A NOÇÃO DE POPULISMO NA FOLHA DE
S.PAULO[1]
Roberto Bitencourt
da Silva *
APRESENTAÇÃO
Ambigüidade e controvérsia são características
marcantes do populismo enquanto noção operacionalizada pelos círculos
acadêmicos. Inversamente, há uma tendência significativa à homogeneização dessa
noção no discurso produzido pela mídia. Tal homogeneização se dá em torno da
idéia de atraso.
Levando em conta essa premissa, o artigo tem como propósito
identificar algumas nuances do deslocamento realizado no uso da noção, do meio
acadêmico para o jornalístico. Ocupamo-nos da análise da apropriação da noção
de populismo operada pelo discurso da Folha de S.Paulo, buscando
identificar a representação simbólica construída no discurso deste jornal, no
ano de 1994, que marca a primeira eleição de Fernando H.Cardoso à presidência.
O combate à inflação e as reformas orientadas para o mercado são alguns dos
temas que demarcam o ano eleitoral em tela. Com base nesse quadro
histórico-político, visamos, essencialmente, identificar quais os tipos de
fenômenos, propostas e atores políticos classificados como populistas, assim
como os motivos políticos e ideológicos que possam ter contribuído para tais
designações.
1 - DOIS MODELOS DE INTERPRETAÇÃO SOBRE O POPULISMO
A construção simbólica do populismo realizada
pela Folha, ou por qualquer outra empresa e veículo de comunicação, não
é obra, única e exclusiva, de uma simples invenção jornalística de
significados. Partimos, pois, do pressuposto que as definições dadas por
publicações científicas exercem substantiva influência na produção
jornalística, conformando certos usos e aplicações interpretativas dirigidas a
determinados fenômenos sociais e atores políticos[2].
Dessa forma, vale assinalar algumas idéias e conteúdos argumentativos presentes
em dois modelos de interpretação sobre o populismo que foram significativamente
apropriados, majoritária e naturalmente sob uma forma fragmentada e residual,
pelo discurso jornalístico da Folha de S.Paulo, em 1994.
i)
Modelo clássico - populismo e
industrialização.
Por modelo clássico designamos um certo
conjunto de abordagens que integram os estudos pioneiros acerca do populismo na
América Latina e no Brasil, em particular. Estes estudos foram realizados a
partir de meados da década de cinqüenta, pelos intelectuais argentinos Gino
Germani e Torcuato Di Tella, tendo por centro a experiência peronista. Outra
razão que nos leva a classificar estas formulações como clássicas é o
fato de que muitas das idéias, definições e (pré)conceitos sobre o fenômeno,
encontrados, freqüentemente, em trabalhos acadêmicos e no uso generalizado do
senso comum, são extraídos, em grande parte de modo fragmentado, do grupo de
interpretações e autores localizados nesse modelo interpretativo.
No Brasil, talvez seja legítimo inferir que os
estudos desenvolvidos por Ianni (1975 e 1991) e Weffort (1989), a partir de
meados da década de 1960 - relativamente influenciados pelo instrumental
teórico produzido por Germani (1973) e Di Tella (1969) - representem, entre uma
vastíssima literatura sobre o tema, aqueles que maior difusão atingiu no meio
acadêmico e jornalístico brasileiro, assim como nas publicações de livros
didáticos de História. Priorizamos, desse modo, suas reflexões acerca do
fenômeno.
Para esses autores brasileiros o fenômeno populista
consistiu, no país, num sistema de dominação e sustentação política que
perdurou durante os anos de 1930 a 1964. É considerado uma etapa no processo de
transformação da sociedade brasileira, marcado pelo incremento da urbanização e
da industrialização. A industrialização substitutiva de importações, orientada
pelo Estado, o nacionalismo e a oposição ao imperialismo e à oligarquia seriam
alguns dos traços mais expressivos do populismo e dos populistas.
Localizando, portanto, o populismo num
contexto histórico-estrutural determinado, formação da sociedade
urbano-industrial, Ianni aponta como um dos fatores explicativos da emergência
desse fenômeno a "ausência de uma classe social suficientemente forte,
politicamente organizada e com visão hegemônica de si para assumir e exercer o
poder sozinha. Por isso a aliança se torna necessária" (Ianni, 1991:
160). O sistema populista consistiria, assim, numa coalizão policlassista, onde
os interesses da burguesia prevalecem.
Um elemento muito recorrente nessas análises clássicas
é a percepção de um suposto caráter imaturo e inconsciente do proletariado
urbano. Essa peculiaridade seria um fundamento objetivo para entender o apoio
popular às lideranças populistas. Conforme avaliação desse modelo
interpretativo, o proletariado não possuía uma socialização adequada para a
criação de organizações partidárias e sindicais autênticas, concretamente
representativas de seus interesses. Estaria sujeito, pois, a uma relação
personalista, demagógica e emocional junto às lideranças
populistas/carismáticas. Seus órgãos de representação e organização primários,
os sindicatos, encontrar-se-iam atrelados aos limites impostos pelo pacto
populista, submetidos à tutela do Estado.
Em síntese, o populismo era apresentado
- nas abordagens de Weffort e Ianni -, como um dos fatores que estavam na base
da ruptura institucional ocorrida em 1964, oferecendo aos trabalhadores, com o
seu "colapso", o desnudamento da exploração capitalista e da natureza
classista do Estado.
ii)
Paradigma econômico.
Esta abordagem sobre
o populismo toma corpo e ganha expressão acadêmica nos estertores dos anos
oitenta, na chamada década perdida, primando pela análise de diferentes
países da América Latina. Tem no economista Bresser Pereira um de seus
principais teóricos.
Como o populismo é concebido como uma
das causas principais à perpetração da crise da dívida externa, da inflação
galopante, da extrema desigualdade social e da instabilidade econômica - entre
outros dilemas e entraves para o desenvolvimento econômico-social de nosso
subcontinente -, o fio analítico que conduz esse marco interpretativo é a
apresentação de razões e fatores econômicos, extraídos de diversas experiências
latino-americanas classificadas como populistas, que demonstrem a inviabilidade
estrutural desse tipo de estratégia política.
Adota-se, como definição dessa estratégia, a
expressão populismo econômico. O que ela viria a significar? Segundo
dois autores, pode ser entendida assim:
uma abordagem à economia que enfatiza o crescimento e a redistribuição
de renda e desconsidera os riscos de inflação e o financiamento inflacionário
do déficit, as restrições externas e a reação dos agentes econômicos a
políticas agressivas que não se valham dos mecanismos de mercado (Dornbusch e Edwards, 1991: 151).
De acordo com o paradigma econômico, o
terreno fértil à ascensão do populismo é a existência de uma situação
recessiva, onde parte da capacidade produtiva encontra-se ociosa e o desemprego
elevado. Propõe-se, com efeito, a ser um programa que estimule o crescimento.
Em geral, esta meta é perseguida através do estabelecimento de um pacto entre a
burguesia e o proletariado urbanos. Possui como cerne o objetivo de reduzir as
desigualdades e os conflitos sociais implementando a seguinte medida: elevação
dos salários. Esta é considerada uma das características nucleares que
atravessam todos os episódios populistas. Contudo, segundo o paradigma
econômico, a despeito de suas boas intenções, o populismo representa uma
política macroeconômica fadada ao fracasso. O controle de preços, o desrespeito
aos limites orçamentários, a manutenção de reduzidas taxas de juros e os
constantes aumentos salariais levariam as sociedades latino-americanas ao caos
econômico. Assim, irresponsabilidade fiscal, inflação, irracionalidade e
demagogia seriam alguns dos componentes do populismo. Um entrave e agressão à
lógica racional dos movimentos do mercado e responsável pela gestão dos
negócios públicos.
Alguns casos populistas identificados
por essa abordagem: no Brasil, sob Vargas, Goulart, Figueiredo (entre 1979 e
1980) e Sarney (especificamente com seu Plano Cruzado); Perón na Argentina;
Chile sob Salvador Allende; Alan García no Peru, entre 1985/88; e o governo sandinista na Nicarágua (1979/1990)[3].
A fim de retirar os países da América Latina
da crítica condição em que se encontravam, é sugerida como alternativa ao
populismo e, também, face ao que Bresser Pereira chama de ortodoxia
neoliberal, a implementação, dentre outras, das seguintes medidas: ajuste
fiscal, redução do Estado e taxas de câmbio realistas.
Independentemente de algumas especificidades
encontradas no seio desses estudos, este foco que privilegia a dimensão
econômica do populismo é marcado pela idéia de uma integração profunda à
economia internacional, considerando-a uma iniciativa favorável ao
desenvolvimento das nações latino-americanas e à superação de suas crises da
dívida e do Estado.
2 - SOBRE A GRANDE IMPRENSA E SUAS INTERAÇÕES
COM O "CAMPO INTELECTUAL"[4]
A fim de esclarecer a razão que nos levou a
optar pela análise do discurso da Folha de S.Paulo, talvez não seja
desnecessário assinalar algumas observações sobre o gênero de jornal o qual a Folha
está inserida, a saber: os jornais da grande imprensa. Acompanhamos a
sugestão conceitual proposta por Alves Filho para a classificação deste tipo de
jornal:
[Jornais] que se estruturam como indústria
cultural e freqüentemente são apontados pelas instituições de pesquisa entre os
de maior vendagem. Posição de preferência que assumem por terem construído e
consagrado, perante o mercado consumidor, a imagem de isenção e independência
frente aos poderes formais do Estado e aos informais, como as classes sociais e
outros "grupos de pressão". Jornais (...) que, funcionando como
indústria cultural, representam-se e são representados por segmentos
substantivos da população - independentemente de serem rotulados
"progressistas", "conservadores", etc. - como comprometidos
com o bem comum, com a informação objetiva e com a interpretação correta dos
acontecimentos (Alves Filho, 2000: 106).
Este tipo de jornal,
como veículo de comunicação que atua como indústria cultural, visa atingir ao
máximo diferentes setores do público, através da oferta de diversas seções e
cadernos, como os destinados à mulher/família, aos esportes,
cultura/eventos de lazer, etc., mas dando uma ênfase especial às
seções de política e economia. Evidentemente seu público-alvo é
composto por estratos sociais detentores de um poder aquisitivo alto e de um
nível de escolaridade mais elevado que a média nacional. Seu público é formado,
pois, por grupos mais influentes junto aos centros de tomada de decisão
econômica e política.
Um requisito é indispensável para a manutenção
e ampliação de consumidores e anunciantes: a credibilidade social.
Segundo Alves Filho (2001), o instrumento utilizado por esses jornais para
atingir tal meta é o pluralismo político-ideológico das colunas. Esse
instrumento possibilitaria a criação de uma imagem isenta, independente e
democrática.
Evidentemente, como argumenta Alves Filho, o
pluralismo das colunas não impede a ocorrência de um fenômeno concreto: a linha
ideológica (ou editorial) que se materializa nos textos dos editoriais e do
noticiário cotidiano, ordenando tanto as interpretações sobre os fatos
noticiados quanto o processo de seleções e combinações existentes na produção
jornalística - como imagens, símbolos, estereótipos e palavras que integram
seus textos. Com relação a esse processo em particular, marcado pelo uso do que
Casasús (1985) denomina como "itens redacionais", vale destacar a
relevância analítica sobre esses elementos que compõem um texto. Diria o autor,
por exemplo, que, "no es lo mismo decir 'activista político' que
'terrorista político'" (Casasús, 1985: 85). Então, em conformidade com
essa reflexão, consideramos que o estudo dos itens redacionais pode
possibilitar a identificação do processo de seleção e combinação de elementos
em uma estrutura redacional, revelando, de modo muito sutil, a ideologia[5]
que move o seu produtor.
É nesse sentido, portanto, que pareceu-nos pertinente
recorrer ao populismo como um recorte de análise, minúsculo, mas
bastante sugestivo, para compreender determinados traços político-ideológicos
estruturais do discurso da Folha. Uma chave valiosa para a identificação
de determinada forma de pensar e interpretar a realidade, por parte de uma
relevante instituição midiática.
Com base no estudo que empreendemos,
analisando os textos dos editoriais, noticiário cotidiano e artigos de opinião,
deparamo-nos com um interessante dado: as seções de opinião, a despeito de não
representarem formalmente a opinião do jornal, possuem grande relevância para a
compreensão de muitos componentes argumentativos presentes nos outros dois
marcos normativos do jornal. Constituem-se, para o que nos interessa em especial,
inequivocamente, numa das fontes de inspiração da representação jornalística
sobre o populismo. Por serem preenchidos, com grande freqüência, por
artigos produzidos por acadêmicos, tendemos a considerar que é exatamente aqui
que abre-se a porta da articulação entre as produções e interpretações
científicas e jornalísticas. Ou seja, independente da polêmica estabelecida
entre diferentes visões de mundo que marca seções desse tipo, veremos que
algumas destas visões, em particular, são apropriadas e ganham ressonância nos
discursos apresentados pelos editoriais e pelo noticiário cotidiano. A análise
dos artigos pode, pois, ser valiosa para a compreensão do deslocamento da noção
de populismo do meio científico para o discurso do jornal. Em alguma medida, as
seções e colunas oferecidas à opinião constituem-se num espaço intermediário,
de interação, entre a produção dos campos intelectual e jornalístico.
Levando-se em conta essa realidade, podemos sugerir que a apropriação
jornalística de idéias presentes em algumas análises produzidas por acadêmicos
tendem a propiciar um respaldo científico, perante o público-leitor, para a
aplicação posterior da noção de populismo (entre outras noções e símbolos) nos
editoriais e no noticiário. A correlação entre as fontes conceituais e
interpretativas das seções de opinião com o discurso jornalístico pode, desse
modo, levar à identificação das conexões entre ciência e jornalismo.
Portanto, a despeito da capa
plural-democrática que envolve as seções de opinião, há uma estreita afinidade
entre o conteúdo majoritário das mensagens presentes no editorial e nas
matérias cotidianas face as perspectivas de alguns articulistas, eventuais ou
fixos. Tal articulação poderá, pois, ser percebida nas seções que seguem
abaixo.
3 - ATRASO: A NOÇÃO DE POPULISMO NA FOLHA
DE S.PAULO
O discurso presente na maioria substantiva dos
textos publicados pela Folha, em 1994, revela-nos uma apropriação, ou
expressiva sintonia, com muitos dos princípios racionalizantes e modernizadores
do paradigma econômico, além de revelar o uso de fragmentos de algumas
idéias do modelo clássico de interpretação, para identificar ações e
atores populistas no cotidiano político[6].
Os valores e crenças presentes na ideologia neoliberal, é claro, também
contribuíram sobremaneira para essa identificação. Dentro disso, é relevante
notar que, como qualquer ideologia, o neoliberalismo possui um certo conjunto
de idéias, símbolos e jargões que orientam o olhar sobre o real.
Aos fenômenos e idéias que não se encaixem nessa estrutura de pensamento,
atribui-se avaliações negativas. Dentro disso, o populismo não escapou ao
complexo jogo de palavras e símbolos utilizados pela ideologia neoliberal.
É, pois, essa composição entre a ideologia
neoliberal e os argumentos extraídos de análises de membros do campo acadêmico
que conformaram, em grande parte, a representação simbólica do populismo,
assim como nortearam a definição de algumas práticas, projetos e atores
políticos como populistas no discurso da Folha.
Como dito anteriormente, o populismo
fora representado como um atraso, tanto na esfera política quanto na
econômica. E, é exatamente nesta última que a eloqüência no questionamento ao
populismo mostrou-se expressiva no discurso do jornal. Em um cenário econômico
marcado pelo aprofundamento das relações internacionais capitalistas, por uma
grave crise financeira do Estado e por anos de espiral inflacionária, dizia-se
que o populismo não tinha mais espaço para responder a esses dilemas e
aos imperativos da modernização econômica. O estatismo, o nacionalismo,
o protecionismo, a autarquização e os gastos inconseqüentes
estariam ou deveriam ser superados e, com isso, o populismo não
representava nada mais do que o símbolo de um mundo identificado com o passado.
Ou seja, um obstáculo que deveria ser varrido das práticas e metas dos
diferentes atores do espectro político-partidário, como se vê nas passagens do
editorial intitulado Cassino emergente, publicado em 24/04/1994,
reproduzido abaixo.
Desde o início dos anos 90, os países em desenvolvimento têm sido
beneficiados por uma nova onda de entrada de capitais. Nos mercados internacionais, essa onda deu origem a uma
denominação bastante estimulante: tais economias passaram a ser conhecidas como
"mercados emergentes". Em muitos casos houve razões para
reencontrar o otimismo. Na América Latina, os ajustes feitos pelo Chile,
México e Argentina mostraram que o populismo e o protecionismo podiam ser
rompidos. Liberalização comercial, privatização, ajuste fiscal e reformas
monetárias bem-sucedidas, (...), acordos das dívidas externas, as
evidências foram se acumulando (...). Parecia iniciar-se uma nova era
(...). (Folha de S.Paulo: 1-2). (GN).
A satisfação com as mudanças que vinham
ocorrendo no subcontinente latino-americano é explícita. O obstáculo à perpetuação
dessas mudanças, o populismo/protecionismo, não podia deixar de ser
mencionado. Agora, veja-se a correspondência entre a avaliação dos dilemas e
entraves à modernidade na América Latina presente no editorial acima com a
linha de interpretação de um artigo elaborado por Bresser Pereira. Publicado
pela editoria Mais!, em 17/07, o economista abordava o tema das reformas
estruturais.
(...) Em ambas as regiões [América Latina e
Leste europeu], o ajustamento estrutural - ou seja, a muito
necessária reforma do Estado - está sendo realizada. Estas reformas enfrentam
obstáculos de todo tipo. Obstáculos originários de uma esquerda
retrógrada,(...), e de uma direita aproveitadora, que preda o Estado (...)
embora consolidado, o capitalismo latino-americano revela-se capenga, atrasado,
produto de uma modernidade incompleta, marcado por desigualdade social selvagem
e pelo populismo (...). (Folha de S.Paulo: 6-3). (GN).
As passagens desses dois textos da Folha
- publicados em espaços normativos distintos, editorial e seção de opinião -
ilustram alguns traços de afinidade interpretativa que se estabeleceu entre
algumas opiniões particulares (que não consistem, formalmente, na opinião do
jornal) com um certo padrão ideológico/interpretativo encontrado no discurso propriamente
jornalístico - editorial e noticiário cotidiano. Ilustram, outrossim, e por
outro lado, um significativo componente que marcou a construção simbólica do
signo populismo, no ano de 1994, representado como uma barreira para o
que se considerava a inexorável modernização, via reformas pró-mercado.
A dicotomia entre o populismo/atraso e as reformas
estruturais/modernização fora recorrente. O populismo
consubstanciava-se numa expressão político-econômica arcaica, que se
encontrava, dentro do cenário político, em uma posição antagônica às chamadas
medidas racionais, responsáveis e corajosas demandadas pelo esforço de
modernização nacional. Esse fora o seu significado. Falta ver a sua aplicação
para alguns atores em especial.
4 - ATORES POLÍTICOS REPRESENTADOS
É na presente seção que o caráter
desqualificatório dado ao termo apresentará sua face mais nítida, contraposto
aos princípios político-ideológicos dominantes da época. Propomo-nos a
apresentar o uso da noção de populismo, efetuado pela Folha, referente a
três personagens políticos de relevância nacional, diretamente relacionados com
a disputa ocorrida em 1994 à sucessão presidencial. Dois destes encontravam-se
na posição de candidatos: Lula (PT) e Brizola (PDT). A outra figura política
colocada em destaque na seção é a do, à época, presidente da República, Itamar
Franco. Guardadas as diferenças existentes entre esses atores políticos -
concernentes aos cargos que ocupavam, aos partidos políticos que pertenciam e
às suas respectivas biografias - os aproximava a oposição às teses neoliberais
(um tanto relativa no caso de Itamar Franco), oposição esta desqualificada pelo
jornal como atraso populista.
É importante destacar que independente do fato
de Franco ter apoiado seu ex-ministro da Fazenda, Fernando H. Cardoso, o qual,
se constituía, também, no candidato preferido da Folha[7],
o então presidente fora alvo de constantes críticas desferidas por esse jornal.
Suas intervenções ou declarações favoráveis à intervenção em setores econômicos
específicos, assim como as concessões de aumentos salariais, motivaram o jornal
a questioná-lo freqüentemente em suas páginas. Pode-se perguntar: qual a
relevância em analisar as matérias relativas a Itamar, já que não era candidato
e apoiava a candidatura defendida pelo jornal? Ensaiamos a seguinte resposta:
suas ações e aspirações governamentais revelavam, exatamente, o perfil político
indesejado pela Folha para ocupar a Presidência da República, ou seja,
uma postura desfavorável aos preceitos contidos na agenda reformista. É, nesse
sentido, que podemos compreender a posição política do jornal e suas críticas,
abertas ou veladas, aos opositores populistas da modernidade em
um marco analítico mais amplo.
Por ocupar o mais alto cargo público,
evidentemente, Franco estaria sujeito a ser bastante mencionado nos textos do
jornal. Entretanto, a incidência majoritária de seu nome no corpo de editoriais
que operavam com a noção de populismo[8]
é uma indicação de que os atos presidenciais foram fonte de preocupação e
crítica, por parte da Folha. Ao longo do ano as críticas a Itamar Franco
foram uma recorrência. Tendo em vista a operacionalização das estruturas
redacionais aos fins deste texto, reproduzimos trechos de um editorial e de uma
matéria do cotidiano.
Em novembro de 1994,
o nome de Itamar Franco fora envolvido em uma polêmica nas páginas do jornal
significativamente representativa do perfil político-ideológico da empresa. A Folha
dedicara alguns espaços do jornal para combater o aumento salarial concedido
aos petroleiros[9]. Utilizando
o dispositivo lingüístico/ideológico populismo para contestar o acordo
estabelecido entre governo e petroleiros, o editorial Acordo a rever,
publicado no dia 15/11, informava sobre a possibilidade de revisão deste
acordo.
O governo tem uma boa oportunidade para rever o lamentável acordo
fechado há pouco com os petroleiros. Itamar Franco convocou para amanhã uma
reunião sobre o tema com quatro ministros e há informações de que o presidente
poderia finalmente estar reconsiderando o resultado da negociação. Como se
sabe,(...), o governo concedeu inoportunas vantagens adicionais a uma
categoria que notoriamente já dispõe de uma série de privilégios desconhecidos
do cidadão comum. São benefícios particularmente condenáveis num momento em que
a estabilização atravessa águas turbulentas (...) o acordo vem mostrar
claramente a força do corporativismo no âmbito do Estado e a facilidade com que
o governo escorrega para o clientelismo mais populista. Isso num momento
em que o país,(...), cobra sinais inequívocos de compromisso com o
saneamento e a racionalização do poder público, cruciais para a
estabilização (...). Pode ser fácil comprar apoio com dinheiro dos
outros, mas é também flagrantemente injusto. É toda população que vai pagar
pelos privilégios concedidos à corporação petroleira, (...). (Folha de S.Paulo: 1-2). (GN).
Vale destacar ao menos dois aspectos das
mensagens que compõem esse editorial: primeiro. O populismo de
Franco é concebido como uma prática política degenerada, irresponsável e
irracional, pois não se coadunaria com a lógica racional que deve
orientar a gestão dos negócios públicos, propiciando, desse modo, a criação de
um ambiente político-econômico favorável ao aumento da inflação e das
dificuldades financeiras do Estado. Ecos das argumentações do paradigma
econômico ressoam explicitamente. Segundo. A definição da categoria
dos petroleiros como uma corporação, evidentemente, denota uma
construção simbólica extremamente negativa, representada como uma espécie de
grupo social que possui normas, valores e objetivos alheios aos da
coletividade, vitimizada no editorial.
Em uma reportagem que revelava a existência de
divergências entre Franco e sua equipe econômica, a matéria intitulada Presidente
quer tabelamento dos juros e atropela equipe: Planalto pede regulamentação do
artigo que fixa taxas em 12% ao ano, de 11/06 (publicada na editoria
Brasil), não deixava margem à dúvida sobre que lado o jornal concebia como
correto.
A equipe econômica considera que está perdendo as rédeas do Plano
Real. Depois de ter sido atropelada pelo
presidente Itamar (...) nos aluguéis, mensalidades escolares e lei antitruste,
a equipe encontra-se diante de maior ameaça, o tabelamento de juros. Itamar
pediu ao deputado Benito Gama (PFL-BA) que acelere a preparação de projeto de
lei que regulamenta o parágrafo 3o do artigo 192 da Constituição,
pelo qual os juros reais (descontada a inflação) não podem ser superiores a 12%
ao ano (...). Ocorre que o deputado havia recebido solicitação exatamente
contrária do ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, isto é, que atrasasse o
máximo possível a apresentação do projeto (...). Todos os integrantes da
equipe econômica, sem exceção, consideram o maior absurdo a tentativa de
tabelar juros. Acham que isso é teoricamente errado, inviável na prática e
incorreto politicamente. Se (...) Itamar sustenta a visão populista de
que os juros altos são provocados pela ganância dos bancos e a cumplicidade do
Banco Central, os economistas da equipe acham que as taxas elevadas são
conseqüência do estado inflacionário crônico da economia brasileira (...). Para
esses economistas, não é preciso prender empresário para baixar preços.
Para eles, os preços ficarão estáveis porque o déficit público está sob
controle, a economia contida, sem excesso de demanda (...). (Folha de S.Paulo: 1-5). (GN).
As passagens dessa matéria e do editorial
possibilitam-nos a constatação de um dado básico, presente no discurso da Folha:
o descontentamento do jornal com o fato de a Presidência da República, à época,
ser ocupada por um populista, ou seja, um ator político que não se
enquadrava apropriadamente ao que o jornal considerava como requisitos
político-ideológicos necessários para a consecução das reformas pró-mercado.
Dentro disso, a polarização entre o populismo/irracionalidade, de um
lado, e o saber técnico/racionalidade, de outro, salta aos olhos. É
interessante observar, nesse sentido, que a matéria chegava a sugerir um
antagonismo entre a irracionalidade de Franco e o saber técnico, eficiente
(supostamente neutro), de sua equipe econômica. A lógica do mercado,
desconsiderada por Franco, seria entendida pelos interlocutores da matéria - a
equipe econômica.
No que tange a candidatura Lula, um
interessante fenômeno a ser observado é a predominância da utilização do signo
populismo - a esse candidato, do Partido dos Trabalhadores - em um período
determinado, a saber, os meses de junho e julho. A maioria substantiva das
matérias do cotidiano que assim classificaram o candidato petista localizam-se
nesse espaço de tempo. Talvez não seja desnecessário lembrar que este período
consiste exatamente no momento inicial, de aquecimento, da corrida
eleitoral, com candidaturas já definidas. Nesse sentido, os dados levantados
pelo Datafolha, em 1994, trazem oportunas informações para a reflexão: entre os
meses de abril e maio - que marca o início das sondagens realizadas pelo
Datafolha à eleição presidencial - Lula encontrava-se numa posição bastante
folgada frente os outros candidatos. Porém, entre junho e julho, as pesquisas
apresentavam uma queda vertiginosa na intenção de voto para Lula. Fernando H.
Cardoso, por outro lado, crescia rapidamente nesse intervalo de tempo, a ponto
de encontrar-se praticamente empatado com Lula em fins de julho[10].
Evidentemente, não queremos afirmar com isso
que a designação de populista realizada nesse período tenha apresentado
influência de tal magnitude nas intenções de voto. Não cabe uma hipótese desta
natureza, entre outros, pelo simples fato de que o público-leitor da Folha
é extremamente restrito a setores regionais e socioeconômicos específicos. Além
disso, não temos instrumentos metodológicos capazes de avaliar o impacto das
mensagens nesse público particular. No entanto, mesmo consideradas uma série de
possíveis variáveis intervenientes, como a implantação do Plano Real (associada
a uma grande difusão midiática sobre os possíveis frutos advindos desse plano
econômico) pode-se argumentar que, no mínimo, essa coincidência é bastante
curiosa. Pode-se sugerir, pois, que a presença do populismo no discurso
da Folha configura um pequeno recorte, mas sugestivo sobre a postura de
diversas empresas de comunicação. A Folha, como outras empresas,
contribuiu para a divulgação tanto de uma imagem positiva do candidato que veio
a se sagrar vitorioso no pleito, quanto negativa de seus adversários (Lula, em
especial)[11].
Eleições 1994 : Evolução da intenção de voto para a Presidência da
República
Fonte: Datafolha.
Transcrevemos, assim, passagens de duas
matérias do cotidiano, uma que demonstra inspiração nas premissas do paradigma
econômico e outra que denota o uso de uma idéia, residual, do modelo
clássico.
No domingo de 03/07/1994, a Folha
publicava uma reportagem onde discutia-se a polarização política estabelecida
entre as candidaturas Cardoso (PSDB), de um lado, e Lula (PT), Brizola (PDT) e
Quércia (PMDB), de outro. A reportagem (publicada na editoria Mais!)
apresentava o seguinte título: Os dois lados da moeda - o real divide a
sucessão e traz à tona o debate sobre a adesão do país ao Consenso de
Washington. As consonâncias interpretativas com o paradigma econômico
são grandes. Observe-se o que diz a matéria:
O real, que desde sexta-feira rege o cotidiano dos brasileiros, é
o primeiro passo para estabilizar a economia e viabilizar a retomada do
desenvolvimento do país, integrando a massa de miseráveis e desempregados (...)
? Ou, pelo contrário, a nova moeda é o (...) embrião de um processo de
radicalização do apartheid social que divide o país em dois mundos? (...) Do
lado do real está o senador (...) Cardoso (...). Do outro, estão
os seus adversários, (...) Lula (...), (...)
Quércia (...) e (...) Brizola (...). Une os três últimos a
avaliação comum de que a nova moeda representa, mais do que a materialização de
um plano eleitoreiro, algo muito mais profundo - o início da submissão do
Brasil ao chamado Consenso de Washington (...). Não há entre os ideólogos
de Lula, Quércia e Brizola um que não veja na figura de Fernando Henrique a
encarnação do Consenso de Washington entre nós. Pior que isso. Para PT, PMDB e
PDT, o resultado lógico desse caminho (...) é o aprofundamento do apartheid
social no país (...). Diante de tais críticas, a resposta pelo lado do PSDB
(...) "Trata-se de uma grande sacanagem", diz o economista (...)
Bresser Pereira, coordenador financeiro da campanha de Fernando Henrique,
"confundir o projeto do PSDB para o país com as teses chanceladas pelo
Consenso de Washington". Segundo Bresser, PT, PMDB e PDT representam
matizes diferenciadas de um mesmo "populismo arcaico". Todos os três
estariam amarrados a uma concepção de Estado nacional-desenvolvimentista que
está historicamente esgotada (...). Adotada em mais de 60 países do mundo
inteiro, a bula de Washington se transformou no verdadeiro esperanto da
economia contemporânea. Fugir dela, tentar escapar a esse destino (...) talvez
signifique cair na rota da "africanização", da exclusão definitiva do
país do quadro do capitalismo. Este é o ponto que transcende as candidaturas
FHC e Lula e as reduz a tentativas ilusórias de vencer a barreira do apartheid (...)
o enorme dispêndio de energia de cada um que se põe a discutir as opções entre
Lula e FHC talvez não passe de um esforço vão,(...), uma ilusão necessária para
driblar o desconforto causado pela idéia de que estamos apenas no início de um
processo inexorável (...). (Folha de S.Paulo: 6-4). (GN).
Estas passagens da matéria são bastante
expressivas. Contribuem para o elucidamento tanto do referencial analítico que
a norteia, quanto da apropriação político-ideológica do signo populismo. Em
primeiro lugar, o neoliberalismo - combinado com algumas teses do paradigma
econômico, pois há uma menção explícita do nome de um intelectual, Bresser
Pereira, que opera com essa versão do populismo - constitui-se em
evidente orientação interpretativa para a análise dos dilemas brasileiros da
época. Em segundo, o uso das declarações de Bresser Pereira consiste em uma
espécie de narração copresente, ou seja, serve ao propósito de legitimação
acadêmico-científica (técnica e racional) para as argumentações conclusivas do autor
da matéria. Em terceiro lugar, o populismo aparece como um oportuno dispositivo
simbólico para a desqualificação das candidaturas opostas ao Plano Real e a
chamada política reformista/modernizante. Uma expressão política arcaica,
esgotada. Por último, é interessante notar as afirmações finais da matéria.
Argumenta-se que os problemas e soluções para o país são comuns, independente
das posturas políticas dos candidatos. Sendo assim, podemos deduzir que se
fosse para aplicar a receita do ajuste fiscal, supostamente inescapável
a qualquer candidato, melhor que o eleitor optasse por aquele que já tinha
participado de sua implementação (no caso, Fernando H. Cardoso). A
"interpelação" (Althusser; 1998) dirigida ao leitor - materializada
em argumentos dramáticos - é claramente operada pela matéria.
Também num domingo, 05/06, a editoria Brasil,
sob a eloqüente legenda Não se deixe enganar, discorria sobre um ato de
campanha do candidato do PT.
Na última terça-feira, o candidato do PT à
Presidência, (...) Lula (...) prometeu asfaltar as ruas de Samambaia,
cidadade-satélite de Brasília. "Tem que asfaltar, mesmo com asfalto de
qualidade inferior". Asfaltamento de ruas não é atribuição imediata do
governo federal, apesar de a Constituição até prever gastos da União para
reduzir desigualdades regionais. Também não é possível imaginar que a
Presidência possa se ocupar, administrativa ou financeiramente, das ruas de
cerca de cinco mil municípios brasileiros. A promessa, pontual e localizada,
tem caráter populista. Um presidente tem que criar condições de desenvolvimento
e de saneamento das finanças públicas em geral para permitir que esferas
descentralizadas de governo tomem decisões de caráter local. (Folha de S.Paulo: 1-7). (GN).
Uma das idéias que percorre o estereótipo de populista
imputado acima a Lula é a demagogia, um dos chavões mais difundidos
sobre o populismo e baseado no modelo clássico. Vale aqui destacar que a
matéria não desqualifica somente a "promessa" do candidato.
Observe-se a argumentação conclusiva do jornal, que não só informa as
atribuições de um presidente, como também, sugere, como implicação direta, que
Lula não possuía conhecimento (quem sabe preparo?) sobre o papel a ser cumprido
pelo mais alto magistrado da nação.
Por
fim, com relação ao candidato do Partido Democrático Trabalhista - PDT, Leonel
Brizola, o dado mais relevante a ser destacado no emprego do dispositivo
simbólico populismo para qualificar sua postura e idéias políticas, foi
a primazia de uma representação simbólica baseada na apropriação de premissas
concernentes ao modelo clássico de interpretação. Em caráter
relativamente secundário, operou-se a construção do populismo brizolista
fundada em algumas idéias do paradigma econômico. Dessa forma, o
conjunto de idéias que percorrem as diferentes estruturas redacionais do jornal
- editorial, noticiário cotidiano e artigos de opinião -, na representação
desse ator político, pode ser assim salientado: debilidade organizacional dos
partidos; prevalência do líder sobre as regras e normas internas ao partido;
demagogia; nacionalismo; e modelo de desenvolvimento historicamente marcado
(anos 50) e, com efeito, superado. De qualquer modo, e genericamente,
imputava-se um caráter atrasado a esse candidato presidencial.
Considerado ultrapassado no âmbito econômico, devido ao fato de Brizola se opor
aos preceitos hegemônicos privatizantes, e no campo político, onde é assinalada
sua desconsideração à democracia partidária interna. Como a idéia de atraso
pode perpassar tanto as interpretações tipificadas pelas teses das abordagens
do modelo clássico quanto as do paradigma econômico, tendemos a
considerar que, com regra, também a ideologia dominante, neoliberal, presente
no discurso jornalístico, contribuiu substantivamente para tal designação.
Reproduzimos, portanto, passagens de uma
matéria do cotidiano político e de dois artigos de opinião.
Em 03/07/1994,
publicava-se uma entrevista, pela editoria Mais!, com Mangabeira Unger, então
membro da campanha de Brizola à presidência. Vejamos as notas introdutórias à
entrevista - intitulada O ideólogo da terceira via: Mangabeira Unger, do
PDT, expõe projeto alternativo a Lula e FHC - para percebermos como o
jornalista, através de uma difusa (e difundida) construção simbólica externa ao
jornal, concebia a figura de Brizola.
"A ladainha brizolista das perdas internacionais nunca foi
tão atual, justamente agora que saiu de moda". Quem fala é o cientista
político Roberto Mangabeira Unger (...). Correndo por fora no debate sobre a
sucessão presidencial, Mangabeira continua sendo o maior ideólogo do candidato
Leonel Brizola e o consultor preferido do presidenciável do PDT. Na entrevista
que segue,(...), Mangabeira (...) diz que Brizola é o presidenciável
"menos suscetível de conformar-se ao Consenso de Washington", que ele
vê representado na figura de Fernando Henrique (...). Brizola, apesar de
ser considerado à esquerda e à direita um representante do velho populismo que
a história atropelou (...).
(Folha de S.Paulo: 6-5). (GN).
Constituindo-se num tipo freqüente de análise
sobre Brizola nas páginas do jornal, notadamente nas seções de opinião,
remetendo o leitor à idéia clássica de demagogia, o artigo de Hélio
Jaguaribe, intitulado O Rio dominado pelo crime, questionava a gestão de
Brizola à frente do governo do Estado do Rio de Janeiro. Publicado em 01/11, na
editoria Painel, o artigo afirmava, entre outros, que:
(...) A mais inequívoca e ostensiva característica do Grande
Rio de Janeiro, presentemente, é o fato de se encontrar sob o domínio do crime
organizado (...). O crime regula a vida da cidade, impondo, a seu
arbítrio, interdições no uso de determinadas áreas. Tiroteios se tornaram
parte da rotina urbana, não somente nas favelas, mas no próprio centro urbano,
em Ipanema, nos túneis, na Linha Vermelha. Crescem em escala geométrica os
assaltos, seqüestros e assassinatos (...). Nenhuma cidade com pretensões à
condição civilizada,(...), esteve submetida, tão ampla e impunemente, como o
Rio, ao domínio dos bandidos. Como se pode chegar a tal situação? Como sair
dela? O domínio do Rio pelo crime, como todos os fenômenos sociais mais
complexos, decorre da conjugação de muitos fatores e requer, para sua
análise, que se diferenciem distintas camadas de profundidade (...). (Folha de S.Paulo, seção Tendência/debates: 1-3). (GN).
Após discorrer sobre algumas razões para tal
fenômeno, o articulista argumenta que:
Mencione-se, finalmente, o fenômeno do brizolismo, que tem, direta
ou indiretamente, controlado a política do Estado nos últimos 12 anos, o qual,
independentemente das boas intenções sociais de seu líder, resultou num
populismo das massas marginais, no âmbito das quais opera o crime organizado,
gerando, assim, situações em que a repressão a este suscita naquelas efeitos
negativos (...). (Folha de S.Paulo: idem). (GN).
Alguns meses antes, em 10/07, inserido no
contexto das campanhas à presidência, Bresser Pereira questionava a concepção
político-econômica dos opositores do candidato do PSDB, Fernando H. Cardoso.
Publicado na editoria Painel, seu artigo Consenso do atraso apresentava
argumentações nitidamente afins ao paradigma econômico:
Transformou-se em moda, entre certos intelectuais que apóiam Lula,
Brizola e até Quércia, afirmar-se que a candidatura Fernando Henrique
representaria o Consenso de Washington no Brasil (...). Nesta Folha, no caderno Mais!, esta perspectiva foi
apresentada com grande estardalhaço. Não apenas (...) Cardoso seria um
conservador neoliberal, mas seu plano de estabilização - o Plano Real - também
seria uma manifestação daquele consenso. Minha primeira reação, quando li tais
sandices, foi ignorá-las. Revelam um tal desconhecimento do que seja o
neoliberalismo e indicam um tal apego a idéias arcaicas, a um
nacional-desenvolvimentismo esquerdista dos anos 50, que não pude evitar a
sensação de estar diante de um consenso do atraso. Atraso
misturado a razões eleitorais. Entretanto, é preciso admitir que a
identificação que esse tipo de esquerda, populista e fora do tempo, vem
fazendo de políticas e reformas econômicas sensatas,(...), com o neoliberalismo,
é um fenômeno generalizado. Transformou-se,(...), em uma estratégia retórica
dessa visão nacionalista, para a qual tudo o que não estiver de acordo com seu
velho figurino é neoliberal (...). Neoliberalismo não é ser a favor de
disciplina econômica e reformas orientadas para o mercado, mas acreditar que o
mercado possa ser o único coordenador da economia (...). O Brasil jamais
se deixou levar por semelhante dogmatismo de direita, mas não pode (...)
continuar vítima de um nacional-populismo tacanho e arcaico, que quer
condenar o Brasil ao atraso (...). (Folha de
S.Paulo, seção Tendências/debates: 1-3). (GN).
CONCLUSÃO
Considerando que a representação do fenômeno
populista não podia ser obra, única e exclusiva, de uma invenção da mídia
impressa, recorremos à análise das seções de opinião e debate oferecidas pela Folha
à publicação de textos produzidos, entre outros, por indivíduos ligados aos
círculos acadêmicos; além, evidentemente, do noticiário e dos editoriais. As
seções de opinião são valiosas para o estudo do discurso jornalístico, pois
tendem a constituir-se num espaço de interação entre as produções científicas e
jornalísticas. Nesse sentido, talvez seja possível argumentar que esse espaço
constituiu-se numa fonte analítica aberta à identificação do deslocamento da
noção de populismo do "campo intelectual" para o jornalístico. Por
mais plural que sejam essas seções de opinião, interpretações e definições
particulares dadas por alguns articulistas alcançaram uma grande ressonância
nos discursos dos editoriais e do noticiário cotidiano.
Se tratarmos o
estudo realizado por esse artigo, também, como um recorte de análise da posição
do jornal na campanha presidencial de 1994, podemos afirmar que ele apresentava
uma postura abertamente favorável à candidatura de Fernando H. Cardoso. Esta
seria considerada, em última instância, representantiva da necessária
modernização[12]. Aos atores
e candidatos que se distanciavam desse figurino restavam a desqualificação - a
pecha de populismo, entre outros rótulos e estereótipos.
O discurso da Folha
evidenciava uma representação da noção de populismo pautada, essencialmente,
pelas seguintes idéias: atraso, estatismo, instabilidade, irresponsabilidade
e irrealismo. Um contraponto e entrave à modernidade, à flexibilidade
produtivo-econômica, à estabilidade, à responsabilidade e
ao pragmatismo, requeridos, segundo o jornal, pela sociedade
brasileira. Requerido, como se sabe, também, ou principalmente, pelo
capital financeiro internacional.
De uma categoria trabalhada no
"campo intelectual", com fins de análise científica de fenômenos
presentes nas sociedades e nos sistemas políticos latino-americanos, o
populismo metamorfoseou-se no discurso da Folha de S.Paulo em um
instrumento ideológico importante e generalizante para a desqualificação de
projetos e atores políticos que, em 1994, buscavam alternativas aos cânones
neoliberais[13].
[1] O presente artigo constitui-se numa versão de minha dissertação de mestrado intitulada O populismo como arcaísmo e estatismo, na Folha de S.Paulo e no Jornal do Brasil, defendida no PPGCP/UFRJ.
[2] Tratamos sobre a interação existente entre as produções acadêmicas e jornalísticas na próxima seção.
[3] São ressaltadas algumas particularidades da experiência sandinista, tais como: (i) quando da tomada do poder do Estado, a economia era significativamente fundada no setor rural; (ii) a industrialização por substituição de importações não constou na proposta programática; (iii) os esforços governamentais foram bastante dirigidos à expansão de redes de abastecimento de água, de postos de saúde e escolas. O que leva à sua inclusão na categoria (expondo motivos que, em verdade, nos deixa perplexos) é o fato desse governo ter desconsiderado os limites orçamentários, destinando vultosos recursos à guerra civil frente os contras, assim como devido a instabilidade causada pela incerteza acerca dos direitos de propriedade. Como resultados, a ocorrência de graves prejuízos econômicos e a explosão inflacionária. Ver CARDOSO, Eliana e HELWEGE, Ann. "Populismo, gastança e redistribuição" : 201/232.
[4] Muito esquematicamente, pode-se dizer que o "campo intelectual" é um espaço de alta especialização, detentor de regras e procedimentos particulares, marcado, entre outros, por embates teóricos pela obtenção de sinais e visões de mundo específicos que venham a hegemonizá-lo. Ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico.
[5] Por ideologia basta dizermos que seguimos a definição dada por Althusser, ou seja, entende-se como um complexo de representações, valores e crenças que se materializam em ações objetivas, a partir daquilo que o autor chama de "interpelação", ou apelo, ao indivíduo, chamando-o a posicionar-se em conformidade com os rituais e normas que compõem uma dada ideologia. Um fenômeno socialmente derivado, em última instância, da luta de classes, que se origina na esfera infra-estrutural - nas relações sociais de exploração e produção. Ver ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado.
[6] Com relação ao modelo clássico, especificamente, é mais adequado, concretamente, afirmar que houve uma apropriação fragmentada de algumas de suas teses, pois, esta apropriação distancia-se, em muito, do centro de argumentação dos estudos de Ianni e Weffort, que concebiam o socialismo como meta de organização social. Em linguagem marxista, seus estudos interpretariam o populismo como uma espécie de reformismo, enquanto a apropriação jornalística da Folha é caracterizada por um tipo de interpretação crítica sobre o populismo marcadamente conservadora.
[7] Como se poderá perceber no curso do artigo, à partir da reprodução de um e outro texto jornalístico.
[8] Em um conjunto de 27 editoriais da Folha que utilizaram a noção de populismo para interpretar algum fato cotidiano, 11 foram destinados ao presidente Itamar Franco. Nesse conjunto de editoriais prevaleceram as abordagens afins ao paradigma econômico.
[9] O editorial de 12/11 apresentava uma argumentação recheada de símbolos e estereótipos desqualificatórios: "O acordo entre o governo e os petroleiros atropelou a direção da Petrobrás (...). O desfecho das negociações mostrou claramente uma tendência à acomodação de interesses, se não ao populismo mesmo, por parte do governo. Foi um passo exatamente na direção contrária à das reformas que se esperam para o setor público. Para estabilizar o país é necessário sanear o Estado e, para tanto, combater o corporativismo, privilégios, gastos fisiológicos e clientelistas". Ver Folha de S.Paulo: editorial. Papai Noel irresponsável : 1-2. 12/11/1994.
[10] Ver quadro que segue abaixo.
[11] A análise realizada por Albuquerque traz à luz fecundas informações sobre a postura da Rede Globo relativa à eleição presidencial, entre os meses de março e maio. Ver ALBUQUERQUE, Afonso de. "A campanha presidencial no 'Jornal Nacional': observações preliminares".
[12] Vale acrescentar que essa preferência não foi, evidentemente, uma marca apenas da campanha de 1994, nem uma exclusividade da Folha. Durante anos de governo Cardoso os mais diversos recursos argumentativos e técnicas de redação foram disponibilizados pela grande imprensa para a defesa das políticas implementadas por seu governo. Ver BIONDI, Aloysio. Mentira e cara-durismo (ou : a imprensa no reinado FHC).
[13] Nossa
análise do discurso da Folha contempla exclusivamente o ano de 1994. Mas
não é desnecessário lembrar que o símbolo populismo é ainda demasiado candente,
bastando um momento propício para ser retirado da gaveta. Nesse sentido,
o dia 12 de abril de 2002 foi exemplar. Refiro-me à tentativa de golpe na
Venezuela, sobre o presidente Hugo Chávez. A Folha de S.Paulo assim o
caracterizou: "falante, sonhador, populista, nacionalista" (...)
(Folha Online: Saiba mais sobre o ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez.
12/04/2002).
Há
de se convir que a combinação de adjetivos não é das mais favoráveis ao então
deposto presidente. No mínimo, seu populismo é representado como uma
manifestação de irracionalidade e irrealismo ("falante" e
"sonhador"). A seqüência da matéria não dá margem à dúvida: entre
outras razões mencionadas, "a insatisfação contra Chávez cresceu devido
(...), à agenda de esquerda" (Folha
Online: idem). O posicionamento político-ideológico do jornal é
evidente, como também a mensagem: metas e atores populistas/esquerdistas
são uma péssima opção política, causam "insatisfação popular" e o
caos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALBUQUERQUE, Afonso de.
"A campanha presidencial no 'Jornal Nacional': observações
preliminares". Comunicação & política I, n. 1, ago-nov. de
1994. Disponível na INTERNET via http://www.cebela.org.br/Revista/V1n1-1994.htm
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos
ideológicos de estado. Ed. Graal. Rio de Janeiro. 7a ed. : 1998.
ALVES FILHO, Aluizio.
"O noticiário da mídia e a 'velhinha da motocicleta'". PUC: Rio de
Janeiro. Alceu 3, n.2; jul/dez. 2001. P. 54-77.
____________ . "A ideologia como ferramenta de
trabalho e o discurso da mídia". Comum 15, n. 5. Faculdades
Integradas Hélio Alonso: Rio de Janeiro. Ago/dez. 2000. P. 86-118.
BIONDI, Aloysio. Mentira
e cara-durismo (ou: a imprensa no reinado FHC). Página eletrônica da
Faculdade Cásper Líbero. 1999. Disponível na INTERNET via http://www.fcasper.com.br/jo/anuario/1999/biondi.htm
BOURDIEU, Pierre. O
poder simbólico. Ed. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro. 4a ed.:
2001.
BRESSER PEREIRA, L. C. Populismo
econômico: ortodoxia, desenvolvimentismo e populismo na América Latina. Ed. Nobel: São Paulo. 1991. Cap. 4:
Populismo e política econômica no Brasil.
CARDOSO, Eliana e
HELWEGE, Ann. "Populismo, gastança e redistribuição". In: BRESSER
PEREIRA, L. C. Populismo econômico: ortodoxia, desenvolvimentismo e populismo
na América Latina. Ed. Nobel: São Paulo. 1991. P. 201-232.
CASASÚS, Josep Maria. Ideologia y análisis de medios de
comunicación. Editorial
Mitre: Barcelona. 3a edição. 1985.
DATAFOLHA. Evolução da
intenção de voto para a Presidência da República - Eleições 1994. Disponível
na INTERNET via
http://uol.com.br/folha/datafolha/eleicoes1994/eleicoes_1994.shtml
DI TELLA, Torcuato. "Os processos
políticos e sociais da industrialização". In: COSTA PINTO, L. A., e
BAZZANELLA, W. Processos e implicações do desenvolvimento. Zahar
Editores: Rio de Janeiro.1969. P. 73-105.
DORNBUSCH, Rudiger e
EDWARDS, Sebastian. "O populismo macroeconômico na América Latina".
In: BRESSER PEREIRA, L. C. Populismo econômico: ortodoxia,
desenvolvimentismo e populismo na América Latina. Ed. Nobel: São Paulo.
1991. P. 151-190.
FOLHA DE S. PAULO.
Edições de 1994.
FOLHA ONLINE. Saiba
mais sobre o ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez. 12/04/2002. Disponível
na INTERNET via http://www.uol.com.br/folha/mundo/ult94u39887.shl.
GERMANI, Gino. Política
e sociedade numa época de transição. Ed. Mestre Jou: São Paulo. 1973.
IANNI, Octavio. A
formação do estado populista na América Latina. Ed.Civilização Brasileira:
Rio de Janeiro. 2a ed.:1991.
_____________ . O
colapso do populismo no Brasil. Ed. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro.
3a ed.:1975.
WEFFORT, Francisco. O populismo na
política brasileira . Ed. Paz e Terra: Rio de Janeiro.4a
ed.: 1989.
Resumo: O propósito do artigo é identificar
algumas nuances do deslocamento operado no uso da noção de populismo, dos meios
acadêmicos para o discurso jornalístico.
Palavras-chave: populismo, grande imprensa,
eleições presidenciais de 1994 e ideologia.
* Mestre em Ciência Política pelo
PPGCP/UFRJ e professor de Sociologia do Colégio de Aplicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
E-mail: betobitencourt@hotmail.com