A TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE [i]

Roberto Mangabeira Unger [ii]

         O mundo está inquieto sob a influência da idéia de que só existe um caminho para a liberdade e a prosperidade: o das instituições e práticas estabelecidas nas democracias ricas do Atlântico Norte. O mundo está correto em sua inquietação. Existe uma alternativa melhor. Expor, desenvolver e defender esta alternativa de forma breve é o propósito único dessas duas conferências [iii] .

         Na primeira, discuto a reorientação do projeto dominante na economia política e a remodelagem das instituições que esta reorientação demanda. Na segunda, exploro as mudanças no caráter da política, do pensar sobre a sociedade e da experiência moral que pode e deve acompanhar esta reconstrução institucional. As minhas observações são extemporâneas, tanto em forma como em conteúdo. Ao apresentá-las, tenho em mente a advertência de Voltaire que diz que aqueles que carecem do espírito de sua época comportam, apesar de tudo, todos os seus defeitos. Contudo, não posso ser útil a vocês ao menos que permaneça fiel a mim mesmo.

         Nesta primeira conferência, divido o argumento em quatro partes. Na primeira, apresento a visão do que tem sido o caráter distintivo da social democracia européia como uma das duas faces que este projeto de dominação apresenta ao mundo: uma face que está agora em processo de desfiguração e perda de sua distinção. Na segunda parte do argumento, critico o advento do presente redirecionamento da social democracia européia. Na terceira parte, alinhavo uma alternativa. E na quarta parte do argumento, apresento a visão geral que impulsiona esta alternativa. Além disso, desenvolvo-a em contraste a outras posições.

         A social democracia européia foi definida historicamente por uma retirada tendo por finalidade um avanço. Os social-democratas europeus abandonaram a tentativa de reorganizar a produção e a política. Afora estas duas dimensões, eles buscaram reordenar a distribuição ou redistribuição. Neste âmbito, eles esperavam diminuir a insegurança e a desigualdade econômicas.

         O meu esforço será apresentar uma visão do compromisso social-democrata, focalizando os elementos comuns da experiência da social democracia na Europa, olhando além das enormes diferenças entre as formas que aquela experiência ocorreu em diferentes países europeus. Esta é uma visão imaculada pelo sentimentalismo e doutrinação. Vista por este ponto de vista, a social democracia é diferenciada pelos seguintes atributos.

         Um primeiro par de características tem a ver com a proteção de um conjunto de atores sociais contra as instabilidades do mercado. Um segmento relativamente privilegiado da força de trabalho estava protegido contra as instabilidades no mercado de trabalho através de um alto nível de segurança no emprego, homologado pela lei e pelo contrato. Os proprietários estavam assegurados contra a instabilidade do mercado de capitais, especialmente do mercado de controle corporativo devido a arranjos que promoviam acordos de longo prazo com os bancos e outros investidores institucionais.

         Um segundo par de características refere-se à defesa dos negócios contra a competição. Os pequenos negócios eram protegidos da competição com os grandes negócios e com os empreendimentos externos. Assim, muitos regimes da social democracia européia evitaram, com algum sucesso, tanto na cidade como no campo, a aniquilação do pequeno proprietário. Os negócios de família, grandes e pequenos, com as suas práticas nepotistas, também foram poupados da meritocracia, bem como da competição.

         Um par final de aspectos diz respeito ao gerenciamento em larga escala da economia. Os governos nacionais interromperam os acordos distributivos com os interesses organizados, especialmente os grandes negócios e o trabalho organizado. (Acordos sobre salários e subsídios bem como sobre o caminho pelos quais os benefícios e malefícios das principais políticas públicas seriam divididos.) A representação organizada destes interesses para moldar tais contratos sociais distributivos é o que ficou conhecido como o aparato de parceria social. A prática da parceria social era complementada pelo desenvolvimento e pela manutenção de um alto nível de gasto redistributivo, paradoxalmente financiados pelas taxas de consumo altamente regressivas e orientadas para o mercado.

         O que caracteriza o destino recente da social democracia européia? Esta pode ser resumida em um simples movimento. As primeiras quatro características são sacrificadas em prol da manutenção das duas últimas: a parceria social e o gasto social redistributivo, financiados pela taxação regressiva. No limite, as primeiras cinco características, incluindo a engenharia institucional da parceira social - um dos muitos aspectos que definem a social democracia histórica - são sacrificadas no intuito de manter a última delas. Um alto nível de gasto social redistributivo torna-se, então, o último baluarte, o resíduo, a última linha de defesa da social democracia em sua terra natal.

         A social democracia em sua fase madura, com todas as seis características enumeradas, fomentou um alto nível de investimento de firmas em sua própria força de trabalho. Esta estimulou tais investimentos, todavia, a custo de restrições na inovação tecnológica e organizacional. A social democracia também assegurou uma alta taxa de estabilidade dos postos de trabalho para a maior parte da população, contudo, houve um aumento na diferença entre os seus beneficiários e os seus excluídos.

         A social democracia convencional enfrenta problemas morais, sociais e econômicos. Os dois tipos de problemas - restrições na inovação e cobertura dos incluídos em detrimento dos excluídos desprotegidos - aparecem juntos em altas taxas de desemprego.

         A social democracia precisava ser reformada. A sua reforma vã, no entanto, apenas generaliza uma insegurança da qual somente uma elite européia e internacionalizada permanece protegida. Graças ao comprometimento com um alto nível de valores redistributivos - o último alicerce na plataforma histórica da social democracia - os reformistas defendem uma reconciliação da flexibilização econômica com a inclusão social.

         As transferências de recursos, empreendidas por um estado bem abastecido, são, apesar de tudo, uma base inadequada e frágil para suportar a meta da inclusão. O advento da reclusão histórica da social democracia é menos a síntese da flexibilização e da inclusão do que a extensão da insegurança. Muitos indivíduos permanecem privados dos meios econômicos e educacionais com os quais atingirem os novos altos comandos da economia internacionalizada. A divisão entre os incluídos e os excluídos é reinventada - e internacionalizada - mais que superada.

         Um movimento espiritual acompanha a queda da social democracia. Este movimento é a privatização do etéreo: a contenção da energia e da esperança no recesso íntimo da experiência privada e o abandono da vida pública como uma esfera apropriada para o avanço de projetos grandiosos. Nestas circunstâncias, a cultura popular e a erudita têm sido dominadas por fantasias e aventuras, fuga e permissividade. Tais experiências evocam aquelas que são as mais negadas nos mundos da política e do trabalho. Elas expressam um lamento sobre um senso de fatalismo: a consciência de que a vida pequena que alguém vive é a única vida que alguém pode viver.

         O movimento decadente que descrevi tem uma definição: é a chamada Terceira Via. A Terceira Via é a Primeira Via - supostamente a única Via para a liberdade e a prosperidade - enfeitada com o encanto das políticas sociais compensatórias. A doutrina da Terceira Via exibe o impasse dos progressistas no mundo contemporâneo. Eles não têm programa. O seu programa é o dos seus adversários conservadores com uma ressalva. Eles aparecem na cena histórica de hoje como os humanizadores do inevitável, incapazes de dar mais do que suportes triviais à idéia da reconstrução progressista e social.

         Que queixa podemos justificadamente fazer contra esta extirpação do conteúdo histórico da social democracia? Um relato sistemático da segmentação da economia em uma social democracia confiável e igualitária como a Suécia revela a natureza do problema. Imagine a economia dividida em três setores. Existe uma economia antiga das indústrias tradicionais de produção em massa, lutando para produzir mercadorias frente à competição mundial pelo preço baixo. Existe uma nova economia próspera e vital, baseada na produção flexível e nos serviços que empregam conhecimento intensivo. E existe uma economia providencial, especialmente dos jovens, dos velhos e dos inválidos. Esta economia é a fonte de muitos dos novos empregos que são, muitos deles, pagos pelo governo.

         O mecanismo fundamental deste sistema tri-setorial é o de que o dinheiro gerado na nova economia e, em menor escala, na velha economia vai para o governo na forma de altos títulos. O governo transforma estes altos títulos em títulos menores e os envia para outros indivíduos, particularmente para trabalhadores e clientes na economia providencial.

         Esta é uma operação insustentável. Esta prática é insustentável por causa das demandas quase ilimitadas que o gasto social exige em uma base social ainda mais estreita de um empreendimento bem sucedido. Acima de tudo, esta operação é insustentável moral e psicologicamente. O cimento social se estreita quando os indivíduos param de conhecer uns aos outros, já que habitam mundos conectados apenas pela transferência de dinheiro à distância.

         O sistema tri-setorial tem visto a concentração dos trabalhos mais desejados - empregos oferecendo riqueza, poder e diversão - nas mãos de uma elite privilegiada e global. O restante da sociedade permanece condenada a uma variedade de “trabalhos manuais”, enobrecidos pela responsabilidade em cuidar dos outros. O sistema de produção está separado da organização prática da solidariedade social. Ainda que isto ajude a pagar as contas, não ajuda a sustentar a coesão social.

         Estes problemas podem ser resolvidos somente pela desconstrução e reversão do compromisso que moldou a social democracia histórica em um primeiro momento. É impossível solucioná-los sem reorganizar a produção ou sem modificar a relação entre as economias velha,  nova e providencial. O reordenamento da produção que a social democracia histórica abandonou, é impossível sem a criação de uma política de alto vigor. Tal política é sustentada por um elevado nível de mobilização política popular. E esta auxilia na criação e na luta por trajetórias alternativas de mudanças institucionais.

         Uma vez entendido que a social-democracia contemporânea pode resolver o seu problema básico apenas redefinindo o seu compromisso original, nós podemos começar a reconhecer o peso de preocupações mais profundas, deixadas de lado no momento de formação da social democracia européia. Estas preocupações são os dois lados de uma mesma questão. Como, nas circunstâncias das sociedades contemporâneas podemos munir-nos, individual e coletivamente, de forma a também nos conectarmos em vez de nos reduzirmos a ilhas isoladas? Como podemos imaginar e desenvolver conexões sociais que também nos municie ao invés de encerrar-nos em comunidades fechadas e em tradições fossilizadas? Apenas quando começarmos a introduzir-nos a questão, ou, ao menos, a possibilidade de re-imaginação e remodelagem das instituições da sociedade, estas questões mais abrangentes podem ser novamente cogitadas. Os nossos interesses e ideais na história estão sempre curvados ao peso dos arranjos práticos que os representam e realizam de fato. Não podemos começar a re-imaginar e a redefinir os nossos interesses e ideais até que comecemos a experimentar as suas expressões institucionais.

         Qual é a alternativa? Eu apresento uma alternativa institucional, endereçada às circunstâncias da social democracia contemporânea do Atlântico Norte, descrita em seu vocabulário, mas intencionada, apesar de tudo, a alcançar outros lugares. A alternativa não é um esquema; é um direcionamento. Se nas circunstâncias da política contemporânea e apesar delas, apresento uma visão que é distante daquela que existe, podem dizer que esta visão é interessante, mas utópica. E se apresento uma visão que é parecida com o que existe, podem dizer que é exeqüível, porém trivial. E assim todas as propostas apresentadas parecem utópicas ou triviais.

         Este falso dilema retórico, que inibe e desmoraliza a imaginação programática, provém da confiança em um padrão alicerçado de realismo político. É a idéia de que uma proposta é realista desde que esteja próxima ao que já existe. Este critério ilusório do realismo político presente em cada manifestação, pensamento e discurso, está ancorado em nossa falta de acesso a uma visão crível de transformação, de como ocorre a descontinuidade estrutural. De fato, uma proposta transformadora está na demarcação de uma direção que pode ser imaginada em muitos pontos próximo ou distante do que existe. Esta ganha concretização através da descrição dos muitos passos a serem dados com o material institucional e ideológico em mãos. A direção que proponho segue seis ferramentas de transformação. Estas ferramentas convergem em uma direção. Portanto, neste espírito, proponho, como exemplo, um direcionamento com os seguintes passos tendo em vista o contexto europeu.

         O primeiro eixo é financiar e facilitar a criação da inovação, da invenção, de novas formas de produção e iniciativas a fim de evitar que aqueles que agora controlam as decisões sobre investimentos cruciais limitem o escopo desta atividade inovadora. Três elementos são necessários para a criação do sistema que proponho.

         O primeiro elemento é regular a poupança da sociedade, incluindo as suas economias em forma de pensões. Um exemplo de como fazer isto é estabelecer fundos de capital especulativo semipúblicos às margens dos mercados de capitais tradicionais para investimentos em negócios iniciantes. Tais fundos seriam administrados competitivamente por um quadro de gerentes especializados em finanças compensados ou punidos tendo sucesso ou fracasso respectivamente.

         Um segundo elemento é criar na periferia do sistema universitário, com suporte governamental, um sistema descentralizado de unidades designadas para facilitar a tradução do conhecimento técnico e científico em iniciativas práticas. O resultado é aplicar, para toda a economia, o sistema próprio à esfera da agricultura: o da ajuda governamental descentralizada para o agricultor familiar - acima de tudo, apoio técnico em forma de acesso ao conhecimento.

         Um terceiro elemento é fomentar a organização de um regime de competição cooperativa, permitindo às pequenas e médias empresas e grupos de trabalhadores e técnicos competir em alguns casos, enquanto contribuem com recursos em outros. Desta forma, eles podem adaptar os benefícios referentes à escala e à flexibilização. A intenção geral desta primeira linha de desenvolvimento é afirmar a supremacia da economia real sobre os interesses e reveses das finanças, e mais genericamente, aliviar a opressão da estrutura presente da economia em geral e do mercado financeiro em particular na prática da inovação permanente.

         Um segundo eixo de desenvolvimento desta proposta é a tentativa de equipar e favorecer o trabalhador individual e o cidadão. Primeiro, o equipamos através de uma generalização gradual de um princípio de herança social: todos herdam da sociedade ou da geração anterior um leque básico ou um conjunto de recursos que possam utilizar em momentos-chave de sua vida. Segundo, reorganizamos a educação à base de investimento e desempenho mínimos garantidos universalmente e de um comprometimento em renovar o corpo docente, na educação básica e na contínua, e de um núcleo de conceitos genéricos e de capacidades práticas. Terceiro, definimos uma forma de associação flexível entre os governos local e central, providenciando intervenções e reorganizações quando a garantia mínima não é alcançada.

         O terceiro eixo de desenvolvimento neste projeto é democratizar o mercado. Democratizá-lo não apenas para regulá-lo, não só para compensar as suas desigualdades por meio de taxas e transferências retroativas. Democratizá-lo significa descentralizar, progressivamente, o acesso aos recursos produtivos e às oportunidades, formulando novas formas de alocação descentralizada de capital e conhecimento e novas modalidades de troca. Tal projeto tem de começar pela rejeição da escolha entre o modelo americano de regulação dos negócios pelo governo e o modelo do nordeste asiático de formulação centralizada por um aparato burocrático da política industrial e comercial.

         O melhor caminho é a coordenação estratégica entre as instituições públicas e as empresas privadas que seja descentralizada e participante e dedique-se à coexistência experimental de políticas industriais e comerciais plurais. Os fundos responsáveis e os centros de suporte - intermediários entre o governo e a iniciativa privada - têm de ser independentes e responsáveis em longo prazo para a sociedade, por meio de suas instituições políticas. O segundo passo deste esforço em democratizar o mercado é a criação gradual de regimes alternativos de propriedade social e privada, coexistindo experimentalmente com a mesma economia. Tais regimes começariam nos diferentes tipos de relações que surgiriam entre estes centros ou fundos e as firmas que eles assistem ou entre as próprias firmas. O propósito do esforço em democratizar o mercado é expandir os instrumentos e as variedades de iniciativas e inovações.

         O quarto eixo deste projeto é o desenvolvimento da economia providencial e a sua combinação com o sistema produtivo. Devemos combinar o serviço social obrigatório e o voluntário e facilitar o movimento de indivíduos entre o sistema produtivo e a economia providencial. Em princípio, todo indivíduo capaz deve ter uma posição tanto no sistema produtivo quanto na economia providencial. O objetivo deste esforço é assegurar a organização prática da solidariedade social de tal forma que estimule diretamente os indivíduos nas vidas uns dos outros além dos limites do universo familiar.

         O quinto eixo desta alternativa é desenvolver as instituições de uma democracia de alta energia. Esta congrega um elevado nível de mobilização política popular com a aceleração das experiências reformistas. A mesma ressalta o contraste e a controvérsia entre projetos alternativos para a sociedade e tende à combinação dos atributos da democracia direta e representativa. Um alto nível de mobilização popular requer dispositivos tais como financiamento público de campanhas políticas, acesso amplo e gratuito aos meios de comunicação de massa em prol dos movimentos sociais tanto quanto dos partidos políticos. As formas de combinar a aceleração das oportunidades para a transformação política da sociedade precisam da invenção de meios de combinar a responsabilidade central com a iniciativa local. Estas combinações do central e do local possibilitam experimentos decisivos ao nível central. Contudo, ao mesmo tempo, devem ser cercadas por movimentos equivalentes ao nível local.

         O sexto eixo desta proposta é a organização geral e independente da sociedade civil fora do Estado. Somente uma sociedade organizada pode gerar e efetivar realidades alternativas. O aparato tradicional do direito privado, corporativo ou contratual é um instrumento insuficiente para esta organização da sociedade civil. Temos de imaginar um contexto legal público inteiramente independente do governo. O propósito desta lei social, que estaria entre o direito público e o privado, não seria, como foi na primeira metade do século XX na Europa, para amortecer conflitos. Seria para exercitar a diferença e a originalidade, possibilitando nos tornarmos mais criadores.

         Qual o espírito que estimula tal programa? Esta proposta pretende aumentar os poderes de homens e mulheres comuns. Por intermédio dos dispositivos que os aparelha, ajuda-os a encontrar a luz no mundo sombrio do senso comum. As estruturas institucionais e discursivas que construímos e habitamos nos fazem quem somos. Estas estruturas, contudo, são finitas enquanto nós somos infinitos. Existe sempre mais em nós, mais capacidade de percepção, produção, emoção, experiência, associação, do que existe naquelas. Deve ser parte de nosso propósito criar instituições e discursos que reconheçam, respeitem e criem a disposição para viver como espíritos de nossa época, mas também como espíritos transcendentes. Não apenas para substituir um modelo de sociedade ou pensamento por outro, mas criar modelos que despertem a sua própria renovação gradativamente. Tais arranjos e métodos estabelecem um ambiente mais adequado para alguém que nunca está exausto de nenhuma organização social e cultural.

         O nosso interesse existencial em fazer o mundo menos hostil para o nosso caráter incansável, converge com o nosso interesse moral em igualar os universos sociais e com o nosso interesse material em acelerar o progresso prático. Estes interesses não convergem necessária e espontaneamente; podemos fazê-los convergir, desenvolvendo as nossas idéias e práticas em uma dada direção. Ao fazê-lo, transformamos, lentamente, a sociedade em um espelho da imaginação. É menos a humanização do inevitável que a divinização da humanidade, traduzida em uma série de etapas institucionais e discursivas, de acordo com as circunstâncias e materiais de um determinado tempo.

         Esta ascendência da humanidade para um status mais criativo pode ser definida em relação ao liberalismo clássico, ao socialismo e às idéias econômicas dominantes sobre o progresso e o crescimento. Este não é um programa antiliberal. Ele resgata a idéia liberal clássica da construção de um indivíduo forte enquanto repudia o dogmatismo liberal clássico sobre as instituições. Diz, com efeito, que podemos respeitar uns aos outros, apenas recusando santificar, para a causa de nossa autoconstrução coletiva e individual, o sistema social estabelecido. Devemos nos tornar mais igualitários que maiores ou melhores.

         Em contraste com o socialismo clássico, esta visão rejeita o controle estatal dos meios de produção como formas pela qual a humanidade pode descobrir-se no trabalho. Pelo contrário, esta identifica a aspiração salvacionista do socialismo com a falsificação das soluções coletivas para os problemas coletivos da humanidade. Ao fazê-lo, nega o que tem sido a maior derrota histórica da esquerda, o abandono da pequena burguesia e a deposição de sua aspiração central de prosperidade modesta, independência e iniciativa. Esta permanece sendo a mais poderosa aspiração prática que move a maior parte do mundo. Ainda precisamos responder a esta questão de forma a desvencilhá-la da formas restritas dos modos de produção em pequena escala e associá-la a novas formas de cooperação e solidariedade.

         Qual a relação deste projeto com as idéias convencionais sobre o progresso prático ou o crescimento econômico? No curto prazo, a restrição básica ao crescimento é a relação entre o custo dos fatores de produção e as oportunidades de lucro. No longo prazo, a restrição básica é a tradução do conhecimento, especialmente o técnico e científico, em iniciativas e invenções práticas. No médio prazo, no entanto, a restrição básica sobre o crescimento econômico reside na relação entre a cooperação e a inovação.

         Um mercado é uma forma simplificada de cooperação entre estranhos: desnecessária quando existe um alto nível de confiança e impossível quando esta não existe. O progresso prático demanda a combinação de inovação e cooperação. Entretanto, a inovação e a cooperação também interferem uma sobre a outra. Nós avançamos praticamente inventando regimes de cooperação que são relativamente mais suscetíveis à inovação. Como resultado, a inovação não necessita ameaçar e nem ser ameaçada pelas expectativas e prerrogativas inseridas no regime cooperativo estabelecido.

         Deste ponto de vista, todo o segundo passo é o desenvolvimento gradual de uma forma de cooperação entre o governo e a iniciativa privada, entre firmas,  grupos e entre indivíduos que a constroem por meio do experimentalismo. Em nossas instituições e em nosso aparato, incorporamos tudo que a mente é capaz de repetir. Este projeto pretende reservar uma parcela maior de nosso tempo para as atividades que ainda não podemos repetir e, portanto, não podemos incorporar na forma de aparatos. É para intensificar a nossa experiência, tornar palpável e fértil o caráter decisivo e dramático da experiência humana; para interromper os tempos de repetição doutrinária sobre a vida.

         Grandes reformas na história moderna têm dependido, geralmente, de crises e de calamidades, e, em particular, da guerra. A catástrofe tem sido a parteira da transformação. É parte da pretensão deste programa diminuir a dependência da mudança à crise. No entanto, as instituições que este programa descreve ainda não existem; a dependência da transformação à crise persiste. Por esta razão, um programa tal qual o que apresento não pode avançar nas circunstâncias práticas das sociedades contemporâneas, na Europa ou em qualquer outro lugar, a menos que o cálculo frio do interesse prático seja modificado e transformado por uma visão da oportunidade humana não-realizada. Portanto, o propósito de minha segunda conferência é explorar como a doutrina da Segunda Via pode ser realizada de fato.

         As nações européias devotaram a primeira metade do século XX à matança mútua e a segunda metade a afogar as suas mágoas no consumismo. Em direção ao final do século XX, exaustos com seus sofrimentos e prazeres, elas se puseram sob os cuidados de políticos, animadores de espetáculos e filósofos que lhes ensinaram a ardil doutrina segundo a qual a política deveria ser pequena a fim de que os indivíduos se tornassem grandes. Logo, o povo europeu adormeceu. Se, na primeira metade do século XXI, eles não despertarem, podem até permanecer ricos. Contudo, eles também serão menos igualitários, menos livres e menos grandiosos.

* Tradução de Márynka Monique Soukup.



[i] Conferência pronunciada em Janeiro de 2002, no Corpus Christi College, Universidade de Cambridge (Grã-Bretanha).

[ii] Professor titular da Universidade de Harvard (EUA) e membro vitalício eleito da Academia Americana de Artes e Ciências.

[iii] A segunda conferência, intitulada A Transformação da Experiência, será publicada no próximo número de Achegas. A versão original em inglês das duas conferências pode ser encontrada na página oficial do autor: www.law.harvard.edu/unger

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