ENCANTO
E CAUTELA COM O PT
A grande vitória de Luiz Inácio Lula da Silva e do PT nas eleições presidenciais de 2002, bem como o expressivo aumento de sua representação no Executivo e no Legislativo em quase todos os estados da União parecem indicar que o Brasil e o povo brasileiro acharam afinal o partido de esquerda que os possa representar para si e para o mundo. Na história Republicana outros partidos almejaram e lutaram com igual destemor e até maior sacrifício para alcançar o que o PT vem de obter em apenas 22 anos de exercício político. Tempos diferentes, não se duvida, mas tal não é feito inglório, ao contrário, merece o louvor de todos os partidos de esquerda da atualidade, especialmente daqueles que não se coligaram com o PT no primeiro turno, defendendo projetos próprios. O PPS, cujo projeto foi esboçado e apresentado pela candidatura Ciro Gomes, alcançou em certo momento da campanha (30/07 a 20/09) até 30% de intenções de votos, i.e., da empatia imaginária do povo brasileiro, quando Lula estava com 34%. A candidatura Ciro Gomes, entretanto, desmoronou para 12%, enquanto Lula subia até alcançar 46,4% dos votos válidos depositados em 6 de outubro, para, ao final, chegar à marca recorde de 52.793.261 votos, ou 61,3% dos votos válidos, no segundo turno. Ao que indicaram as pesquisas, grande parte dos votos intencionados, mas perdidos, de Ciro Gomes, ainda no primeiro turno, migraram para o PT, e igualmente no segundo turno. Por sua vez, a candidatura Garotinho, abrigada no vetusto PSB, também acenou ao povo brasileiro um laivo de opção de esquerda, embora fortemente temperada com um linguajar salvacionista e um estrepitoso comportamento para-religioso, à moda americana de evangelização. Seus votos se dividiram entre Lula e Serra no segundo turno.
De
modo que, no cômputo geral e à primeira vista de uma análise política exclusivamente
funcionalista e quantitativa, em cima do eixo de representação partidária,
o Brasil teria chegado, após oito anos de governo neoliberal, ao seu máximo
de esquerdismo: no total, cerca de 75% de votos foram dados a representantes
nacionais ditos de esquerda no primeiro turno. No segundo, polarizado entre
Lula e o candidato da situação, José Serra, essa porcentagem caiu bastante
(61,3%), indicando, ou o reconhecimento de que o candidato Serra não era necessariamente
de direita, ou a opção Lula não preenchia a visão de muitos eleitores dos
demais candidatos.
Por
tudo isso, poder-se-ia perguntar: o Brasil ficou, para o gáudio e felicidade
geral dos sonhos nossos utopistas, rouge? Pergunta que deixamos no retórico
e resposta que se queda vazia. Seria demasiado pretender discorrer sobre a
visão e a atitude política do povo brasileiro e as suas circunstâncias atuais
em tão pouco espaço de tempo, e sobre números de votos. Importa aqui a preocupação
de analisar o vencedor, o PT, sua formação e sua essencialidade para que possamos
reconhecer seu papel na história brasileira recente e para podermos nos situar
perante o governo Lula, que se inicia em 2003. O fato de uma outra proposta,
a do PPS, ter tocado no imaginário político-cultural de quase um terço da
população brasileira nos leva a crer que o povo brasileiro reserva uma cautela
ao PT, apesar de o ter consagrado nas urnas. Tal cautela tem sua razão de
ser, e este é o sentido das considerações que se seguem.
Nossa análise político-cultural é fruto de muitos anos de reflexão
sobre o formato de ser do PT, sua origem nos estertores da ditadura militar,
sua reificação da organização sindicalista, sobretudo de classe média, como
meio de veicular sua mensagem e suas atitudes políticas, sua mistificação
a-histórica do povo brasileiro, e sua pretensão de ser o legítimo representante
do sentimento de brasilidade.
I
Há mais de 20 anos o povo brasileiro tem ouvido os discursos e experimentado
as práticas políticas do Partido dos Trabalhadores. Auto-intitulando-se o
representante de todos que trabalham, por suposto em oposição aos que vivem
do capital, o PT ganhou uma aura de legitimidade popular como poucos partidos
ou movimentos sociais jamais conseguiram no Brasil. A glorificação em vida
de um ex-operário, homem do povo sofrido, migrante nordestino a São Paulo,
impoluto e ilibado, só fez consolidar esse carisma. Para este partido, depois
de quatro eleições presidenciais, chegou a hora de provar o gosto do pudim.
Muita gente vai se aproximar e querer estar junto. Entretanto, um momento
de reflexão e cautela não faz mal.
Sejamos diretos: há inúmeros motivos políticos, culturais e filosóficos para não se confiar que o PT é o partido que melhor pode representar os anseios do Brasil e as necessidades de ascensão do povo brasileiro. Em cada estado brasileiro onde esse partido tem visibilidade e posicionamentos políticos definidos, e até naqueles onde ele nunca chegou a se erguer com viabilidade político-eleitoral, despontam marcas de negatividade no seu comportamento político. O PT tem demonstrado ser autocentrado, totalizante, manipulador de eventos políticos, crítico de oportunidade, infirme para com parceiros, internamente divisionista e ilusionista para com os anseios populares. Sua visão político-cultural do Brasil tem como fulcro o ideal pequeno-burguês da classe média urbana, nas suas modalidades sindicalista, radical, moralista e narcísica. Simbolicamente, basta observar as letras de suas canções e vinhetas eleitorais (exemplos, “sem medo de ser feliz” e “é só você querer”) para que isto se evidencie. Politicamente, basta um único exemplo da atuação negativa do PT, no caso em relação ao programa educacional do Rio de Janeiro nos dois governos Brizola (1983-87; e 1991-94) para esclarecer o sentido desse comportamento. Em muitos outros estados exemplos semelhantes podem ser lembrados.
Em 1982 a eleição de Leonel Brizola reavivou a possibilidade de retomada
do movimento nacionalista-trabalhista - nem comunista, nem liberal -, que
vinha sendo construído desde a década de 1920, com o Movimento Modernista,
com a Revolução de 1930 e durante toda a década de 1950 até o golpe de 31
de março de 1964. O Brasil crescia economicamente, desafiava sua estrutura
classista e racista com atividades sociais e culturais e parecia estar consolidando
um caminho de formulação cultural autônoma. O golpe de 1964 e o supra-golpe
do AI-5, de dezembro de 1968, obstruíram esse caminho e abriram uma dupla
vereda de ilusão econômica e desencantamento cultural. Aumentando o fosso
entre povo e classe média, alienou ainda mais esta última, que só foi se dar
conta do embuste quando começou a sentir sua renda caindo, a partir de 1978.
Pois então, em 1982, com as eleições diretas para governador um caminho novo
se abria, não se sabia ainda para onde, sob que condutor ou que condições,
mas trazia esperanças. Darcy Ribeiro, intelectual e homem público com raízes
na cultura brasileira, na antiga militância comunista e então no trabalhismo,
chamou esse movimento de “socialismo moreno”.
Entre os principais projetos do governo Brizola estava a criação de
um novo modelo educacional para o ensino fundamental. Idealizado por Darcy
Ribeiro, o sistema cognominado CIEP pretendia realizar os propósitos de uma
linha histórica de educadores brasileiros que começara com o Movimento dos
Pioneiros de 1929, passando pela Escola Modelo de Anísio Teixeira e pelo experimento
de Ensino Médio criado nos primeiros anos da Universidade de Brasília. Adicionava-se
a isso uma metodologia de ensino que partia do respeito às culturas locais
do alunado, por inspiração do Método Paulo Freire e de idéias construtivistas,
incluía um espaço físico amplo para a prática de esportes, a permanência dos
alunos durante oito horas na escola, a alimentação integral, o cuidado médico
e odontológico, e ainda a presença de tutores para jovens carentes cujas famílias
não os podiam sustentar, especialmente aqueles que estavam vivendo nas ruas.
Os prédios, desenhados por Oscar Niemeyer, eram de concreto armado, construído
em larga escala em fábricas, fáceis de montar em qualquer lugar, portanto,
resultando em custos relativamente baixos.
Darcy conclamou partidos políticos e a sociedade civil para apoiar
esse projeto, que podia abrir caminho para um modelo mais generoso de educação
para o povo trabalhador excluído, diminuindo com isso o fosso entre este e
a classe média, já àquela altura totalmente entregue à escola particular.
Darcy convocou o professorado superior e de ensino fundamental para ajudar
a conceber melhor o projeto e a realizá-lo na prática.
Como
respondeu o PT a esse projeto? Apesar
do apoio dado em diversas ocasiões por Paulo Freire, que então vivia em São
Paulo já incorporado às hostes intelectuais do PT, este partido montou uma
avassaladora campanha de críticas sobre todos os aspectos do projeto, arregimentou
o sindicato de professores para boicotar, chantagear e obstaculizar a sua
implementação, jogou pesado para cooptar o professorado ainda jovem para uma
retórica e um comportamento de feroz resistência, enfim, fez eco multiplicado
das críticas que a imprensa conservadora vinha veiculando por interesses políticos.
Nessa ocasião é que Darcy Ribeiro cunhou a frase “o PT é a esquerda que a
direita gosta”. Pois bem, o projeto dos CIEPs fracassou e com isso o PT teve
uma vitória inegável do ponto de vista político, pois desnorteou do eleitorado
fluminense a visão generosa e revolucionária desse projeto. Em conseqüência,
os seguintes governos deixaram de manter e dar continuidade a esse projeto
de escola integral, e o resultado é que empacou a entrada de milhares de jovens
de famílias pobres no circuito de conhecimento necessário à obtenção de trabalho
dignificante. A educação que existia, que servia, como ainda serve, para manter
o status quo desigualitário, continua a impedir a elevação do nível educacional.
Assim, ao cabo de 20 anos de balanço, o baixo nível educacional, a desmotivação
do professorado, a alienação dos pais e o baixo rendimento dos alunos no Rio
de Janeiro alimentam a exclusão social dos jovens da classe trabalhadora,
insuflam a existência de alternativas marginalizantes, retrai, como já disse
Dante Aleghieri, “qualquer esperança” de mudança a curto e médio prazos. Resta
agora nos apegarmos ao mote dos últimos dias da campanha eleitoral do PT,
segundo o qual a esperança vence o medo, e torcermos para que as críticas
então feitas possam agora ser norteadas para uma atitude de inovação e de
realização na área educacional que recupere a esperança criada por Darcy Ribeiro
em 1983.
Creio
que esse exemplo é bastante cruel, mas certamente se equivale a tantos mais
em outros estados onde o PT tem mostrado sua garra para impedir cada e toda
mudança real que não venha de sua incipiente e limitada criatividade político-cultural.
Ultimamente o filósofo Denis Rosenfield tem com muita coragem desmascarado
a administração petista no Rio Grande do Sul, demonstrando seu caráter autocentrado,
exclusivista e ilusionista. O propalado “orçamento participativo”, estabelecido
na prefeitura de Porto Alegre, tem demonstrado ser nada mais do que um aliciador
de jovens para se transformarem em quadros petistas nos bairros periféricos,
sem nenhuma melhora sensível nas condições de vida das populações que lá vivem.
Por sua vez, a interferência partidária em instituições como a Polícia Militar
demonstram o caráter totalitário do PT naquela administração. A pergunta é:
Por que o PT fez o que fez no Rio de Janeiro, e por que continua a fazer toda
vez que algum partido congênere, de esquerda, sem falar nos partidos de centro
e de direita, cria alguma coisa fora dos padrões a que se restringe sua concepção
do mundo e sua capacidade de trabalho político? A resposta não é curta, nem
circunstancial. A razão desse comportamento é estrutural, está no ADN do PT
e deve ser buscada na própria configuração de seu surgimento.
O
surgimento do PT está contado em seus manuais de propaganda e nos livros analíticos
escritos quase sempre por simpatizantes, dos mais científicos aos mais ideológicos.
O PT teria nascido do movimento operário do ABC paulista nos estertores do
regime militar, quando o crescimento econômico que suportara durante uma década
o sistema político, o operariado das grandes indústrias e a satisfação da
classe média, apresentava de súbito sinais de rápida e incontida desaceleração.
Nesse momento os sindicatos de operários e da classe média, cujas direções
até então estavam aquietadas, começaram a vociferar seu descontentamento de
classe, o qual foi logo amoldado em discurso político contra o regime militar.
Surgia de súbito um líder jovem, com pouco mais de 30 anos, cuja voz e cujo
porte se elevavam à estatura de líder carismático. Em torno dele se agregaram
os sindicatos da grande indústria automobilista, das estatais e de funcionários
públicos, a Igreja Católica, suas pastorais e suas comunidades de base, o
jovem segmento da classe média frustrada nos últimos anos pelas perdas salariais,
em busca de recomposição social, enfim, muitos potenciais políticos que advinham
de atuações políticas desenganosas, seja como participantes de guerrilhas,
seja como membros desgarrados dos partidos de esquerda que haviam sido banidos
pela ditadura militar. Um ou outro membro da elite econômica ou da tradição
política também se incorporou, ainda timidamente. Para esta composição inicial,
bastante díspar em suas posições de classe e visões de mundo, os ideólogos
do PT procuraram estabelecer as bases filosóficas e políticas que amalgamassem
uma identidade comum. Os principais formuladores dessa concepção foram dois
professores da Universidade de São Paulo: Francisco Weffort e Marilena Chauí.
Eis como esses dois intelectuais justificaram o PT.
Weffort
é cientista político, aluno de Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso.
Entrou na discussão política ainda durante o período que ele e outros daquela
academia convencionaram chamar de “populista”, escrevendo um artigo em que
considera populismo toda atuação político-partidária e de Estado que se apresenta
como sendo em prol do povo, como tendo uma identidade popular, quando, na
verdade, seria um movimento da elite e para a elite. O mecanismo dessa atuação
procederia através da aparente concessão de alguns benefícios e garantias
políticos, econômicos e sociais, os quais, por suas naturezas limitadas, não
afetariam substancialmente a equação social existente. Para que os trabalhadores
se sentissem partícipes, o mecanismo envolveria a cooptação, ao custo de favores
pessoais ou de grupo, de líderes trabalhadores que para tanto teriam que trair
os interesses maiores de sua classe. O populismo seria, portanto, nada mais
que uma enganação da elite - rural ou burguesa - sobre o trabalhador, ainda
não consciente de seu potencial revolucionário, e do povo, ainda insciente
sobre as causas sociais de suas condições de vida. Para Weffort e seus epígonos,
tudo que acontecera no Brasil desde a Revolução de 1930 não passara de populismo,
de Getúlio Vargas a Ademar de Barros, a Jânio Quadros e João Goulart, e, por
que não, também o período de Juscelino Kubitschek. No limite também Plínio
Salgado teria apelos populistas. Apressado em não perder a ocasião, um outro
professor da USP, Otávio Ianni, publicou nos primeiros anos da ditadura um
livro que teve grande repercussão pelos anos seguintes, com o título “O Colapso
do Populismo”, que consolida as teses de Weffort e iria dar sentido político
à atuação política posterior das esquerdas pós-ditadura. O governo Goulart
teria sido o ápice e ao mesmo tempo o fim de um período e de um modo de fazer
política que havia se destruído por suas próprias fraquezas e contradições.
Nem era preciso falar em militares cooptados pela guerra fria, empresários
avessos a dar concessões salariais e participação nos lucros, elite política
e social com receio de perder poder, o imperialismo americano financiando
o golpe com medo de possíveis desdobramentos da revolução cubana no maior
país da América Latina. O que ficou marcado na sociologia uspiana desde então
é que o populismo passou a ser encarado como um anátema político, um câncer
que fora extirpado e que não podia voltar. Nos primeiros anos da década de
1980, Weffort ficou encarregado de demonstrar em todas as ocasiões possíveis,
analíticas ou ideológicas, acadêmicas ou jornalísticas, que o PT nascera contra
o populismo, sobretudo porque nascera do primeiro movimento autóctone do trabalhador
brasileiro. Em certo momento Weffort chegou a dizer que a única coisa positiva
que havia acontecido desde a Abolição da Escravidão era o PT. Tudo mais teria
sido enganação da elite, à revelia do povo, e para mantê-lo sempre sob rédeas
curtas. Perante essa retórica, que se tornou senso comum nos meios universitários
e em seguida no professorado escolar, muitos se surpreenderam quando, na primeira
oportunidade, a eleição de seu professor Fernando Henrique Cardoso, Weffort,
que estivera no âmago do PT, como membro de sua Executiva e seu principal
ideólogo político, se bandeou para o barco do PSDB tornando-se ministro da
cultura. Mais adiante entenderemos por que a surpresa é ingênua.
Marilena
Chauí é filósofa da USP, tendo incorporado em seu modo de pensar a visão socialista-estruturalista
francesa, especialmente do cientista político Claude Lefort. Em fins da década
de 1970 ela escrevia intensamente contra a idéia de “competência”, alegando
que tal conceito não passava de uma arma ideológica da elite burguesa, pois
servia unicamente para encobrir um discurso de poder, de classe superior.
Augurava, quem sabe, como poeta-filósofa, o surgimento de quem, por essa análise,
devia por princípio negativo ser considerado competente. Escreveu também criticamente
sobre o uso ideológico de conceitos de cultura popular e cultura erudita,
sem esclarecer sobre suas incompatibilidades ou não. Em 1985, Chauí foi secretária
de cultura da prefeitura petista de Luíza Erundina, onde se esmerou para criar
uma cultura de leitura nos bairros e defender minorias. Em novembro de 1989,
no segundo turno da eleição presidencial, ela iria defender por que o PT seria
o verdadeiro e talvez o único partido de esquerda, do povo e para o povo,
a existir no Brasil. Sua definição do PT seria elaborada por uma lógica de
exclusão daquilo que ele não era. O PT teria surgido em contraponto a outros
movimentos político-culturais que deram origem a partidos de esquerda tradicionais.
Os principais contrapontos ao PT seriam:
a. O velho PCB, na medida em que o
PT recusa o leninismo, isto é, a concepção e a prática do centralismo democrático
por ela ser autoritária, exclusivista
de iluminados, refutadora da participação dos militantes, que seriam passivos.
Ademais, o PCB estivera desde sempre dependente de influências externas, que
tendiam a obnubilar a visão crítica e analítica dos seus quadros intelectuais.
Por esses motivos é que o PCB teria se envolvido numa aventura em 1935 e tinha
ao longo dos anos dado motivos para ser proscrito por tantos anos. Por conseguinte,
ficava revelado que toda a prática política do velho Partidão teria resultado
num atraso à autoconsciência do povo trabalhador brasileiro.
b. O PTB, isto é, o partido trabalhista supostamente
criado à imagem e semelhança do populismo getulista, com viés para-fascista,
e que se prolongara na década de 1950 até o golpe de 1964. Para o PT, segundo
Chauí, o trabalhismo não passaria de um movimento da elite política para preservar
o capitalismo e rechaçar as possibilidades revolucionárias do movimento operário
que havia surgido em São Paulo desde o início do século XX, que teria estado
em ascensão e que fora reprimido e suprimido de suas potencialidades por concessões
forçadas de interesses não totalmente legítimos, como as medidas da CLT, a
unicidade sindical e o papel interventor do Ministério do Trabalho. O PTB
tinha sido, sobretudo, um partido de elite em pele de cordeiro para iludir
os trabalhadores de que eles estavam com o poder e tinha participação no seu
destino econômico e social.
c. A guerrilha, isto é, os movimentos
de grupos armados oriundos da perda de hegemonia dos partidos comunistas,
que haviam se insurgido voluntariosamente
contra a ditadura militar, por fruto de decisões equivocadas e por isso mesmo
sem ter o respaldo nem de trabalhadores organizados, nem da classe média insatisfeita
(que então estivera mais ou menos satisfeita), nem do povo em geral.
As
três palavras chaves em itálico, autoritarismo, ilusionismo e voluntarismo
resumem o sentido máximo da crítica de Chauí a esses partidos e movimentos
de esquerda que antecederam o PT, e que lhe poderiam fazer algum tipo de desafio
intelectual. Urgia abrir-lhes suas feridas e seus pontos fracos para que fossem
rechaçados e em conseqüência para se pudesse traçar o caminho para a caracterização
novidadeira do PT. Que seria contra tudo isso. Portanto, o PT era e haveria
de ser democrático e participante
em suas decisões, científico, isto
é, não ideológico em sua concepção filosófica, e organizado como estrutura com estratégia de curto e longo prazos.
O PT seria a culminância de toda a trajetória do povo trabalhador, especialmente
desde os românticos imigrantes anarquistas, trajetória que passara por meios
e modos que precisavam ser expurgados porque estavam a conspurcar a pureza
do novo.
A
partir dessas concepções, todas nascidas do movimento político-cultural da
USP, que repulsava os movimentos anteriores, é que o PT se fez discurso ideológico
e prática política pelo Brasil afora. Atraiu o operariado sindicalizado da
grande indústria consolidado pelo desenvolvimento econômico dos anos de chumbo
da ditadura militar, cujas lideranças anteriores haviam sido destroçadas;
atraiu uma juventude de classe média que estivera alienada e sem participação
e que vinha perdendo garantias e privilégios de classe; atraiu conceituados
segmentos da Igreja Católica e o sentimento cristão de ação política em função
da sua anterior negação aos partidos de esquerda, mas que durante a ditadura
estivera do lado dos mais oprimidos e reprimidos; por fim, atraiu políticos
jovens advindos de experiências frustradas e de desencantamento com os movimentos
políticos acima vistos, especialmente da guerrilha. Estes últimos foram, sem
dúvida, os grandes organizadores do PT, compondo atualmente parte de seus
quadros superiores, embora alguns tenham abnegado de suas visões mais radicais.
Por outro lado, os estertores finais da União Soviética já se faziam sentir
nos países periféricos, tal como a Polônia que, naquela conjuntura tinha um
papa, um líder operário de grande carisma e uma organização pré-partidária,
a Solidariedade. A imensa propaganda positiva que Lech Walesa recebeu na Europa
e daí para o Brasil foi integrada em paralelo com o surgimento do PT e com
a figura de Lula. Ambos surgiam como grandes novidades, puras em sentimento
e em ação, e estariam batalhando contra regimes totalitários, autoritários,
enfim, contra o passado que precisava ser enterrado e superado.
No
campo intelectual, a ideologia petista - emoldurada por catedráticos da USP,
que, aliás, por força do desmoronamento da Universidade do Brasil e do ISEB
(Instituto Superior de Estudos Brasileiros), que até o golpe ainda constituíam
baluartes do pensamento de esquerda no Brasil, se tornara hegemônica no pensamento
social da época - se impôs nas universidades, sobretudo pelo uso desenfreado
que fazia do conceito de autoritarismo,
com o qual mesclava todos os movimentos políticos e culturais (exemplo, o
Conselho Popular de Cultura) prévios ao surgimento do PT.
Aqui,
portanto, cabe uma palavra a mais sobre autoritarismo para que fique bastante
clara a importância do uso desse conceito na formação e propagação do PT pelo
Brasil.
III
O conceito de autoritarismo foi introduzido no cenário brasileiro a
partir de um artigo publicado no fim da década de 1960 pelo cientista político
espanhol radicado nos Estados Unidos, Juan Linz. Usando de argumentos retirados
da sociologia weberiana, Linz propunha que o que se passara na Espanha franquista,
em Portugal salazarista, bem como aquilo que estava se passando no Brasil
dominado pelos militares era fruto de uma atitude política própria de uma
fase do capitalismo ainda dominado pelo patrimonialismo. O autoritarismo seria
o exercício do poder obtido por razões de direito que antecediam um verdadeiro
pacto político-social. Assim, independente de estar vivendo num regime ditatorial,
o Brasil de 1968 era antes de tudo um Estado autoritário por força do exercício
do poder sem participação do povo. Para os propugnadores da aplicação do conceito
de autoritarismo, o Brasil tinha sido autoritário desde sempre, fosse no Império,
na República Velha, no Estado Novo e mesmo nos tempos do populismo. Desse
modo, numa cartada só esse conceito reuniu tudo que havia acontecido na história
política e social brasileira reduzindo-a a um denominador comum.
Por sua vez, o autoritarismo político estava arraigado num modo de
ser social, numa psicologia e numa cultura. Por todos os seus poros, o Brasil
seria autoritário: na relação entre burguês e operário, rico e pobre, brancos
e pretos, professor e aluno, enfim, homem e mulher, e por que não, amado e
amada. Todos deviam se cuidar para não serem autoritários, um germe epidêmico
que precisava ser extinto. Quanto mais tradicional na cultura brasileira,
quanto menos consciente do processo de mudanças multifacetadas pelas quais
o país passava, quanto menos enfronhado no novo discurso antiautoritário que
surgia com força nesses tempos, especialmente trazido por uma filosofia francesa
pessimista, cuja porta-voz principal era Michel Foucault, mais autoritário
a pessoa seria.
Mas
quais seriam os critérios que poderiam definir o ser autoritário e a atitude
não autoritária? Quem estaria apto para aplicar esse critério?
Nos
estertores da ditadura militar, como se não quisesse cutucar a onça de vara
curta chamando-a por seu nome verdadeiro, os intelectuais e os políticos com
ares de democratas ou de revolucionários passaram a chamá-la de autoritária.
Ulysses Guimarães, Franco Montoro, o iniciante Fernando Henrique Cardoso,
os cientistas políticos do IUPERJ e da USP, seguidos por seus epígonos, enfim,
os intelectuais que estavam fazendo o PT. Em seguida o conceito de autoritário
foi estendido para o passado mais recente. Sofreram essa pecha sem piedade
o cambaleante Partido Comunista, sem quadros e sem discurso para se reestruturar
no movimento operário ou na jovem intelectualidade; o trabalhismo criador
de líderes pelegos, o insensato populismo piromaníaco. Para usar uma surrada
imagem política, jogaram lama em cima de todos aqueles que estavam voltando
do exílio achando que podiam retomar a história do ponto em que a haviam deixado.
Darcy Ribeiro exemplificou essa atitude negativa ao dizer que os militares
o haviam anistiado, mas não seus colegas da academia!
O
uso do termo autoritarismo se prolongou por uns bons vinte anos. Ainda hoje
se ouve ecos acusatórios, já menos intensos e dirigidos com menos nitidez.
O estrago já estava feito. O autoritarismo foi usado para esvaziar o potencial
de retomada da história brasileira por aqueles cujas carreiras e pensamentos
foram interrompidas pela ditadura. Beneficiaram-se propositalmente aqueles
que, de algum modo, haviam preenchido o vazio deixado pelos exilados nas universidades,
nas instituições de produção de saber ou de propaganda ideológica, nos partidos
políticos. Os beneficiários souberam espalhar nesses meios que os retornados
eram de uma outra era, que estavam defasados intelectual e politicamente,
que não poderiam voltar a ser o que eram antes porque seria uma volta ao passado
autoritário.
Quem
soube se aproveitar melhor dessa conjuntura? O PT e o grupo do PMDB, especialmente
centrado em São Paulo, que mais tarde iria formar o PSDB. Eis porque o PT
está bastante vinculado tanto à ideologia que emana de São Paulo quanto ao
seu fraterno oposto, o PSDB.
IV
Algumas
palavras da relação entre PT e PSDB cabem aqui. Foi mencionado de passagem
que a USP tornou-se hegemônica desde a década de 1970 sobre o pensamento sobre
a sociedade brasileira. Apesar de não ter apoiado o golpe, a USP não sofreu
tanto quanto a Universidade do Brasil e o ISEB, que até então faziam pesquisas
e produziam conhecimento paralelo ao da universidade paulista. As mencionadas
instituições fluminenses foram arrasadas, suas principais lideranças exiladas.
O ISEB se acabou de vez, tendo recebido sua pá de cal pela feroz crítica que
lhe foi feito por um dos jovens próceres da USP, que o cognominou de “fábrica
de ideologia”. Desse modo, a ciência estava preservada no pensamento uspiano,
os demais sendo produtores tão somente de má ciência, de ideologia. Em nenhum
momento desde sempre algum intelectual da USP fez uma análise crítica do surgimento
ideológico desta instituição, e do seu papel político em elevar o pensamento
burguês paulista à condição de superior aos demais pensamentos. Uma análise
sobre o papel dos intelectuais franceses criando uma sociologia que induzia
a se pensar que até então o Brasil não tinha intelectuais e pensadores, que
o Brasil carecia de tradição de pensar, sobre Florestan Fernandes afirmando
seu método como científico (por ser funcionalista e depois marxista), em oposição
ao ecletismo dos demais, sobre o CEBRAP, com o auxílio da Fundação Ford (assim
como o IUPERJ e o Museu Nacional, no Rio de Janeiro) se impondo como arena
de discussão e crítica do período pré-golpe e, na medida do possível, sobre
as alternativas radicais ou negociadas dentro do regime ditatorial. Essas
novas instituições do saber sociológico se impuseram não só academicamente,
mas também político-ideologicamente sobre as instituições similares em todo
o país, especialmente porque conseguiram recursos para pesquisa de fundações
americanas, bem como o domínio sobre os órgãos oficiais de fomento, tais como
o CNPq, a CAPES e a Fapesp. Algum dia é preciso fazer uma análise de por que,
como e por que meios as fundações Ford, Rockefeller e em seguida a MacArthur
foram tão pródigas no financiamento dessas instituições.
Para
além da discussão propriamente acadêmica, de cunho teoricista, a nova discussão
sociológica se esparramou pela mídia a partir de 1976-77 através de revistas
e jornais como Opinião e Movimento. Além de autores estrangeiros revisionistas do marxismo,
ligados a uma tradição weberiana, com laivos de Hanna Arendt, que eram vistos
como os teóricos dos novos tempos, a discussão foi aplicada à atualidade brasileira
com vistas à busca de uma saída para o fim do regime ditatorial, cognominado
“autoritário”. Duas saídas despontaram: uma democracia light, sem radicalismo,
sob a hegemonia burguesa paulista, à la social-democracia européia; ou um
“socialismo” baseado no novo operariado paulista, que emularia os sindicatos
de classe média e por osmose a organização do povo insciente e desorganizado.
Isto é, as duas opções se concretizaram no PT e mais tarde no PSDB.
Diferentemente
do PSDB, o PT se tornou um partido nacional, e não quase que exclusivamente
paulista ou paulistocêntrico, não por causa do seu operariado de fábrica,
mas por causa da simpatia que lhe devotou a jovem classe média frustrada,
até então não participante e confiante no projeto econômico do regime. Politicamente
esse segmento da classe média aparelhou-se nos sindicatos de funcionários
públicos, do professorado, nas incipientes associações da sociedade civil,
nos movimentos a favor de minorias e causas para-políticas, como meio ambiente,
homossexualismo, etc. Por sua vez, a Igreja Católica apoiou a idéia de um
partido que se posicionava contra as ideologias comunista e trabalhista, que
ela tanto atacara desde sempre. Os ideólogos da teoria da libertação propuseram
uma relação mística dos vários segmentos oprimidos do povo com a divindade
e a idéia colou.
Portanto,
na ruptura com a ditadura militar surgiram visões de um novo mundo que rejeitavam
a história brasileira (reificando aquela famosa frase que diz que “brasileiro
não tem memória”) para criarem novas instituições a partir da crítica específica
ao tal regime autoritário. O novo parecia surgir por si mesmo. O novo e sua
mística valeram para arrebanhar a imaginação daqueles que jamais haviam participado
de política e dos que no fundo tinham apoiado os motivos que os golpistas
de 1964 alegavam para ter derrubado o regime democrático pregresso. Nisso
o PSDB, contrapondo-se ao udenismo, ao liberalismo e ao mais recente MDB,
e o PT rejeitando as políticas de aliança comunista-trabalhista-nacionalista
do governo Goulart, despontaram com o mesmo figurino de novidade, como as
duas faces de uma mesma moeda. Não é surpresa, portanto, quando se fala que
suas visões de Brasil e os seus quadros técnicos são intercambiáveis.
V
Duas
observações finais de dois luminares da atualidade darão a medida exata da
relação PT - PSDB e da semelhança de seus projetos político-culturais. Um
deles é Alain Touraine, professor de Sociologia do Trabalho, da Universidade
Sorbonne, amigo de Fernando Henrique Cardoso. Antes ainda do primeiro turno,
ele disse em entrevista que o PT iria ganhar e deveria fazer por bem se aliar
ao PSDB, já que seus quadros advêm da mesma origem e têm pensamentos comuns.
O outro é o poeta Caetano Velloso que, um tanto reticente em declarar seu
voto para Ciro Gomes, falou em seminário na USP que apenas Ciro representaria
algo fora da USP e, portanto, carregava maior representatividade para entender
a complexidade cultural brasileira. Caetano, obviamente, não menospreza a
USP, ao contrário; apenas não a sente capaz de dar conta do que é o Brasil.
De modo contrário, Alain Touraine sobrevaloriza o pensamento uspiano, e despreza
o que há de resto no Brasil. Tal qual o PT e o PSDB.
VI
O
autocentramento do PT tem duas razões de ser. Uma é de constituição de identidade
e diz respeito à preservação de suas características e imagem diante dos eleitores
e das circunstâncias políticas. O PT se consolidou como partido pela consistência
de seu posicionamento político perante a nação. Considerando o jogo político
como algo de legitimidade duvidosa, o PT estabeleceu seus próprios princípios
para jogar. Nos momentos em que lhe foi exigido transigência a alguns desses
princípios, o PT não transigiu. Isto ocorreu durante acontecimentos que são
considerados por muitos como cruciais na história recente do país, a exemplo
da eleição pelo Congresso Nacional do presidente Tancredo Neves, em 1984,
fato simbólico para o fim da ditadura militar; a assinatura da nova Constituição
brasileira, em 1988, fato simbólico para o início de um novo período de democracia;
e a participação político-administrativa no governo do vice-presidente Itamar
Franco, após o impedimento de F. Collor, fato de alguma relevância moral para
o Brasil. Nessas ocasiões, o PT se negou a participar e puniu membros que
ousaram ir contra essa determinação. Nesse sentido, o PT se considera o único
partido “puro” ou legítimo para representar o povo brasileiro, visto como
uma consolidada maioria oprimida.
A
outra razão de autocentramento é estratégica. Refere-se à necessidade de abrir
um caminho próprio diante dos “percalços”, não de “acontecimentos” políticos.
O PT considera que a política no Brasil é uma farsa das elites para enganar
o povo. Assim, todo evento político não passaria de uma encenação, uma ilusão
enganadora, que, portanto, deve ser ultrapassada à luz do interesse estratégico
maior do partido, qual seja, o poder total. O PT rejeita em
princípio alianças de qualquer natureza. Só as tem feito, ou com partidos
que intrinsecamente não mais visam o poder, como o PC do B, ou, nos últimos
tempos, com partidos que lhe possam conferir uma imagem nova, mas que não
forcem mudanças vitais na sua concepção política. O máximo que o PT e seus
administradores concedem a esses aliados de conveniência é negociação de pontos
insignificantes em programas de governo e participação subalterna no poder,
nunca uma simbiose de forças. Nesse sentido, o PT almeja ser o único partido
real, aquele que deve ter o poder ao final, idealmente como partido único.
Que forças sociais dão suporte a esta visão e esta atitude políticas
do PT? Certamente não é sua base trabalhadora, já que se pode supor que, no
Brasil, como de resto no mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os trabalhadores
se posicionam, em relação ao capital, de um modo relacional e negociador,
não de confronto. A não ser por um outro grupelho que professa a adaptação
de um trotskismo canhestro (o maoismo e a glorificação da Albânia já se foram)
ao Brasil, os trabalhadores e a maioria de brasileiros que desejam ser trabalhadores
sindicalizados apostam na negociação, o que implica de algum modo em aceitação
estratégica de sua posição social. Assim, a força social que induz o PT ao
autocentramento advém dos outros dois segmentos que o compõem: o segmento
radical da classe média, que projeta o Brasil à sua imagem e semelhança, e
o segmento de cunho religioso.
Embora de visões diferentes, esses dois segmentos são liderados por
pessoas de idêntica extração social. Destituídos de historicidade, eles apelam
para a elevação de seus estatutos de classe como modelo para todo o Brasil.
Em outras palavras, elas acreditam que seu modo de ser e viver é o que deve
representar e ao mesmo tempo servir de emulação para todo o povo brasileiro,
especialmente os destituídos de significação política e de sentido cultural.
VII
Uma
idéia bastante propalada pelo PT, especialmente nos seus momentos de baixa,
é de que o PT, sua existência, faz bem ao Brasil. Que o PT, pela honestidade
de seus quadros e pela vigilância que mantém sobre “os donos do poder”, é
imprescindível ao país. Que pelo menos dá um peso contrário que ajuda a produzir
um equilíbrio político no Brasil. Ora, não existe monopólio de honestidade
em partido político, nem o PT teve experiências suficientes para demonstrar
que está vacinado contra o vício da corrupção e do peculato. Ao contrário,
suas experiências reiteradas no Rio Grande do Sul, no Mato Grosso do Sul,
em Belém, em Santo André e outras cidades estão a desdizer essa alegação.
Que outros partidos de centro e de direita têm índices bastante mais altos
de desonestidade, não restam dúvidas, mas tudo indica que a inépcia administrativa
do PT provoca perdas igualmente altas ao erário público, bem como atrasa o
caminho do desenvolvimento socioeconômico do país.
Por
sua vez, o espaço cultural onde predomina a honestidade pessoal e pública,
isto é, o respeito ao dinheiro público, não surgiu com o PT, nem é muito menos
um evento recente. Ao contrário do que supõem até bons intelectuais com tendências
petistas, a honestidade pública brasileira existe desde a incepção do espírito
republicano, com os positivistas, passa pela ética e pela moral pessoal dos
comunistas, por largos segmentos do trabalhismo, inclusive pelo próprio Getúlio
Vargas, e faz parte do caráter de uma boa parte da elite brasileira de espírito
público, que ajudou a produzir o desenvolvimento do Brasil. Figuras como Arthur
Bernardes (independente de sua atuação política durante seu período de governo),
José Maria Alckmin, Israel Pinheiro, Barbosa Lima Sobrinho, o próprio João
Goulart e seus principais ministros, apenas para citar aqueles que fizeram
política e administraram o país antes do golpe de 1964, e tantíssimos outros
de porte político menor, são reconhecidos acima de qualquer suspeita. Haverá
muitíssimos mais exemplos que precisam ser reconhecidos como sendo resultado
de um espaço cultural que existe no Brasil, sobre o qual é preciso se refazer
a história política brasileira diante da simplificação a que foi submetida
por uma sociologia apressada e ideológica que domina os centros de conhecimento
e pesquisa do país.
Independente
do PT, a honestidade política e administrativa brasileira é uma virtude real,
com uma história e com um potencial ainda maior para se expandir sobre a desonestidade,
que todos reconhecem. O que mais importa é encontrar os mecanismos e criar
instituições culturais e sociais que favoreçam essa expansão. E estes não
serão predominantemente jurídicos e contábeis, como supõem os próceres da
honestidade petista, corporativamente centrados, herdeiros, junto aos bons
burgueses do PSDB, da aflição legiferante portuguesa para encobrir as realidades
mais profundas e escamotear as saídas culturais para resolver os problemas
brasileiros.
Só
um partido que respeita a história do Brasil será capaz de reconhecer no brasileiro,
pobre, remediado, médio ou rico, e na nossa cultura como meio de formação
de uma identidade maior, o nosso potencial de honestidade pessoal e público.
VIII
Enfim,
é nesse quadro de formação, de visão e de atuação políticas que o PT toma
o poder legitimamente para governar o Brasil. O que se pode dele esperar?
De uma perspectiva positiva e esperançosa, a capacidade de liderar um momento
de mudanças que a sociedade brasileira vem exigindo com grande ênfase: mudanças
na macroeconomia, na qualidade da educação, na distribuição de riquezas, na
forma de vivência política, no posicionamento do Brasil em relação à comunidade
internacional. Uma tal agenda necessitará de forças de apoio e de compartilhamento
de responsabilidades. Governo de coalizão efetiva. Dada a formação genética
do PT, só por um processo de superação dialética, movido pelo sentimento de
responsabilidade do poder, é que o PT, com Lula ao seu leme, poderá constituir
um governo nesses moldes.
Podemos
dizer que o governo Lula terá três adversários a enfrentar: um externo, que
são as condições do imperialismo capitalista; um interno que são as forças
conservadoras brasileiras; e um mais interno ainda, que são os dissensos e
divergências dentro do próprio PT. Os aliados de esquerda vão estar espremidos
entre essas três forças adversárias, certamente buscando meios de intermediar.
Não será tarefa fácil para Lula nem para seus aliados.
Por
sua vez, há o povo, que espera. Em Lula o povo depositou sua esperança, seu
desejo de mudanças para melhorar sua vida. Alguns dizem que o povo tem esperanças
milenaristas, espera um salvador que o redima da sua situação de pobreza e
humilhação. Mas o povo sabe também esperar por esperar, dando tempo a que
as coisas aconteçam e, se acontecerem, delas participará. Não será por uma
propalada organização das forças populares, de cunho comunista-leninista,
ou de cunho sindicalista-petista, que o povo participará. Não é assim, nunca
foi assim, que o povo alcançou em vários momentos da história brasileira a
autoconsciência de sua posição para poder agir politicamente. Não podemos
sucumbir aos apelos da reificação dos sentimentos esquerdistas da classe média
para sindicalizar as relações sociais que se dão no seio do povão. É preciso
encontrar novos caminhos, de razão e lógica cultural, de vivência e convivência,
de experimentação de relacionamento e de atitudes criativas.
A
tarefa do governo Lula é estar ciente de que o povo tem suas razões de ser
e agir e que ele tem que estar atento a isso, conduzindo seu partido e seus
aliados a um caminho firme e seguro. De nossa parte, nossa grande tarefa é
nos mantermos fiéis à história ascensional do povo brasileiro e de seguirmos
na busca de elevar esse povo, ainda recalcado como ser político e como agente
cultural autônomo, ao ponto de consolidação de uma nova cultura mundial. Precisamos
nos manter confiantes de que isto é possível e que assim há de ser feito,
por obra e graça da inteligência e do amor.