ENCANTO E CAUTELA COM O PT

 

Mércio Gomes *

 

A grande vitória de Luiz Inácio Lula da Silva e do PT nas eleições presidenciais de 2002, bem como o expressivo aumento de sua representação no Executivo e no Legislativo em quase todos os estados da União parecem indicar que o Brasil e o povo brasileiro acharam afinal o partido de esquerda que os possa representar para si e para o mundo. Na história Republicana outros partidos almejaram e lutaram com igual destemor e até maior sacrifício para alcançar o que o PT vem de obter em apenas 22 anos de exercício político. Tempos diferentes, não se duvida, mas tal não é feito inglório, ao contrário, merece o louvor de todos os partidos de esquerda da atualidade, especialmente daqueles que não se coligaram com o PT no primeiro turno, defendendo projetos próprios. O PPS, cujo projeto foi esboçado e apresentado pela candidatura Ciro Gomes, alcançou em certo momento da campanha (30/07 a 20/09) até 30% de intenções de votos, i.e., da empatia imaginária do povo brasileiro, quando Lula estava com 34%. A candidatura Ciro Gomes, entretanto, desmoronou para 12%, enquanto Lula subia até alcançar 46,4% dos votos válidos depositados em 6 de outubro, para, ao final, chegar à marca recorde de 52.793.261 votos, ou 61,3% dos votos válidos, no segundo turno. Ao que indicaram as pesquisas, grande parte dos votos intencionados, mas perdidos, de Ciro Gomes, ainda no primeiro turno, migraram para o PT, e igualmente no segundo turno. Por sua vez, a candidatura Garotinho, abrigada no vetusto PSB, também acenou ao povo brasileiro um laivo de opção de esquerda, embora fortemente temperada com um linguajar salvacionista e um estrepitoso comportamento para-religioso, à moda americana de evangelização. Seus votos se dividiram entre Lula e Serra no segundo turno.

De modo que, no cômputo geral e à primeira vista de uma análise política exclusivamente funcionalista e quantitativa, em cima do eixo de representação partidária, o Brasil teria chegado, após oito anos de governo neoliberal, ao seu máximo de esquerdismo: no total, cerca de 75% de votos foram dados a representantes nacionais ditos de esquerda no primeiro turno. No segundo, polarizado entre Lula e o candidato da situação, José Serra, essa porcentagem caiu bastante (61,3%), indicando, ou o reconhecimento de que o candidato Serra não era necessariamente de direita, ou a opção Lula não preenchia a visão de muitos eleitores dos demais candidatos.

Por tudo isso, poder-se-ia perguntar: o Brasil ficou, para o gáudio e felicidade geral dos sonhos nossos utopistas, rouge? Pergunta que deixamos no retórico e resposta que se queda vazia. Seria demasiado pretender discorrer sobre a visão e a atitude política do povo brasileiro e as suas circunstâncias atuais em tão pouco espaço de tempo, e sobre números de votos. Importa aqui a preocupação de analisar o vencedor, o PT, sua formação e sua essencialidade para que possamos reconhecer seu papel na história brasileira recente e para podermos nos situar perante o governo Lula, que se inicia em 2003. O fato de uma outra proposta, a do PPS, ter tocado no imaginário político-cultural de quase um terço da população brasileira nos leva a crer que o povo brasileiro reserva uma cautela ao PT, apesar de o ter consagrado nas urnas. Tal cautela tem sua razão de ser, e este é o sentido das considerações que se seguem.

  Nossa análise político-cultural é fruto de muitos anos de reflexão sobre o formato de ser do PT, sua origem nos estertores da ditadura militar, sua reificação da organização sindicalista, sobretudo de classe média, como meio de veicular sua mensagem e suas atitudes políticas, sua mistificação a-histórica do povo brasileiro, e sua pretensão de ser o legítimo representante do sentimento de brasilidade.

 

I

 

  Há mais de 20 anos o povo brasileiro tem ouvido os discursos e experimentado as práticas políticas do Partido dos Trabalhadores. Auto-intitulando-se o representante de todos que trabalham, por suposto em oposição aos que vivem do capital, o PT ganhou uma aura de legitimidade popular como poucos partidos ou movimentos sociais jamais conseguiram no Brasil. A glorificação em vida de um ex-operário, homem do povo sofrido, migrante nordestino a São Paulo, impoluto e ilibado, só fez consolidar esse carisma. Para este partido, depois de quatro eleições presidenciais, chegou a hora de provar o gosto do pudim. Muita gente vai se aproximar e querer estar junto. Entretanto, um momento de reflexão e cautela não faz mal.

Sejamos diretos: há inúmeros motivos políticos, culturais e filosóficos para não se confiar que o PT é o partido que melhor pode representar os anseios do Brasil e as necessidades de ascensão do povo brasileiro. Em cada estado brasileiro onde esse partido tem visibilidade e posicionamentos políticos definidos, e até naqueles onde ele nunca chegou a se erguer com viabilidade político-eleitoral, despontam marcas de negatividade no seu comportamento político. O PT tem demonstrado ser autocentrado, totalizante, manipulador de eventos políticos, crítico de oportunidade, infirme para com parceiros, internamente divisionista e ilusionista para com os anseios populares. Sua visão político-cultural do Brasil tem como fulcro o ideal pequeno-burguês da classe média urbana, nas suas modalidades sindicalista, radical, moralista e narcísica. Simbolicamente, basta observar as letras de suas canções e vinhetas eleitorais (exemplos, “sem medo de ser feliz” e “é só você querer”) para que isto se evidencie. Politicamente, basta um único exemplo da atuação negativa do PT, no caso em relação ao programa educacional do Rio de Janeiro nos dois governos Brizola (1983-87; e 1991-94) para esclarecer o sentido desse comportamento. Em muitos outros estados exemplos semelhantes podem ser lembrados.

  Em 1982 a eleição de Leonel Brizola reavivou a possibilidade de retomada do movimento nacionalista-trabalhista - nem comunista, nem liberal -, que vinha sendo construído desde a década de 1920, com o Movimento Modernista, com a Revolução de 1930 e durante toda a década de 1950 até o golpe de 31 de março de 1964. O Brasil crescia economicamente, desafiava sua estrutura classista e racista com atividades sociais e culturais e parecia estar consolidando um caminho de formulação cultural autônoma. O golpe de 1964 e o supra-golpe do AI-5, de dezembro de 1968, obstruíram esse caminho e abriram uma dupla vereda de ilusão econômica e desencantamento cultural. Aumentando o fosso entre povo e classe média, alienou ainda mais esta última, que só foi se dar conta do embuste quando começou a sentir sua renda caindo, a partir de 1978. Pois então, em 1982, com as eleições diretas para governador um caminho novo se abria, não se sabia ainda para onde, sob que condutor ou que condições, mas trazia esperanças. Darcy Ribeiro, intelectual e homem público com raízes na cultura brasileira, na antiga militância comunista e então no trabalhismo, chamou esse movimento de “socialismo moreno”.

  Entre os principais projetos do governo Brizola estava a criação de um novo modelo educacional para o ensino fundamental. Idealizado por Darcy Ribeiro, o sistema cognominado CIEP pretendia realizar os propósitos de uma linha histórica de educadores brasileiros que começara com o Movimento dos Pioneiros de 1929, passando pela Escola Modelo de Anísio Teixeira e pelo experimento de Ensino Médio criado nos primeiros anos da Universidade de Brasília. Adicionava-se a isso uma metodologia de ensino que partia do respeito às culturas locais do alunado, por inspiração do Método Paulo Freire e de idéias construtivistas, incluía um espaço físico amplo para a prática de esportes, a permanência dos alunos durante oito horas na escola, a alimentação integral, o cuidado médico e odontológico, e ainda a presença de tutores para jovens carentes cujas famílias não os podiam sustentar, especialmente aqueles que estavam vivendo nas ruas. Os prédios, desenhados por Oscar Niemeyer, eram de concreto armado, construído em larga escala em fábricas, fáceis de montar em qualquer lugar, portanto, resultando em custos relativamente baixos.

  Darcy conclamou partidos políticos e a sociedade civil para apoiar esse projeto, que podia abrir caminho para um modelo mais generoso de educação para o povo trabalhador excluído, diminuindo com isso o fosso entre este e a classe média, já àquela altura totalmente entregue à escola particular. Darcy convocou o professorado superior e de ensino fundamental para ajudar a conceber melhor o projeto e a realizá-lo na prática.

Como respondeu o PT a esse projeto? Apesar do apoio dado em diversas ocasiões por Paulo Freire, que então vivia em São Paulo já incorporado às hostes intelectuais do PT, este partido montou uma avassaladora campanha de críticas sobre todos os aspectos do projeto, arregimentou o sindicato de professores para boicotar, chantagear e obstaculizar a sua implementação, jogou pesado para cooptar o professorado ainda jovem para uma retórica e um comportamento de feroz resistência, enfim, fez eco multiplicado das críticas que a imprensa conservadora vinha veiculando por interesses políticos. Nessa ocasião é que Darcy Ribeiro cunhou a frase “o PT é a esquerda que a direita gosta”. Pois bem, o projeto dos CIEPs fracassou e com isso o PT teve uma vitória inegável do ponto de vista político, pois desnorteou do eleitorado fluminense a visão generosa e revolucionária desse projeto. Em conseqüência, os seguintes governos deixaram de manter e dar continuidade a esse projeto de escola integral, e o resultado é que empacou a entrada de milhares de jovens de famílias pobres no circuito de conhecimento necessário à obtenção de trabalho dignificante. A educação que existia, que servia, como ainda serve, para manter o status quo desigualitário, continua a impedir a elevação do nível educacional. Assim, ao cabo de 20 anos de balanço, o baixo nível educacional, a desmotivação do professorado, a alienação dos pais e o baixo rendimento dos alunos no Rio de Janeiro alimentam a exclusão social dos jovens da classe trabalhadora, insuflam a existência de alternativas marginalizantes, retrai, como já disse Dante Aleghieri, “qualquer esperança” de mudança a curto e médio prazos. Resta agora nos apegarmos ao mote dos últimos dias da campanha eleitoral do PT, segundo o qual a esperança vence o medo, e torcermos para que as críticas então feitas possam agora ser norteadas para uma atitude de inovação e de realização na área educacional que recupere a esperança criada por Darcy Ribeiro em 1983.

Creio que esse exemplo é bastante cruel, mas certamente se equivale a tantos mais em outros estados onde o PT tem mostrado sua garra para impedir cada e toda mudança real que não venha de sua incipiente e limitada criatividade político-cultural. Ultimamente o filósofo Denis Rosenfield tem com muita coragem desmascarado a administração petista no Rio Grande do Sul, demonstrando seu caráter autocentrado, exclusivista e ilusionista. O propalado “orçamento participativo”, estabelecido na prefeitura de Porto Alegre, tem demonstrado ser nada mais do que um aliciador de jovens para se transformarem em quadros petistas nos bairros periféricos, sem nenhuma melhora sensível nas condições de vida das populações que lá vivem. Por sua vez, a interferência partidária em instituições como a Polícia Militar demonstram o caráter totalitário do PT naquela administração. A pergunta é: Por que o PT fez o que fez no Rio de Janeiro, e por que continua a fazer toda vez que algum partido congênere, de esquerda, sem falar nos partidos de centro e de direita, cria alguma coisa fora dos padrões a que se restringe sua concepção do mundo e sua capacidade de trabalho político? A resposta não é curta, nem circunstancial. A razão desse comportamento é estrutural, está no ADN do PT e deve ser buscada na própria configuração de seu surgimento.

 

II

 

O surgimento do PT está contado em seus manuais de propaganda e nos livros analíticos escritos quase sempre por simpatizantes, dos mais científicos aos mais ideológicos. O PT teria nascido do movimento operário do ABC paulista nos estertores do regime militar, quando o crescimento econômico que suportara durante uma década o sistema político, o operariado das grandes indústrias e a satisfação da classe média, apresentava de súbito sinais de rápida e incontida desaceleração. Nesse momento os sindicatos de operários e da classe média, cujas direções até então estavam aquietadas, começaram a vociferar seu descontentamento de classe, o qual foi logo amoldado em discurso político contra o regime militar. Surgia de súbito um líder jovem, com pouco mais de 30 anos, cuja voz e cujo porte se elevavam à estatura de líder carismático. Em torno dele se agregaram os sindicatos da grande indústria automobilista, das estatais e de funcionários públicos, a Igreja Católica, suas pastorais e suas comunidades de base, o jovem segmento da classe média frustrada nos últimos anos pelas perdas salariais, em busca de recomposição social, enfim, muitos potenciais políticos que advinham de atuações políticas desenganosas, seja como participantes de guerrilhas, seja como membros desgarrados dos partidos de esquerda que haviam sido banidos pela ditadura militar. Um ou outro membro da elite econômica ou da tradição política também se incorporou, ainda timidamente. Para esta composição inicial, bastante díspar em suas posições de classe e visões de mundo, os ideólogos do PT procuraram estabelecer as bases filosóficas e políticas que amalgamassem uma identidade comum. Os principais formuladores dessa concepção foram dois professores da Universidade de São Paulo: Francisco Weffort e Marilena Chauí. Eis como esses dois intelectuais justificaram o PT.

Weffort é cientista político, aluno de Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso. Entrou na discussão política ainda durante o período que ele e outros daquela academia convencionaram chamar de “populista”, escrevendo um artigo em que considera populismo toda atuação político-partidária e de Estado que se apresenta como sendo em prol do povo, como tendo uma identidade popular, quando, na verdade, seria um movimento da elite e para a elite. O mecanismo dessa atuação procederia através da aparente concessão de alguns benefícios e garantias políticos, econômicos e sociais, os quais, por suas naturezas limitadas, não afetariam substancialmente a equação social existente. Para que os trabalhadores se sentissem partícipes, o mecanismo envolveria a cooptação, ao custo de favores pessoais ou de grupo, de líderes trabalhadores que para tanto teriam que trair os interesses maiores de sua classe. O populismo seria, portanto, nada mais que uma enganação da elite - rural ou burguesa - sobre o trabalhador, ainda não consciente de seu potencial revolucionário, e do povo, ainda insciente sobre as causas sociais de suas condições de vida. Para Weffort e seus epígonos, tudo que acontecera no Brasil desde a Revolução de 1930 não passara de populismo, de Getúlio Vargas a Ademar de Barros, a Jânio Quadros e João Goulart, e, por que não, também o período de Juscelino Kubitschek. No limite também Plínio Salgado teria apelos populistas. Apressado em não perder a ocasião, um outro professor da USP, Otávio Ianni, publicou nos primeiros anos da ditadura um livro que teve grande repercussão pelos anos seguintes, com o título “O Colapso do Populismo”, que consolida as teses de Weffort e iria dar sentido político à atuação política posterior das esquerdas pós-ditadura. O governo Goulart teria sido o ápice e ao mesmo tempo o fim de um período e de um modo de fazer política que havia se destruído por suas próprias fraquezas e contradições. Nem era preciso falar em militares cooptados pela guerra fria, empresários avessos a dar concessões salariais e participação nos lucros, elite política e social com receio de perder poder, o imperialismo americano financiando o golpe com medo de possíveis desdobramentos da revolução cubana no maior país da América Latina. O que ficou marcado na sociologia uspiana desde então é que o populismo passou a ser encarado como um anátema político, um câncer que fora extirpado e que não podia voltar. Nos primeiros anos da década de 1980, Weffort ficou encarregado de demonstrar em todas as ocasiões possíveis, analíticas ou ideológicas, acadêmicas ou jornalísticas, que o PT nascera contra o populismo, sobretudo porque nascera do primeiro movimento autóctone do trabalhador brasileiro. Em certo momento Weffort chegou a dizer que a única coisa positiva que havia acontecido desde a Abolição da Escravidão era o PT. Tudo mais teria sido enganação da elite, à revelia do povo, e para mantê-lo sempre sob rédeas curtas. Perante essa retórica, que se tornou senso comum nos meios universitários e em seguida no professorado escolar, muitos se surpreenderam quando, na primeira oportunidade, a eleição de seu professor Fernando Henrique Cardoso, Weffort, que estivera no âmago do PT, como membro de sua Executiva e seu principal ideólogo político, se bandeou para o barco do PSDB tornando-se ministro da cultura. Mais adiante entenderemos por que a surpresa é ingênua.

Marilena Chauí é filósofa da USP, tendo incorporado em seu modo de pensar a visão socialista-estruturalista francesa, especialmente do cientista político Claude Lefort. Em fins da década de 1970 ela escrevia intensamente contra a idéia de “competência”, alegando que tal conceito não passava de uma arma ideológica da elite burguesa, pois servia unicamente para encobrir um discurso de poder, de classe superior. Augurava, quem sabe, como poeta-filósofa, o surgimento de quem, por essa análise, devia por princípio negativo ser considerado competente. Escreveu também criticamente sobre o uso ideológico de conceitos de cultura popular e cultura erudita, sem esclarecer sobre suas incompatibilidades ou não. Em 1985, Chauí foi secretária de cultura da prefeitura petista de Luíza Erundina, onde se esmerou para criar uma cultura de leitura nos bairros e defender minorias. Em novembro de 1989, no segundo turno da eleição presidencial, ela iria defender por que o PT seria o verdadeiro e talvez o único partido de esquerda, do povo e para o povo, a existir no Brasil. Sua definição do PT seria elaborada por uma lógica de exclusão daquilo que ele não era. O PT teria surgido em contraponto a outros movimentos político-culturais que deram origem a partidos de esquerda tradicionais. Os principais contrapontos ao PT seriam:

a.                O velho PCB, na medida em que o PT recusa o leninismo, isto é, a concepção e a prática do centralismo democrático por ela ser autoritária, exclusivista de iluminados, refutadora da participação dos militantes, que seriam passivos. Ademais, o PCB estivera desde sempre dependente de influências externas, que tendiam a obnubilar a visão crítica e analítica dos seus quadros intelectuais. Por esses motivos é que o PCB teria se envolvido numa aventura em 1935 e tinha ao longo dos anos dado motivos para ser proscrito por tantos anos. Por conseguinte, ficava revelado que toda a prática política do velho Partidão teria resultado num atraso à autoconsciência do povo trabalhador brasileiro.

b.       O PTB, isto é, o partido trabalhista supostamente criado à imagem e semelhança do populismo getulista, com viés para-fascista, e que se prolongara na década de 1950 até o golpe de 1964. Para o PT, segundo Chauí, o trabalhismo não passaria de um movimento da elite política para preservar o capitalismo e rechaçar as possibilidades revolucionárias do movimento operário que havia surgido em São Paulo desde o início do século XX, que teria estado em ascensão e que fora reprimido e suprimido de suas potencialidades por concessões forçadas de interesses não totalmente legítimos, como as medidas da CLT, a unicidade sindical e o papel interventor do Ministério do Trabalho. O PTB tinha sido, sobretudo, um partido de elite em pele de cordeiro para iludir os trabalhadores de que eles estavam com o poder e tinha participação no seu destino econômico e social.

c.                A guerrilha, isto é, os movimentos de grupos armados oriundos da perda de hegemonia dos partidos comunistas, que haviam se insurgido voluntariosamente contra a ditadura militar, por fruto de decisões equivocadas e por isso mesmo sem ter o respaldo nem de trabalhadores organizados, nem da classe média insatisfeita (que então estivera mais ou menos satisfeita), nem do povo em geral.

As três palavras chaves em itálico, autoritarismo, ilusionismo e voluntarismo resumem o sentido máximo da crítica de Chauí a esses partidos e movimentos de esquerda que antecederam o PT, e que lhe poderiam fazer algum tipo de desafio intelectual. Urgia abrir-lhes suas feridas e seus pontos fracos para que fossem rechaçados e em conseqüência para se pudesse traçar o caminho para a caracterização novidadeira do PT. Que seria contra tudo isso. Portanto, o PT era e haveria de ser democrático e participante em suas decisões, científico, isto é, não ideológico em sua concepção filosófica, e organizado como estrutura com estratégia de curto e longo prazos. O PT seria a culminância de toda a trajetória do povo trabalhador, especialmente desde os românticos imigrantes anarquistas, trajetória que passara por meios e modos que precisavam ser expurgados porque estavam a conspurcar a pureza do novo.

A partir dessas concepções, todas nascidas do movimento político-cultural da USP, que repulsava os movimentos anteriores, é que o PT se fez discurso ideológico e prática política pelo Brasil afora. Atraiu o operariado sindicalizado da grande indústria consolidado pelo desenvolvimento econômico dos anos de chumbo da ditadura militar, cujas lideranças anteriores haviam sido destroçadas; atraiu uma juventude de classe média que estivera alienada e sem participação e que vinha perdendo garantias e privilégios de classe; atraiu conceituados segmentos da Igreja Católica e o sentimento cristão de ação política em função da sua anterior negação aos partidos de esquerda, mas que durante a ditadura estivera do lado dos mais oprimidos e reprimidos; por fim, atraiu políticos jovens advindos de experiências frustradas e de desencantamento com os movimentos políticos acima vistos, especialmente da guerrilha. Estes últimos foram, sem dúvida, os grandes organizadores do PT, compondo atualmente parte de seus quadros superiores, embora alguns tenham abnegado de suas visões mais radicais. Por outro lado, os estertores finais da União Soviética já se faziam sentir nos países periféricos, tal como a Polônia que, naquela conjuntura tinha um papa, um líder operário de grande carisma e uma organização pré-partidária, a Solidariedade. A imensa propaganda positiva que Lech Walesa recebeu na Europa e daí para o Brasil foi integrada em paralelo com o surgimento do PT e com a figura de Lula. Ambos surgiam como grandes novidades, puras em sentimento e em ação, e estariam batalhando contra regimes totalitários, autoritários, enfim, contra o passado que precisava ser enterrado e superado.

No campo intelectual, a ideologia petista - emoldurada por catedráticos da USP, que, aliás, por força do desmoronamento da Universidade do Brasil e do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), que até o golpe ainda constituíam baluartes do pensamento de esquerda no Brasil, se tornara hegemônica no pensamento social da época - se impôs nas universidades, sobretudo pelo uso desenfreado que fazia do conceito de autoritarismo, com o qual mesclava todos os movimentos políticos e culturais (exemplo, o Conselho Popular de Cultura) prévios ao surgimento do PT.

Aqui, portanto, cabe uma palavra a mais sobre autoritarismo para que fique bastante clara a importância do uso desse conceito na formação e propagação do PT pelo Brasil.

 

III

 

  O conceito de autoritarismo foi introduzido no cenário brasileiro a partir de um artigo publicado no fim da década de 1960 pelo cientista político espanhol radicado nos Estados Unidos, Juan Linz. Usando de argumentos retirados da sociologia weberiana, Linz propunha que o que se passara na Espanha franquista, em Portugal salazarista, bem como aquilo que estava se passando no Brasil dominado pelos militares era fruto de uma atitude política própria de uma fase do capitalismo ainda dominado pelo patrimonialismo. O autoritarismo seria o exercício do poder obtido por razões de direito que antecediam um verdadeiro pacto político-social. Assim, independente de estar vivendo num regime ditatorial, o Brasil de 1968 era antes de tudo um Estado autoritário por força do exercício do poder sem participação do povo. Para os propugnadores da aplicação do conceito de autoritarismo, o Brasil tinha sido autoritário desde sempre, fosse no Império, na República Velha, no Estado Novo e mesmo nos tempos do populismo. Desse modo, numa cartada só esse conceito reuniu tudo que havia acontecido na história política e social brasileira reduzindo-a a um denominador comum.

  Por sua vez, o autoritarismo político estava arraigado num modo de ser social, numa psicologia e numa cultura. Por todos os seus poros, o Brasil seria autoritário: na relação entre burguês e operário, rico e pobre, brancos e pretos, professor e aluno, enfim, homem e mulher, e por que não, amado e amada. Todos deviam se cuidar para não serem autoritários, um germe epidêmico que precisava ser extinto. Quanto mais tradicional na cultura brasileira, quanto menos consciente do processo de mudanças multifacetadas pelas quais o país passava, quanto menos enfronhado no novo discurso antiautoritário que surgia com força nesses tempos, especialmente trazido por uma filosofia francesa pessimista, cuja porta-voz principal era Michel Foucault, mais autoritário a pessoa seria.

Mas quais seriam os critérios que poderiam definir o ser autoritário e a atitude não autoritária? Quem estaria apto para aplicar esse critério?

Nos estertores da ditadura militar, como se não quisesse cutucar a onça de vara curta chamando-a por seu nome verdadeiro, os intelectuais e os políticos com ares de democratas ou de revolucionários passaram a chamá-la de autoritária. Ulysses Guimarães, Franco Montoro, o iniciante Fernando Henrique Cardoso, os cientistas políticos do IUPERJ e da USP, seguidos por seus epígonos, enfim, os intelectuais que estavam fazendo o PT. Em seguida o conceito de autoritário foi estendido para o passado mais recente. Sofreram essa pecha sem piedade o cambaleante Partido Comunista, sem quadros e sem discurso para se reestruturar no movimento operário ou na jovem intelectualidade; o trabalhismo criador de líderes pelegos, o insensato populismo piromaníaco. Para usar uma surrada imagem política, jogaram lama em cima de todos aqueles que estavam voltando do exílio achando que podiam retomar a história do ponto em que a haviam deixado. Darcy Ribeiro exemplificou essa atitude negativa ao dizer que os militares o haviam anistiado, mas não seus colegas da academia!

O uso do termo autoritarismo se prolongou por uns bons vinte anos. Ainda hoje se ouve ecos acusatórios, já menos intensos e dirigidos com menos nitidez. O estrago já estava feito. O autoritarismo foi usado para esvaziar o potencial de retomada da história brasileira por aqueles cujas carreiras e pensamentos foram interrompidas pela ditadura. Beneficiaram-se propositalmente aqueles que, de algum modo, haviam preenchido o vazio deixado pelos exilados nas universidades, nas instituições de produção de saber ou de propaganda ideológica, nos partidos políticos. Os beneficiários souberam espalhar nesses meios que os retornados eram de uma outra era, que estavam defasados intelectual e politicamente, que não poderiam voltar a ser o que eram antes porque seria uma volta ao passado autoritário.

Quem soube se aproveitar melhor dessa conjuntura? O PT e o grupo do PMDB, especialmente centrado em São Paulo, que mais tarde iria formar o PSDB. Eis porque o PT está bastante vinculado tanto à ideologia que emana de São Paulo quanto ao seu fraterno oposto, o PSDB.

 

IV

 

Algumas palavras da relação entre PT e PSDB cabem aqui. Foi mencionado de passagem que a USP tornou-se hegemônica desde a década de 1970 sobre o pensamento sobre a sociedade brasileira. Apesar de não ter apoiado o golpe, a USP não sofreu tanto quanto a Universidade do Brasil e o ISEB, que até então faziam pesquisas e produziam conhecimento paralelo ao da universidade paulista. As mencionadas instituições fluminenses foram arrasadas, suas principais lideranças exiladas. O ISEB se acabou de vez, tendo recebido sua pá de cal pela feroz crítica que lhe foi feito por um dos jovens próceres da USP, que o cognominou de “fábrica de ideologia”. Desse modo, a ciência estava preservada no pensamento uspiano, os demais sendo produtores tão somente de má ciência, de ideologia. Em nenhum momento desde sempre algum intelectual da USP fez uma análise crítica do surgimento ideológico desta instituição, e do seu papel político em elevar o pensamento burguês paulista à condição de superior aos demais pensamentos. Uma análise sobre o papel dos intelectuais franceses criando uma sociologia que induzia a se pensar que até então o Brasil não tinha intelectuais e pensadores, que o Brasil carecia de tradição de pensar, sobre Florestan Fernandes afirmando seu método como científico (por ser funcionalista e depois marxista), em oposição ao ecletismo dos demais, sobre o CEBRAP, com o auxílio da Fundação Ford (assim como o IUPERJ e o Museu Nacional, no Rio de Janeiro) se impondo como arena de discussão e crítica do período pré-golpe e, na medida do possível, sobre as alternativas radicais ou negociadas dentro do regime ditatorial. Essas novas instituições do saber sociológico se impuseram não só academicamente, mas também político-ideologicamente sobre as instituições similares em todo o país, especialmente porque conseguiram recursos para pesquisa de fundações americanas, bem como o domínio sobre os órgãos oficiais de fomento, tais como o CNPq, a CAPES e a Fapesp. Algum dia é preciso fazer uma análise de por que, como e por que meios as fundações Ford, Rockefeller e em seguida a MacArthur foram tão pródigas no financiamento dessas instituições.

Para além da discussão propriamente acadêmica, de cunho teoricista, a nova discussão sociológica se esparramou pela mídia a partir de 1976-77 através de revistas e jornais como Opinião e Movimento. Além de autores estrangeiros revisionistas do marxismo, ligados a uma tradição weberiana, com laivos de Hanna Arendt, que eram vistos como os teóricos dos novos tempos, a discussão foi aplicada à atualidade brasileira com vistas à busca de uma saída para o fim do regime ditatorial, cognominado “autoritário”. Duas saídas despontaram: uma democracia light, sem radicalismo, sob a hegemonia burguesa paulista, à la social-democracia européia; ou um “socialismo” baseado no novo operariado paulista, que emularia os sindicatos de classe média e por osmose a organização do povo insciente e desorganizado. Isto é, as duas opções se concretizaram no PT e mais tarde no PSDB.

Diferentemente do PSDB, o PT se tornou um partido nacional, e não quase que exclusivamente paulista ou paulistocêntrico, não por causa do seu operariado de fábrica, mas por causa da simpatia que lhe devotou a jovem classe média frustrada, até então não participante e confiante no projeto econômico do regime. Politicamente esse segmento da classe média aparelhou-se nos sindicatos de funcionários públicos, do professorado, nas incipientes associações da sociedade civil, nos movimentos a favor de minorias e causas para-políticas, como meio ambiente, homossexualismo, etc. Por sua vez, a Igreja Católica apoiou a idéia de um partido que se posicionava contra as ideologias comunista e trabalhista, que ela tanto atacara desde sempre. Os ideólogos da teoria da libertação propuseram uma relação mística dos vários segmentos oprimidos do povo com a divindade e a idéia colou.

Portanto, na ruptura com a ditadura militar surgiram visões de um novo mundo que rejeitavam a história brasileira (reificando aquela famosa frase que diz que “brasileiro não tem memória”) para criarem novas instituições a partir da crítica específica ao tal regime autoritário. O novo parecia surgir por si mesmo. O novo e sua mística valeram para arrebanhar a imaginação daqueles que jamais haviam participado de política e dos que no fundo tinham apoiado os motivos que os golpistas de 1964 alegavam para ter derrubado o regime democrático pregresso. Nisso o PSDB, contrapondo-se ao udenismo, ao liberalismo e ao mais recente MDB, e o PT rejeitando as políticas de aliança comunista-trabalhista-nacionalista do governo Goulart, despontaram com o mesmo figurino de novidade, como as duas faces de uma mesma moeda. Não é surpresa, portanto, quando se fala que suas visões de Brasil e os seus quadros técnicos são intercambiáveis.

 

V

 

Duas observações finais de dois luminares da atualidade darão a medida exata da relação PT - PSDB e da semelhança de seus projetos político-culturais. Um deles é Alain Touraine, professor de Sociologia do Trabalho, da Universidade Sorbonne, amigo de Fernando Henrique Cardoso. Antes ainda do primeiro turno, ele disse em entrevista que o PT iria ganhar e deveria fazer por bem se aliar ao PSDB, já que seus quadros advêm da mesma origem e têm pensamentos comuns. O outro é o poeta Caetano Velloso que, um tanto reticente em declarar seu voto para Ciro Gomes, falou em seminário na USP que apenas Ciro representaria algo fora da USP e, portanto, carregava maior representatividade para entender a complexidade cultural brasileira. Caetano, obviamente, não menospreza a USP, ao contrário; apenas não a sente capaz de dar conta do que é o Brasil. De modo contrário, Alain Touraine sobrevaloriza o pensamento uspiano, e despreza o que há de resto no Brasil. Tal qual o PT e o PSDB.

 

VI

 

O autocentramento do PT tem duas razões de ser. Uma é de constituição de identidade e diz respeito à preservação de suas características e imagem diante dos eleitores e das circunstâncias políticas. O PT se consolidou como partido pela consistência de seu posicionamento político perante a nação. Considerando o jogo político como algo de legitimidade duvidosa, o PT estabeleceu seus próprios princípios para jogar. Nos momentos em que lhe foi exigido transigência a alguns desses princípios, o PT não transigiu. Isto ocorreu durante acontecimentos que são considerados por muitos como cruciais na história recente do país, a exemplo da eleição pelo Congresso Nacional do presidente Tancredo Neves, em 1984, fato simbólico para o fim da ditadura militar; a assinatura da nova Constituição brasileira, em 1988, fato simbólico para o início de um novo período de democracia; e a participação político-administrativa no governo do vice-presidente Itamar Franco, após o impedimento de F. Collor, fato de alguma relevância moral para o Brasil. Nessas ocasiões, o PT se negou a participar e puniu membros que ousaram ir contra essa determinação. Nesse sentido, o PT se considera o único partido “puro” ou legítimo para representar o povo brasileiro, visto como uma consolidada maioria oprimida.

A outra razão de autocentramento é estratégica. Refere-se à necessidade de abrir um caminho próprio diante dos “percalços”, não de “acontecimentos” políticos. O PT considera que a política no Brasil é uma farsa das elites para enganar o povo. Assim, todo evento político não passaria de uma encenação, uma ilusão enganadora, que, portanto, deve ser ultrapassada à luz do interesse estratégico maior do partido, qual seja, o poder total. O PT rejeita em princípio alianças de qualquer natureza. Só as tem feito, ou com partidos que intrinsecamente não mais visam o poder, como o PC do B, ou, nos últimos tempos, com partidos que lhe possam conferir uma imagem nova, mas que não forcem mudanças vitais na sua concepção política. O máximo que o PT e seus administradores concedem a esses aliados de conveniência é negociação de pontos insignificantes em programas de governo e participação subalterna no poder, nunca uma simbiose de forças. Nesse sentido, o PT almeja ser o único partido real, aquele que deve ter o poder ao final, idealmente como partido único.

  Que forças sociais dão suporte a esta visão e esta atitude políticas do PT? Certamente não é sua base trabalhadora, já que se pode supor que, no Brasil, como de resto no mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os trabalhadores se posicionam, em relação ao capital, de um modo relacional e negociador, não de confronto. A não ser por um outro grupelho que professa a adaptação de um trotskismo canhestro (o maoismo e a glorificação da Albânia já se foram) ao Brasil, os trabalhadores e a maioria de brasileiros que desejam ser trabalhadores sindicalizados apostam na negociação, o que implica de algum modo em aceitação estratégica de sua posição social. Assim, a força social que induz o PT ao autocentramento advém dos outros dois segmentos que o compõem: o segmento radical da classe média, que projeta o Brasil à sua imagem e semelhança, e o segmento de cunho religioso.

  Embora de visões diferentes, esses dois segmentos são liderados por pessoas de idêntica extração social. Destituídos de historicidade, eles apelam para a elevação de seus estatutos de classe como modelo para todo o Brasil. Em outras palavras, elas acreditam que seu modo de ser e viver é o que deve representar e ao mesmo tempo servir de emulação para todo o povo brasileiro, especialmente os destituídos de significação política e de sentido cultural.

 

VII

 

Uma idéia bastante propalada pelo PT, especialmente nos seus momentos de baixa, é de que o PT, sua existência, faz bem ao Brasil. Que o PT, pela honestidade de seus quadros e pela vigilância que mantém sobre “os donos do poder”, é imprescindível ao país. Que pelo menos dá um peso contrário que ajuda a produzir um equilíbrio político no Brasil. Ora, não existe monopólio de honestidade em partido político, nem o PT teve experiências suficientes para demonstrar que está vacinado contra o vício da corrupção e do peculato. Ao contrário, suas experiências reiteradas no Rio Grande do Sul, no Mato Grosso do Sul, em Belém, em Santo André e outras cidades estão a desdizer essa alegação. Que outros partidos de centro e de direita têm índices bastante mais altos de desonestidade, não restam dúvidas, mas tudo indica que a inépcia administrativa do PT provoca perdas igualmente altas ao erário público, bem como atrasa o caminho do desenvolvimento socioeconômico do país.

Por sua vez, o espaço cultural onde predomina a honestidade pessoal e pública, isto é, o respeito ao dinheiro público, não surgiu com o PT, nem é muito menos um evento recente. Ao contrário do que supõem até bons intelectuais com tendências petistas, a honestidade pública brasileira existe desde a incepção do espírito republicano, com os positivistas, passa pela ética e pela moral pessoal dos comunistas, por largos segmentos do trabalhismo, inclusive pelo próprio Getúlio Vargas, e faz parte do caráter de uma boa parte da elite brasileira de espírito público, que ajudou a produzir o desenvolvimento do Brasil. Figuras como Arthur Bernardes (independente de sua atuação política durante seu período de governo), José Maria Alckmin, Israel Pinheiro, Barbosa Lima Sobrinho, o próprio João Goulart e seus principais ministros, apenas para citar aqueles que fizeram política e administraram o país antes do golpe de 1964, e tantíssimos outros de porte político menor, são reconhecidos acima de qualquer suspeita. Haverá muitíssimos mais exemplos que precisam ser reconhecidos como sendo resultado de um espaço cultural que existe no Brasil, sobre o qual é preciso se refazer a história política brasileira diante da simplificação a que foi submetida por uma sociologia apressada e ideológica que domina os centros de conhecimento e pesquisa do país.

Independente do PT, a honestidade política e administrativa brasileira é uma virtude real, com uma história e com um potencial ainda maior para se expandir sobre a desonestidade, que todos reconhecem. O que mais importa é encontrar os mecanismos e criar instituições culturais e sociais que favoreçam essa expansão. E estes não serão predominantemente jurídicos e contábeis, como supõem os próceres da honestidade petista, corporativamente centrados, herdeiros, junto aos bons burgueses do PSDB, da aflição legiferante portuguesa para encobrir as realidades mais profundas e escamotear as saídas culturais para resolver os problemas brasileiros.

Só um partido que respeita a história do Brasil será capaz de reconhecer no brasileiro, pobre, remediado, médio ou rico, e na nossa cultura como meio de formação de uma identidade maior, o nosso potencial de honestidade pessoal e público.

 

VIII

 

Enfim, é nesse quadro de formação, de visão e de atuação políticas que o PT toma o poder legitimamente para governar o Brasil. O que se pode dele esperar? De uma perspectiva positiva e esperançosa, a capacidade de liderar um momento de mudanças que a sociedade brasileira vem exigindo com grande ênfase: mudanças na macroeconomia, na qualidade da educação, na distribuição de riquezas, na forma de vivência política, no posicionamento do Brasil em relação à comunidade internacional. Uma tal agenda necessitará de forças de apoio e de compartilhamento de responsabilidades. Governo de coalizão efetiva. Dada a formação genética do PT, só por um processo de superação dialética, movido pelo sentimento de responsabilidade do poder, é que o PT, com Lula ao seu leme, poderá constituir um governo nesses moldes.

Podemos dizer que o governo Lula terá três adversários a enfrentar: um externo, que são as condições do imperialismo capitalista; um interno que são as forças conservadoras brasileiras; e um mais interno ainda, que são os dissensos e divergências dentro do próprio PT. Os aliados de esquerda vão estar espremidos entre essas três forças adversárias, certamente buscando meios de intermediar. Não será tarefa fácil para Lula nem para seus aliados.

Por sua vez, há o povo, que espera. Em Lula o povo depositou sua esperança, seu desejo de mudanças para melhorar sua vida. Alguns dizem que o povo tem esperanças milenaristas, espera um salvador que o redima da sua situação de pobreza e humilhação. Mas o povo sabe também esperar por esperar, dando tempo a que as coisas aconteçam e, se acontecerem, delas participará. Não será por uma propalada organização das forças populares, de cunho comunista-leninista, ou de cunho sindicalista-petista, que o povo participará. Não é assim, nunca foi assim, que o povo alcançou em vários momentos da história brasileira a autoconsciência de sua posição para poder agir politicamente. Não podemos sucumbir aos apelos da reificação dos sentimentos esquerdistas da classe média para sindicalizar as relações sociais que se dão no seio do povão. É preciso encontrar novos caminhos, de razão e lógica cultural, de vivência e convivência, de experimentação de relacionamento e de atitudes criativas.

A tarefa do governo Lula é estar ciente de que o povo tem suas razões de ser e agir e que ele tem que estar atento a isso, conduzindo seu partido e seus aliados a um caminho firme e seguro. De nossa parte, nossa grande tarefa é nos mantermos fiéis à história ascensional do povo brasileiro e de seguirmos na busca de elevar esse povo, ainda recalcado como ser político e como agente cultural autônomo, ao ponto de consolidação de uma nova cultura mundial. Precisamos nos manter confiantes de que isto é possível e que assim há de ser feito, por obra e graça da inteligência e do amor.


Resumo: O propósito do artigo é o de contribuir para um melhor entendimento das coordenadas ideológicas e da trajetória histórica percorrida pelo PT, da fundação a chegada do partido ao poder em 2003, para refletir sobre a sua pretensão de ser o legítimo representante do sentimento de brasilidade e dos anseios populares.


Palavras-chave: Partido dos Trabalhadores, sociologia uspiana, populismo, autoritarismo e autocentramento.


* Mércio Gomes é antropólogo, professor da UFF, autor dos livros O índio na história (Vozes, 2002), The indians and Brazil (UPF, 2000) e Darcy Ribeiro (Ícone, 2000).

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