ROBERT
LEVINE: UM GIGANTE DO BRASILIANISMO ACADÊMICO
Robert
Levine era o que se poderia chamar um “americano tranqüilo”, mas isso apenas
no trato pessoal, no relacionamento com os muitos amigos, com colegas pesquisadores
e com os estudantes em geral: afável ao extremo, constantemente atento ao
que seu interlocutor tinha a dizer, respondendo com calma, e firmeza, aos
argumentos de um eventual opositor no campo das idéias, ele tinha um charme
discreto e um ar eternamente infantil — as sardas ajudavam — que o fez consagrado
no milieu.
No
campo da pesquisa acadêmica e da produção brasilianista, entretanto, ele era
o contrário de um personagem proustiano: verdadeiro vulcão intelectual em
erupção, produtivo no mais alto grau, de fato um protótipo de Stakhanov do
brasilianismo acadêmico, sua produção acumulada é talvez uma das maiores,
senão a maior, dessa tribo de acadêmicos americanos que, recém saída das bibliotecas
universitárias, resolveu se voltar para um país imenso, sumariamente conhecido
nos EUA como tendo produzido, na “longínqua” América do Sul, uma Carmem Miranda
vagamente parecida com o Zé Carioca, e que ainda continuava a fornecer, nos
anos 1950, a maior parte do café consumido no país.
Difícil
falar de Bob Levine sem mencionar sua produção realmente gigantesca sobre
o Brasil, talvez o equivalente, em número de páginas, a uma Enciclopédia Britânica
inteira, quase toda ela sobre o Brasil, com todas as notas de rodapé a que
temos direito pelas boas regras da citação fundamentada, bibliografias imensas
e seções metodológicas pertinentes, como convém enfim a um full scholar e intelectual distinguido. Aos que gostariam de conhecer
um pouco de sua produção, sugiro acessar a nota biográfica que figura no seu
site da Universidade de Miami, e que remete às listas completas dos livros
e a uma seleção de seus artigos mais importantes: http://www.as.miami.edu/las/levine.htm.
Sem
recorrer aos clichês habituais — de que ele deixou uma marca indelével na
pesquisa histórica sobre o Brasil, por exemplo — cabe ainda assim relembrar
que Bob foi sobretudo um desbravador de selvas arquivísticas e de estradas
poeirentas, em várias partes do Brasil. Seu primeiro livro sobre a pesquisa
historiográfica em nosso país se parece aliás com um desses manuais de terras
incógnitas, freqüentados por exploradores com chapéu de caçador, apropriadamente
intitulado Brazil: Field Guide to Research
in the Social Sciences (New York: Columbia University Institute of Latin
American Studies, 1966), do qual ele foi o principal editor e um dos colaboradores
(junto com outros pioneiros e hoje “velhos” conhecidos da área). Curioso que
um de seus últimos trabalhos também tenha sido um ensaio sobre a pesquisa
em torno do Brasil que ele preparou, a meu pedido, para o livro de avaliação
crítica sobre o brasilianismo acadêmico que resultou de dois seminários organizados
pela Embaixada do Brasil em Washington: O
Brasil dos Brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados
Unidos, 1945-2000 (São Paulo: Paz e Terra, 2002).
Tendo
sido estudante de Stanley Stein, Levine logo integrou aquela categoria de
bolsistas conhecidos como “filhos de Fidel”: eles foram os beneficiários das
preocupações não puramente acadêmicas das autoridades americanas em plena
Guerra Fria e também se beneficiaram da abertura que a elite brasileira permitiu
em seus papéis familiares numa época em que o acesso aos arquivos era difícil
aos pesquisadores brasileiros, até por razões materiais (Levine acedeu, por
exemplo, aos documentos de Vargas através de Alzira Vargas do Amaral Peixoto).
Foram esses jovens doutores em assuntos brasileiros — na verdade, a figura
do brasilianista existe praticamente mais no Brasil do que nos EUA — que passaram
a formar gerações de novos pesquisadores, americanos e brasileiros. Citem-se,
apenas na área de história, colegas de Levine como Richard Morse, E. Bradford
Burns (um pouco mais velhos), Richard Graham, John Wirth, Warren Dean, John
Russell-Wood (britânico, como Kenneth Maxwell), Tom Skidmore, Joseph Love,
Stuart Schwartz, Stanley Hilton, Frank McCann, Robert Toplin, Robert Conrad,
Steven Topik, Neill Macaulay e muitos outros.
Metade
da vida acadêmica de Bob Levine transcorreu na State University of New York
em Stony Brook, de 1996 até 1981, quando então ele inicia nova etapa na Universidade
de Miami, onde se desempenhou como Diretor de Estudos Latino-Americanos. À
primeira fase pertencem os livros The Vargas Regime: The Critical Years, 1934-1938 (1970; publicado
no Brasil apenas dez anos depois), Pernambuco
in the Brazilian Federation, 1889-1937 (1978; um projeto de estudo do
regionalismo político brasileiro, junto com Love e Wirth) e Historical Dictionary of Brazil (1979;
completado com duas bibliografias anotadas sobre o Brasil, de mais de 450
páginas, cada uma). No período subseqüente, ele diversificou enormemente sua
produção historiográfica, tocando em outros países, mas ainda assim publicou
sobre o Brasil, Vale of Tears: The Canudos
Massacre in Northeast Brazil Revisited (1992; uma revisão do drama de
Canudos), Father of the Poor? Getúlio
Vargas and His Era (1998), ademais do enorme The Brazil Reader (1999), um manual quase completo sobre o que se
deve ler para conhecer a história do Brasil. Os artigos de revistas ou capítulos
em livros coletivos se contam às dezenas, assim como as resenhas críticas
e os pareceres que ele deu para diversas editoras universitárias sobre livros
da área.
Quando
o convidei para novo seminário de estudos brasileiros na Embaixada em Washington,
em outubro de 2002, onde deveria receber o título de Brasilianista Emérito
(Distinguished Brazilian Studies Scholar),
ele deixou de comparecer, talvez porque os primeiros sintomas da doença que
viria vitimá-lo já se tivessem manifestado. Esse diploma, que na ocasião foi
atribuído a Tom Skidmore, a Jon Tolman, a Joseph Love e a Werner Baer, lhe
será certamente atribuído, ainda que em caráter póstumo. Bob Levine dispensa,
na verdade, homenagens formais desse tipo, pois sua obra constitui, por si
só, um verdadeiro monumento no campo dos estudos históricos sobre o Brasil.
Eu
ousaria dizer, numa estimação arriscada e provavelmente impressionista, que
sua perda representa a amputação de mais de dez por cento do “PIB histórico
brasilianista”, tão importante foi sua contribuição para esse campo de estudos
acadêmicos nos EUA. De Bob Levine pode-se dizer, com toda tranqüilidade, que,
se ele não pertence, stricto sensu,
à história do Brasil, ele certamente fez
a história do Brasil, mais e melhor do que muitos colegas, no Brasil e nos
Estados Unidos. Nos dois países, em dois continentes, um vácuo histórico acaba
de abrir-se. Saudades, muitas saudades, Bob.
Ver a página pessoal de Robert Levine em:
http://www.as.miami.edu/las/levine.htm
* Doutor em Ciências Sociais. Diplomata.
pralmeida@mac.com, www.pralmeida.org, palmeida@unb.br