ALCÂNTARA, ESPAÇO E TERRA. UMA POPULAÇÃO EM OBLÍVIO

Ingrid Sarti *

          Muito se tem falado  sobre a base de Alcântara, não apenas para lamentar o acidente com o VLS-1 (o Veículo Lançador de Satélites) em agosto de 2003, como para enfatizar as excelentes condições do local para lançamentos de satélites que são fundamentais, entre tantas outras coisas, para nosso cotidiano marcado pela onipresença das telecomunicações. No momento, pensa-se inclusive na viabilidade de o Centro Lançador de Alcântara-CLA servir de base aos satélites que formarão a rede Galileo, criada pela União Européia para ser operacional a partir de 2008.

          Contudo, há outro ângulo, do qual pouco se fala e que, particularmente quando se discute o projeto de expansão do CLA, deve ser considerado. Um ângulo que nos traz do espaço de volta à terra — à terra de Alcântara. Trata-se de sua gente, remanescente de quilombo que ali ficou vivendo das tradições culturais herdadas do legado da escravidão porém cultuando, em liberdade, valores comunitários próprios de seus quase três séculos de existência. Sua permanência na região das antigas plantações de algodão consolidou-se no período pombalino e constituiu a afirmação de uma identidade marcada pela demolição das casas-grandes e dos engenhos abandonados, um processo de desconstrução das ruínas da aristocracia para construir uma nova forma — o quilombo, que ali recria sua cultura.

          Como a população de Alcântara é hoje considerada um grave problema da política espacial, cabem algumas considerações a titulo de esclarecimento. Em detalhes,  na 56ª Reunião da SBPC, o conflito entre o projeto espacial e povo de Alcântara foi  debatido no simpósio Territórios étnicos e conflitos na base de lançamentos de Alcântara, com exibição de “Terras de quilombo – uma dívida histórica” (Murilo Sales, 2004), documentário apoiado no  laudo antropológico que constitui o mais completo documento produzido sobre a situação social na área, de autoria de Alfredo Wagner. **

          Por que um problema? Porque, em que pese o privilégio do local para assentar a base espacial,  o Centro Lançador de Alcântara é terreno ocupado pelo projeto militar espacial, desde 1980. Pretende ocupar 62.000 hectares, incidentes no território étnico das comunidades remanescentes de quilombos que hoje corresponde a 85 mil ha, numa área encravada nos 114 mil que demarcam o município de Alcântara. Nesse território vivem aproximadamente 2500 famílias direta ou indiretamente atingidas pela implantação do CLA, que praticam a agricultura, a pesca e o extrativismo. Para a implantação da base foram remanejadas aproximadamente 300 famílias de 30 povoados e, para sua expansão, está previsto o deslocamento de outras 470 famílias.

          A população que foi afastada da terra que era sua, do mar que lhe dava o peixe e dos frutos que cultivava, deixou pra trás os mortos que pranteava e que lhe davam a identidade numa cultura autônoma e fortemente centrada na importância da ancestralidade e da religiosidade. Compulsoriamente transferida para agrovilas, em terras improdutivas (quartsozas) de lotes diminutos e sem proximidade de recursos hídricos, essa população vive hoje em regime de escassez e sem conseguir reproduzir a unidade de trabalho familiar, posto que os núcleos familiares foram desagregados.

          Mas, o malogro das agrovilas não é exclusivamente definido por razões econômicas. A experiência de remanejamento e as condições dos novos locais de habitação destroem a herança cultural e material e anulam a referência  identificatória do remanescente de quilombo, dada pelo sentimento de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico.

          Conseqüentemente, cresce a resistência a qualquer forma de deslocamento enquanto se generaliza a desconfiança em relação a qualquer ação do CLA. São mais de duas décadas de um conflito que começou com a desapropriação em desrespeito à Constituição de 88, que reconhece a propriedade definitiva das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos (art. 68 do ADCT). Trata-se, como consta de parecer jurídico do MP, de um nítido conflito entre o direito das comunidades negras em preservar seu peculiar modo de ser e fazer e as razões de Estado que levaram à implantação da Base de Alcântara.

          Um conflito que está a exigir o recurso democrático do diálogo, não só para a reparação dos danos causados à comunidade quilombola, como para a legitimidade e o êxito do Projeto Espacial. Visando superar a restaurar a confiabilidade mútua, é necessário rever os procedimentos que menosprezaram as diferenças étnicas e culturais, reconhecer a relevância do território étnico para as famílias atingidas, reparar os danos provocados pelos impactos e estabelecer formas de interlocução e diálogo permanentes.

          Quando sopram os ventos da democracia, é preciso empenho para que a negociação entre as partes confirme o progresso da ciência como promotor do bem público e fator de afirmação da segurança e bem-estar de todos os cidadãos, sem preconceitos de origem, raça,sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação.

          Com apoio da comunidade acadêmica do Maranhão, a gente de Alcântara se organiza e pede passagem em Brasília, no Congresso e no Ministério Público Federal. Com a palavra, agora, na SBPC. À espera da formulação de uma política pública que integre o espaço à terra de onde parte.



Resumo: O texto tem por propósito chamar a atenção para o conflito latente entre a expansão do  projeto espacial na base de lançamentos de Alcântara e povo remanescente de quilombo que ali ficou vivendo das tradições culturais herdadas do legado da escravidão porém cultuando, em liberdade, valores comunitários próprios de seus quase três séculos de existência.

Palavras-chave: identidade cultural, conflito, democracia.

* Cientista política IFCS/UFRJ.

** Alfredo Wagner B. de Almeida, antropólogo, professor-visitante da Universidade Federal Fluminense e perito junto à Procuradoria Geral da República na identificação das comunidades remanescentes de quilombos, é autor do laudo que subsidiou o parecer do Ministério Público Federal na ação civil movida contra a União e no qual me apoio neste texto, de onde se originam  as citações aqui reproduzidas.

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