AS FÁBULAS TAMBÉM SE REPETEM COMO FARSA

 

Clarisse Maia *

 

Mesmo porque as inúmeras dificuldades e fracassos dos despossuídos não podem ser creditados simples e ingenuamente aos azares da sorte. Neste diapasão, os interesses gerais do capital são bem determinados e conspiram para o atendimento de suas demandas.

 

                  Entre tantas que abordam a questão do poder, duas fábulas são sobremaneira fundamentais pelo caráter didático-pedagógico que encerram. Ambas envolvem lobos - uma em interação com um cordeiro e a outra com os três porquinhos - e, a seu modo, nos ensinam que o exercício do poder não está necessariamente ancorado na idéia de justiça ou amparado pela ética.

                  Sabemos que toda a argumentação esgrimida na fábula “O lobo e o cordeiro” – as absurdas acusações do predador e as defesas (precisas, lógicas e fundamentadas) da vítima -, é mero jogo de retórica, pois o agressor já tinha tomado a decisão de atacar, exterminar e tirar proveito do corpo da sua vítima. Cabe observar que a moral da história reside na explicação do uso da força em detrimento da razão e da ética.

No mesmo sentido, em história fabulosa mais recente (A verdadeira história dos três porquinhos [i]), encontramos, como fato recorrente, o exercício da força sendo justificado por um lobo que costura uma argumentação inconsistente, aparentemente inaceitável à luz da razão, mas que nos dá a justa medida de como a versão do poderoso pode ganhar foros de legitimidade. A distorção da realidade e dos fatos está presente no calvário da história da humanidade, bem como as hipocrisias que as fingiram aceitar como verdadeiras.

                  Tal como na fábula, este processo vem se repetindo na história da humanidade, pois que se embasa num enfoque crítico do uso da força de forma indiscriminada, para a consecução de vontades, no caso presente, dos interesses gerais do capitalismo globalizado e da vontade de império de uma nação que se encontra em situação de força incontrastável, não fosse lugar comum a constatação insuspeita de um cidadão norte-americano, responsável e pensador crítico que observa: “O mais poderoso Estado na História proclamou que pretende controlar o mundo pela força, dimensão em que reina supremo. O presidente Bush e seu bando evidentemente acreditam que os meios da violência em suas mãos são tão extraordinários que eles podem dispensar com desprezo qualquer um que esteja em seu caminho”. (Chomsky, 2003: 43).

Está claro e evidente que a postura de força do Estado-potência estabelece uma nova relação no concerto das nações, uma nova relação divorciada da quimera idealizada sob a forma de um mundo também globalizado sob o pacto de leis internacionais com ampla legitimidade e, por conseqüência, com poder de constrangimento sobre todos.

Sem maiores necessidades de uma recorrência a Maquiavel, que é claro a respeito do uso da força nas questões de poder, e ficando no reino das fábulas, devemos observar um fato que é fundamental e inconteste: elas não buscam explicar – nem de forma sub-reptícia – as contradições e os absurdos através de loucuras individuais. Nos casos propostos nas duas fábulas, os lobos não empregam a força injustificada por serem dementes, mas sim pelo fato óbvio de terem o poder e a decisão de usá-lo de acordo com seus objetivos práticos.

Por mais tentados que fiquemos em dar uma explicação patológica para as decisões do governo de George W. Bush, ela se torna insustentável na medida em que detectamos uma complexidade de fatores que não resistem a tamanha simplificação. Sendo doido ou não, as ações do presidente George W. Bush transcendem em muito tal possibilidade.

Podemos observar estas afirmações no exemplo doméstico das decisões aparentemente contraditórias do presidente Lula, enredado numa teia de poder (com a hegemonia do capital financeiro) que o faz tartamudear discursos mudancistas e a perseverar em ações continuístas. Em seu caso, retórica e ação se consubstanciam numa profunda contradição estabelecida entre vontade e realidade. No mote de “manda quem pode e obedece quem tem juízo”, tanto Lula quanto Bush, tomam as decisões ordenadas pelo consenso e em função de constrangimentos de força, e não de acordo com suas consciências e/ou idiossincrasias.

Grosso modo, intuímos que louco – apesar dos conceitos clínicos e de Canghilhem [ii] – é todo aquele que pratica ações desprovidas de sentido, desligadas da “normalidade” e imotivadas. Enfim, numa sociedade patrimonialista, louco é quem rasga dinheiro. Obviamente, não podemos detectar nas ações de Lula ou de Bush, falta de sentido, descompasso com a realidade ou falta de motivação. Talvez os sentidos, realidades e motivos das suas ações não sejam nem expressem ou atendam a um entendimento de justiça ou de ética. Mas aí, são outros quinhentos.

Apesar da estrutura globalizada dos meios de comunicação – na qual a informação jaz sob a tutela de um oligopólio multinacional com objetivos determinados – veicular matérias que colocam em dúvida a sanidade mental do presidente Bush, sabemos que as suas visões e conversas pessoais com Deus em pessoa, não são determinantes para as decisões imperiais empreendidas pelos Estados Unidos. Mais razoável buscarmos as explicações na geopolítica energética imbricada no poder bélico-imperial incontrastável. Mais razoável acreditar-se que:

Bush, Cheney, Rumsfeld e companhia estão, comprometidos com uma ´ambição imperial`, como escreveu John Ikenberry - ´um mundo unipolar no qual os EUA não têm qualquer adversário à altura` e no qual ´nenhum Estado ou coalizão possa desafia-los como líder global, protetor e que age pela força`. A ambição com certeza inclui uma grande expansão do controle sobre os recursos do Golfo Pérsico e bases militares para impor uma forma preferida de ordem na região. (Chomsky, 2003: 43).

                  A questão energética, centrada no petróleo, não suscita dúvidas de que os interesses a serem preservados no Oriente Médio compensam possíveis descompassos entre o capital e a sociedade mundial. Não é por coincidência que o principal livro que trata do assunto, no primeiro parágrafo de sua introdução observa que:

“Neste livro, eu pretendo contar, em termos políticos e humanos, um dos relatos mais estranhos da história contemporânea: como a maior e mais importante indústria do mundo acabou por ser dominada por sete companhias gigantescas; como os governos do Ocidente delegaram grande parte da função diplomática a essas companhias; como o seu controle do petróleo foi pouco a pouco sendo disputado pelos países produtores, até que, em outubro de 1973, ele lhes foi, aparentemente e subitamente, arrancado das mãos. E como, desde então, as sete companhias, ainda os gigantes do mercado mundial se viram lançadas na corda bamba, tentando equilibrar-se entre as demandas dos consumidores de petróleo do Ocidente e sua sociedade com os produtores”. (Sampson, Anthony, 1976: 11).

 

Mais coerente com os rigores da análise seria uma atenção redobrada à geopolítica que envolve o Euro enquanto moeda de confronto (e controle) ao dólar. A valorização exponencial e em curto prazo da moeda européia frente ao dólar, os arranjos de Saddam Hussein (premido pelo embargo) com Estados nacionais da Europa e a escassez de petróleo que vem corroendo os calcanhares da indústria americana. Nesta questão econômica, a constatação mais flagrante pode ser observada no fato de que “Certamente não é nossa uma civilização que sorteia os contratos de reconstrução de um país antes de invadi-lo, subentendendo-se que quanto maior for a destruição mais lucrativos serão os contratos, como também não poderia ser nossa uma civilização que festeja o terrorismo suicida”. (Veríssimo, 2003: 7).

 

Mesmo, para simples argumentação, admitindo-se como fato que o presidente Bush é lelé da cuca, este fato não fundamentaria um projeto consciente e meticuloso de destruir a atual ordem mundial, o que foi projetado e elaborado sob um regime de competência e discrição extremas. Competência, uma vez que conseguiu realizar operações impensáveis até então sem maiores reações, e discrição pelo fato de a comunidade internacional ainda não ter se apercebido de que uma nova e radical ordem mundial está em vigência. Indício deste fato está nas recentes decisões da ONU, que retiram as sanções contra o Iraque e conferem aos EUA controle sobre o petróleo daquele país. Sobre essa possibilidade, Chomsky, em entrevista a David Barsamian [iii] se mostra convicto de que:

Penso que não só a região, mas o mundo em geral interpreta corretamente estes acontecimentos como sendo uma espécie de ensaio fácil para tentar instituir uma regra de utilização da força militar, que foi declarada em termos gerais em Setembro último. Nessa altura, foi elaborada a Estratégia Nacional de Segurança dos Estados Unidos da América, que expunha uma espécie de doutrina nova e invulgarmente extremista sobre a utilização da força no mundo. É difícil não se dar conta de que o rufar dos tambores para a guerra no Iraque coincidiu com isso. Coincidiu também com o desencadear da campanha para o Congresso. Todos estes fatores estão ligados entre si”.

 

Enquanto as sociedades civis mundiais protestam contra o belicismo afrontoso dos EUA, clamando por observância e mesmo obediência às leis internacionais, e alguns Estados nacionais – por razões conjunturais de Estado – questionam a legitimidade de tais atos, estes mesmos atos protestados têm o condão de instaurar uma nova filosofia a ser professada em escala planetária. Assim foi – e assim será? – com relação à atuação itinerante do FMI pelos países pobres do mundo que, por mais criticada, renegada e acusada, hoje encontra consensual abrigo, como coisa inevitável, senão natural. Apesar de não mudar sua pauta de abusos contra os pobres do mundo, as intervenções do FMI hoje são encaradas sem maiores pudores ou estranhamentos até por dirigentes de uma esquerda do calibre do presidente Lula.

                  Afora a retórica indignada, santarrã e (muito das vezes) hipócrita por parte das nações e da própria ONU, o verdadeiro obstáculo a que os EUA tomem as riquezas do mundo na mão grande - sob a camuflagem de um messianismo antiterrorista – talvez resulte de suas próprias ações que, na prática, incrementam reações desesperadas. Sob este aspecto, uma vez que a nova doutrina antiterrorista esconde e aprofunda o alcance da exploração e expropriação de nações, o acirramento do terrorismo se torna previsível, principalmente num cenário onde os EUA detêm um poderio bélico incontrastável.

“Mesmo antes de o governo começar a bater os tambores de guerra, havia muitas advertências de que a aventura dos EUA levaria a uma proliferação das armas de destruição em massa, assim como do terror, por contenção ou vingança. (...) As conseqüências podem ser catastróficas no Iraque e no mundo. Os EUA podem colher um redemoinho de retaliação terrorista – e aproximar-se da possibilidade do armagedon nuclear”. (Chomsky, 2003: 43).

 

                  Em contrapartida, a estratégia americana joga as suas fichas numa Estratégia Nacional de Segurança da qual aflora a legitimação de uma nova ordem, ou seja:

“Quando quer estabelecer uma doutrina, um Estado poderoso tem a capacidade de criar o que se chama uma nova regra. Assim, se a Índia invadir o Paquistão para pôr termo a atrocidades monstruosas, não se trata de uma regra, mas se os Estados Unidos bombardearem a Sérvia por motivos duvidosos, trata-se de uma regra. É isto o poder”. (Chomsky, 2003).

 

                  Uma questão que se dá como vencida é a desigualdade consentida entre Estados que deveriam ser iguais. Qual a justificativa lógica ou legal que permite os EUA e outros países poderosos armazenarem e fabricarem armas de destruição em massa e outros não - como é o caso do Iraque? Com singeleza franciscana, o senso comum entope as seções de cartas com questionamentos do tipo:

“Será que a mãe de ´todas as bombas`, indicada como grande vedete na guerra do Iraque, de grande capacidade destrutiva não poderia ser considerada também uma arma de destruição em massa? E o arsenal de armas nucleares dos EUA? O que a ONU deveria votar é o desarmamento do grande guardião da Humanidade”. (O GLOBO, 2003: 6).

                  Mas é exatamente numa carta de um leitor, Mario Peter Luwisch, que encontramos uma indagação que nos remete ao nó górdio da segurança jurídica sob o aspecto internacional. O leitor observa que todos os signatários do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares receberam o compromisso de que o Conselho de Segurança da ONU garantiria a integridade de qualquer país em caso de ataque e conclui que “Agora, sob a ameaça da invasão do Iraque sem cobertura do Conselho de Segurança, vários países signatários daquele tratado serão forçados a repensar o assunto. É possível que os EUA, a título de acabar com o risco das armas de destruição em massa, estejam iniciando uma nova fase de rearmamento”. (O Globo, 2003:6). Este raciocínio se configura no exemplo da Coréia do Norte, que vem desenvolvendo atitudes de “defesa preventiva”:

“Neste momento, Washington está ensinando ao mundo uma lição muito feia e perigosa: se você quer se defender de nós, é melhor imitar a Coréia do Norte e apresentar uma ameaça militar crível. Do contrário, vamos destruí-lo”. (Chomsky, 2003: 43).

 

                  Enquanto o mundo persiste professando um nostálgico paradigma – no qual prevalecem idealmente os conceitos de soberania dos povos - com a sua nova doutrina de segurança e as suas invasões no Afeganistão e no Iraque, os EUA dão início a uma nova ordem no concerto das nações, na qual o uso da força

É uma espécie de exemplo de agressão de cartilha escolar, cujo objetivo é abrir caminho para mais agressões. Uma vez resolvido o caso fácil, é possível passar aos casos mais difíceis”. (Chomsky, 2003).

 

                  No Brasil, na década de sessenta, era veiculada uma série americana sobre o velho oeste, intitulada Paladino do Oeste, estrelada por Richard Boone, na qual o bordão de todos os episódios era o mocinho apresentar o seu cartão de visitas no qual estava escrito: “tenho revólver, posso viajar”. Isso talvez inspire os norte-americanos a abraçarem uma certeza contrário-senso, de que podem viajar por todos os quadrantes do mundo, mesmo os mais violentos e embrutecidos pela miséria, com uma certeza improvável que estão em segurança, pelo simples fato de serem norte-americanos ou por saberem, a exemplo do Paladino, que têm o revólver.

Da mesma forma, ou no mesmo sentido, devemos olhar com olhos menos complacentes para o desenho animado He-man, no qual o bordão do mocinho, o príncipe Adam, é: – Eu tenho a força! Nestes episódios - nada exemplares - a estrutura narrativa se repete ad infinitum: as coisas vão se complicando até o momento em que o mocinho (um pacato e ingênuo príncipe) se vê na contingência de sacar da sua espada e se transformar naquele que resolve rapidamente a situação pela força.

Sobre este aspecto, fica a incógnita, nunca bem explicada, sobre as decisões sancionadas pela ONU, nas quais alguns poucos países estão liberados para desenvolver quaisquer tipos de armamentos enquanto uma maioria de nações (de segunda classe?) sofrem restrições severas quanto ao desenvolvimento de artefatos bélicos.

“E quanto ao próximo passo, podemos pensar em várias possibilidades. Uma delas é, na realidade, a região andina. Os EUA têm agora bases e forças militares em toda a região. Tanto a Colômbia como a Venezuela, em especial a Venezuela, são grandes produtores de petróleo, e há mais petróleo noutros países, como por exemplo, o Equador e mesmo o Brasil. Sim, uma das possibilidades é que, logo que a denominada regra esteja instituída e aceita, o próximo passo na campanha das guerras preventivas seja continuar nesta região”. (Chomsky, 2003).

 

Analisando as recentes ações norte-americanas no cenário internacional, Chomsky [iv] se mostra convicto que elas são coerentes com uma tentativa de imposição de uma nova regra e que Para instituir uma nova regra, tem de se fazer algo nesse sentido. E a forma mais fácil consiste em selecionar um alvo completamente indefeso, que possa ser totalmente esmagado pela força militar mais massiva da história humana. Todavia, para o fazer de forma credível, pelo menos para a própria população, é necessário assustar as pessoas”.(Chomsky, 2003). Tendo-se em vista os antecedentes da história, a imposição dessa “nova regra” – a guerra preventiva que “nem sequer começa a ter qualquer base no direito internacional” – tem os ingredientes repetitivos das tentativas frustradas de Bonaparte (código napoleônico) e Adolfo (espaço vital) e nos traz os ecos e a advertência de que “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. (Marx, 1988: 7).

 

Por estas e outras é que devemos entender que as barbas servem, além de elemento de composição estética, para serem cofiadas e principalmente para ficarem de molho.

 

 

Referências bibliográficas

 

CHOMSKY, Noam. “Argumentos contra uma guerra no Iraque”. Rio de Janeiro: O Globo, 16/03/03.

CHOMSKY, Noam. Ambição imperial. In Entrevista a David Barsamian, disponível em http://resistir.info, 2003.

Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte.(Col. Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1988.

SAMPSON, Anthony. As sete irmãs. Rio de janeiro: Artenova, 1976.

VERÍSSIMO, Luiz Fernando. “O Chirac, quem diria”. Rio de Janeiro: O Globo, 16/03/2003.



[i]  SCIESZKA, Jon. A Verdadeira Historia dos Três Porquinhos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.

[ii]  Para um maior aprofundamento, ver CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.

[iii]  A presente entrevista teve lugar a 22 de Março de 2003. O original encontra-se em http://www.monthlyreview.org/0503chomsky.htm .A tradução, por HR. encontra-se em http://resistir.info .

[iv]  Noam Chomsky, ativista político, escritor e professor de linguística no Massachusetts Institute of Technology, é autor de numerosas obras e artigos nos meios de comunicação sobre política externa dos EUA, assuntos internacionais e direitos humanos. Os seus livros mais recentes são Power and Terror (Seven Stories Press, 2003 - http://www.sevenstories.com/ ) e Middle East Illusions (Rowman & Littlefield Publishers, 2003 – http://www.rowmanlittlefield.com/ ).

 

Resumo: O presente artigo busca contribuir para a discussão da atual conjuntura internacional, profundamente abalada pelas ações militares dos Estados Unidos da América, confrontando o concerto das nações e o direito internacional.

 

Palavras-chave: Imperialismo, comunidade das nações, política externa, intervenção militar.

 

* A autora é jornalista, escritora e teatróloga.

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