentam outros que estes contos reproduzem o tradicionalismo literário em
voga na segunda década do século. No livro Monteiro
Lobato ou o comunismo para crianças, o padre Salles Brasil condena in totum a obra do autor como perniciosa
e materialista. Em contrapartida, a kardecista Maria José Sette Ribas exalta-o
pelo seu apego a valores espirituais. Há quem acuse Monteiro Lobato de
conservador e há quem o diga revolucionário. Há quem assegure tratar-se de um
provinciano e quem faça o inverso, assegurando-o cosmopolita. Será, como querem
uns, o Jeca Tatu, uma visão elitista do homem rural? Será, como insistem
outros, uma resposta realista ao irrealismo ufanista através do qual o caipira
vinha sendo retratado e vendido nas capitais pela literatura regionalista de um
Cornélio Pires ou Valdomiro Silveira?
De uma coisa não temos dúvida: Monteiro Lobato participou ativamente,
a seu modo, das questões mais candentes do seu tempo. Combateu a ditadura
estadonovista, defendeu princípios democráticos e direitos das minorias.
Denunciou o truste do petróleo e por isso, quase sexagenário e escritor
consagrado, bateu com os costados na casa de detenção. Envolveu-se em campanhas
industrializantes, apostando o que tinha e o que não tinha. Fundou editoras
dando oportunidade a autores nacionais, entre eles Lima Barreto e Oliveira
Vianna. Tentou entupir o país com uma chuva de livros e de idéias. Nasceu rico,
neto de fazendeiro, e morreu vivendo de direitos autorais que lhe rendiam as
únicas terras que lhe restaram, as imaginárias, as do Sítio do Picapau Amarelo.
Mas como conseqüentemente situar a vida e
a obra de um homem que um dia tentou ingressar na Academia Brasileira de
Letras, não conseguindo, e, em outro, virou-lhe as costas, quando as portas
pareciam franqueadas? Como compreender este literato que um dia clama contra o
Jeca e em outro afirma ser ele o que há de melhor no país? Como entender
Monteiro Lobato que após investir contra as tendências modernistas, ao tentar
ridicularizar a pintora Anita Malfatti, tenha rendido loas às esculturas de
Vitor Brecheret, figura de proa do modernismo? Como entender a trajetória de um
homem que teve a coragem de alienar sólido patrimônio da família para aventurar-se
como editor - num país onde pouco se lê e, após falir, reúne forças para vir a
público no afã de capitalizar recursos para montar empresas de ferro e
petróleo, remando de novo contra a maré?
É na tentativa de compreender o
itinerário de Monteiro Lobato, objeto de tantas exegeses contraditórias, que o
exame da relação com o pensamento de Nietzsche ganha relevância. No exame desta
relação, acreditamos, está a chave que possibilita posicioná-lo. Postulamos que
Friedrich Nietzsche exerce influência decisiva e permanente sobre Monteiro
Lobato, questão que, sistematicamente relegada a segundo plano, tem tornado
muito problemático situa-lo objetivamente. Com o intuito de projetar um foco de
luz sobre esta questão, investigaremos, de forma coloquial, a maneira sui generis pela qual o criador do Jeca
Tatu apropriou-se da filosofia nietzschiana e utilizou-a como bússola de sua
atividade literária-prática-política.
Após uma vida mentalmente atribulada,
Nietzsche, ex-professor de Filosofia da Universidade da Basiléia (Alemanha)
falecera tão louco quanto famoso em Weimar, em 1890. Sempre atualizado,
Monteiro Lobato, que importara sua obra da França, em seguidas cartas que, em
1904 envia a Godofredo Rangel, manifestava irrestrita admiração pelo filósofo
alemão. Numa carta chama-o “meu Nietzsche”, em outra comenta: “Considero Nietzsche o maior gênio da
filosofia moderna e o que vai exercer maior influência. Nietzsche é o nosso
primeiro ponto de referência”.
Em 1904, o jovem José Bento Monteiro
Lobato lia com sofreguidão tudo o que lhe caía às mãos. Nestas andanças pelo
mundo das letras, descobrira Nietzsche como descobrira muitos outros.
Entretanto, a nenhum dedicaria palavras tão elogiosas quanto às dedicadas a
ele, nem a Machado de Assis, nem a Camilo Castelo Branco, duas de suas maiores
paixões literárias. Como explicar tal deslumbramento? Sustentamos que Nietzsche
lhe apontou o caminho no momento da ruptura entre sua consciência ingênua e a
formação da crítica.
Em 1941, décadas depois de ter descoberto
Nietzsche, o então renomado escritor, respondendo a enquete “Testamento de uma
geração”, organizada por Edgard Cavalheiro para o Estado de São Paulo, fixou o que significou para ele o contato com
o ex-professor da Basiléia. Recordava que ao abandonar o simplismo das
explicações caseiras passara a fuçar filósofos em busca de uma visão de mundo
mais consistente. Experimentou Augusto Comte, logo se decepcionou. Não estava
no positivismo o que procurava. Quem sabe o organicismo de Herbert Spencer?
Nova decepção. Tentou, pelejou, procurou aqui e ali. Nada. Só encontrava
sistemas rígidos, camisas-de-força, verdades reveladas. Casualmente, folheando
uma brochura de Nietzsche que um colega carregava, leu algumas frases que
chamaram sua atenção. Mergulhou no filósofo alemão e tomou a maior bebedeira
teórica de sua vida. No auge do porre, segredava em carta a Godofredo Rangel: “Da obra de Spencer saímos spencerianos, da
de Kant saímos kantistas, da de Comte saímos comtianos, da de Nietzsche saímos
tremendamente nós mesmos”.
Monteiro Lobato encontrava no
existencialismo de Nietzsche o que febrilmente procurava: o não sistema, a não
rigidez, a ânsia por liberdade. Com Nietzsche, aprendera a escolher, a
desconfiar, a construir autonomamente o seu próprio caminho, alheio ao que os
outros pensassem, pouco se importando com a lógica dos sistemas filosóficos,
com pressões políticas ou com modais escolas literárias. Na enquete de 1941,
esclarece que um dos aforismos de Nietzsche marcou-o profundamente, pondo fim à
crise mental em que se encontrava. “Queres seguir-me? Segue-te”. Nietzsche era
dinamite. Monteiro Lobato também. Ao chocar-se com o louco da Basiléia
explodiu. Foi fiel a si mesmo a vida inteira.
Torna-se muito difícil, - quiçá
impossível - situar os ziguezagues de Monteiro Lobato sem compreender o
encontro que, com pouco mais de vinte anos, ele teve com Nietzsche. Sem
perceber o “segue-te” como essência lobatiana, fica-se às tontas, como tantos
tem ficado, no esforço improfícuo de tentar reduzí-lo, associando-o a movimentos
determinados. O que Monteiro Lobato está fazendo o tempo inteiro é
“lobatizando-se”, ou seja, seguindo-se. Por isso, recomenda ao amigo
correspondente: “Quanto a programa, Rangel, só conheço um que te sirva,
rangeliza-te sempre e cada vez mais”. E em outra missiva que também lhe enviou
em 1904: “Você me pede um conselho e
atrevidamente eu dou o grande conselho: seja você mesmo, porque ou somos nós ou
não somos coisa nenhuma. E para ser si mesmo é preciso um trabalho de mouro e
uma vigilância incessante na defesa, porque tudo conspira para que sejamos
meros números, carneiros de variados rebanhos - os rebanhos políticos,
religiosos ou estéticos. Há no mundo o ódio à exceção - e ser si mesmo é ser
exceção”.
Para os nossos propósitos, perda de tempo
investigar outras prováveis relações entre ambos. O produto do encontro fora a
ruptura (explosão). Nietzsche pegara Monteiro Lobato em estado latente e
devolvera-lhe o chão. Daí para a frente, cada macaco no seu galho.
Nota:
1 - O
texto, originalmente publicado em O Estado de São Paulo, consta como anexo do
livro As metamorfoses do Jeca Tatu: a questão da identidade do brasileiro em
Monteiro Lobato.
Resumo: O artigo tem por propósito explicita a maneira original como Monteiro Lobato operacionalizou aspecto peculiar da filosofia de Nietzsche.
Palavras-chave:
Monteiro Lobato, Friedrich Nietzsche, “Queres seguir-me? Segue-te!”.
*
Aluizio Alves Filho é Mestre em ciência Política pelo IUPERJ, Doutor em
Sociologia pela Flacso/UnB, chefe do Departamento de Ciência Política do
IFCS/UFRJ e professor do programa de Mestrado em Ciência Política da
instituição anteriormente citada.