MARX E AS MULHERES

 

Anna Marina Madureira de Pinho Bárbara Pinheiro*

 

Embora a temática de gênero e os temas a ela correlatos (casamento, família e etc.), sejam abordados de forma apenas periférica por Marx, tendo sido mais propriamente desenvolvidos por Engels,[1] nosso objetivo neste breve ensaio é relacionar a forma como Marx refere-se às mulheres em sua obra, à relação que o mesmo desenvolveu com as mulheres de sua vida; mãe e irmãs, esposa, empregada e filhas. Pretendemos ainda, inscrever tal perspectiva acerca das mulheres na ambiência cultural da época de Marx, o século XIX vitoriano, tão bem representado e criticado em sua obra.

De acordo com seu mais recente biógrafo, Francis Wheen [2] pouco se sabe sobre a infância de Marx. Nascido em 5 de maio de 1818, no seio de uma família judaica e burguesa na cidade de Trier, a mais antiga cidade da Renânia, Marx, ao longo de sua vida, parece ter se esforçado sumamente para romper com todos os vínculos que o remetessem às suas origens; familiares, religiosas, de classe e nacionalidade. Morreu ateu e apátrida, não havendo indícios de que tenha tentado manter qualquer tipo de relação com seus oito irmãos (três homens e cinco mulheres) durante sua vida adulta.Os contatos com sua mãe nesta fase (idade adulta) também parecem ter sido esporádicos, e a relação entre eles, fria e distante.

Henriete Marx era uma mulher cujos interesses resumiam-se à família, que a absorvia totalmente. Numa carta escrita ao filho quando ele estava na universidade, uma das poucas que restaram da correspondência de ambos, ela chegou, inclusive, a admitir que sofria de “um excesso de amor materno”[3]. Externando uma série de preocupações, com a limpeza das acomodações, horários, alimentação e saúde do mesmo, pedia-lhe que a mantivesse informada sobre sua nova casa.

A relação de Marx com o pai durante o período universitário foi melhor documentada, talvez, em função da parca formação de sua mãe que era apenas semi-alfabetizada. Hirshel, rebatizado Heinrich Marx por ocasião da conveniente conversão ao cristianismo luterano[4], um respeitável advogado da cidade de Trier, revela-se, na correspondência com o filho, um pai carregado de preocupações concernentes não apenas, à sua frágil saúde, como também, à sua formação profissional e moral.

Marx iniciou os estudos de Direito na Universidade de Bonn, em 1835 e depois de um ano de vida boêmia e desregrada, transferiu-se para a Universidade de Berlim com o consentimento de seu pai. As esperanças de Heinrich de que, a partir de então o filho se concentrasse apenas nos estudos foram, entretanto, frustradas por um importante acontecimento da vida afetiva de Marx, o início de sua paixão por Joanna Bertha Julie Jenny von Westphalen, mais conhecida como Jenny. Uma jovem bela e inteligente, proveniente de classe dominante prussiana (filha do barão Ludwig von Westphalen), quatro anos mais velha do que ele, com quem convivera desde a infância.

A paixão transformou-se em compromisso de noivado, nas férias de verão de 1836, tendo a notícia sido preservada da família da noiva durante quase um ano. Não é difícil inferir as razões do sigilo. Tendo em vista que o próprio barão, depois de um casamento convencional de elite, estava então casado com Caroline Heubel, uma mulher simples e distinta da classe média alemã, que era a mãe de Jenny,[5] a principal razão devia relacionar-se à visão que se tinha à época do casamento como ...”algo pelo qual ‘se devia poupar’ e que só ‘se podia enfrentar’ a partir de um certo ponto”... [6] isto é, de uma posição social que resultasse de emprego respeitável, capaz de prover à contento a sobrevivência da família.

Marx ainda era muito jovem para poder corresponder à esta expectativa. No entanto, já dava pistas de que a vida ao seu lado “prometia pouca estabilidade ou prosperidade”[7]. Assim, em novembro de 1837, quase um ano depois do início de seu noivado, uma carta plena de emoção, em que comunicava ao pai sua conversão á Filosofia, em detrimento do Direito e mais ainda, ao pensamento hegeliano, maldito na Alemanha da época, receberia como resposta, contundente reprimenda paterna:

 

”(...) É nisso, nessa oficina de erudição insensata e inoportuna, que hão de amadurecer os frutos que revigorarão a ti e a tua amada, e que se há de armazenar a colheita que servirá para que cumpras tuas sagradas obrigações?[8]

 

Tal reprimenda que sinalizava para o crescente afastamento entre pai e filho seguiu-se de uma série de reclamações e lamúrias culminando com a morte de Heinrich Marx, por tuberculose, em 10 de maio de 1838. Karl, que já não visitava os pais havia muito tempo, sequer compareceu ao enterro. Deste momento em diante, começou a trabalhar numa tese doutoral que o habilitasse ao magistério em Filosofia, tendo obtido o título de doutor pela Universidade de Jena, em 15 de abril de 1841.O casamento, entretanto, seguia tendo que ser  adiado, pelo menos até que o noivo encontrasse um emprego bem remunerado, que o ressarcisse da mesada suspensa pela mãe, assim como de sua parte na herança de Heinrich Marx, que Henriete , também o impedia de receber.

Esta oportunidade de emprego pareceu, contudo, afastar-se definitivamente dele quando, em julho daquele mesmo ano, uma agitada temporada em Bonn, na companhia de Bruno Bauer, impediu que conseguisse uma nomeação acadêmica e redirecionou sua vida profissional para o exercício do jornalismo.No outono de 1841, Marx ingressaria num jornal liberal fundado por um grupo de industriais e financistas da cidade de Colônia. No Rheinische Zeitung, começaria sua brilhante carreira como polemista, tendo por cenário, a mais avançada província de toda a Prússia, tanto em termos políticos quanto industriais.

Todavia, quase dois anos depois, a crescente popularidade do jornal e o tom de grande parte de seus artigos e editoriais, resultariam num edito ministerial que revogava sua licença de publicação. Desmotivado a permanecer na Alemanha, Marx, decide assim, aceitar o convite de um amigo (Arnold Ruge) para deixar o país e fundar outro jornal no exílio, fazendo, contudo, a ressalva de que “não podia, não devia e não queria”[9] deixar a Alemanha sem sua noiva.

Depois de um longo e tortuoso noivado de sete anos de duração em que Jenny, por um lado, enfrentara as cobranças e críticas dos parentes, seus e de Marx e, por outro, suportara as prolongadas ausências do noivo, chegara finalmente, o grande dia. A noiva, entretanto, obcecada pelo medo de perder o amor de Marx, e intimidada por sua estatura intelectual (dizia perder a fala na sua presença) não conseguia desfrutar plenamente da felicidade. Com dificuldades de acompanhar a impetuosidade de Marx, Jenny começou a fantasiar que também ele tinha que ser contido:

 

”(...) Assim, meu amor, desde tua última carta, andei me torturando com medo de que, por minha causa, pudesses enredar-te numa briga e, depois, num duelo. Dia e noite eu te via ferido, sangrando e doente, e, Karl, para dizer toda a verdade, não fiquei inteiramente infeliz com esta idéia: é que imaginei vividamente, que tinhas perdido a mão direita e fiquei em estado de êxtase (...) por causa disso. Sabe, amor, ocorreu-me que nesse caso, eu poderia, realmente, tornar-me totalmente indispensável para ti, que sempre me conservarias ao teu lado e me amarias. Achei também que, nesse caso, eu poderia escrever todas as suas magníficas idéias e ser-te, realmente, útil”.[10]

 

Segundo Laplanche e Pontalis, para Freud, fantasia é “... o roteiro imaginário em que o sujeito está presente e que representa, de modo mais ou menos deformado pelos processos defensivos a realização de um desejo e, em última análise de um desejo inconsciente...”[11], podendo apresentar-se sob diversas modalidades: fantasias conscientes ou sonhos diurnos, fantasias inconscientes, fantasias originárias.

Nos sonhos diurnos o enredo é imaginado em estado de vigília, possuindo assim, maior coerência que nos sonhos propriamente ditos. No sonho diurno de Jenny, manifestava-se claramente o desejo de impinjir a Karl uma pesada punição por todo o sofrimento que a ela fora imposto durante o noivado. Tal sentimento originava-se do medo de perdê-lo, mas também da longa espera que poderia frustrar-se na hipótese do casamento não se realizar, frustrando assim, todo um projeto de vida, aquele que era comum às moças de classe dominante no século XIX vitoriano: ser esposa e mãe.

Única possibilidade de construção da identidade feminina no ocidente cristão durante muito tempo, tal projeto, no caso de mulheres dos setores populares, ainda podia sobrepor-se ao exercício do trabalho manual. Esta superposição de papéis, referenciada pela obra de Marx[12], mas discutida com maior profundidade por Engels[13], não se configurava em escolha, traduzindo-se, ao contrário numa necessidade que, certamente, não estava no horizonte de Jenny, porém, mais tarde, rondaria como um espectro a vida de suas três filhas.

Em seu caso particular, a única alternativa ao casamento seria a “solteirice”[14] que a manteria presa para sempre à sua família de origem e a privaria de viver as alegrias da experiência erótica, interditadas para mulheres solteiras.Como a escolha do noivo fora feita a partir de critérios exclusivamente afetivos, as chances de fracasso e padecimentos futuros pareciam grandes e atormentavam Jenny. Entretanto, a ambiência cultural da época em que vivia, reforçava sua escolha e explicava seus dilemas.

Marcado pela irrupção do romantismo, movimento que pretendia ”(...) trabalhar para desfazer a secularização do mundo (...)[15] levada a cabo pelos iluministas e assim, “reencantá-lo”, o século XIX, também seria o campo privilegiado para a adaptação de algumas das idéias românticas sobre o amor à ideologia da burguesia vitoriana.

Enaltecendo as emoções eróticas ao afirmar a necessidade das mesmas para que se alcançasse a plena humanidade, os românticos defendiam a idéia de que os amantes devessem atingir uma espécie de “fusão psíquica” através da busca de um caminho que conduzisse à intimidade do outro[16]. Este “narcisismo a dois” não parecia, contudo, compatível com a estabilidade e durabilidade características do casamento à época. Instituição que, aliás, era objeto de controvérsias entre muitos dos autores românticos.

Shelley, por exemplo, o considerava como um “obstáculo à fruição do verdadeiro amor” que em sua perspectiva, devia assentar-se na beleza e perfeição, física e espiritual, da pessoa amada, implicando admiração, respeito, cuidado e uma mutualidade genuína.[17]

         Para ser, portanto, aceita pela burguesia vitoriana, a doutrina do amor romântico teve que fazer concessões, substituindo a “rejeição shelleyana do despotismo matrimonial” pela revalorização desta instituição.[18]

         Foi assim que o amor recíproco passou a ser visto como único fundamento aceitável para os compromissos permanentes. Este ponto de vista respaldava a escolha de Jenny por Marx.

         Entretanto, alguns anos antes do casamento, ela lembrava ao noivo que estava sofrendo à sua espera e “dependia inteiramente” de sua sorte. Mais ou menos na mesma época (1839-1841), lamentara-se com um certo desencanto de que Karl não a conhecia tanto quanto ela gostaria , revelando-se incapaz de compreender sua situação: “(...) Oxalá pudesses ser uma moça por uns tempos e, além disso, alguém tão peculiar quanto eu (...)”[19]. Agregando a tais queixas  a informação de que Jenny era assídua leitora de Shelley ( “... leu e releu o Prometeu desacorrentado ... “)[20], podemos trabalhar com a hipótese de que as referidas queixas trouxessem consigo uma crítica sutil à condição de dependência das mulheres em relação aos homens no âmbito do casamento burguês, assim como, nas etapas que o antecediam, noivado e namoro. Esta interpretação permite-nos compreender melhor o desejo de Jenny, manifesto no sonho, de que Karl perdesse a mão direita, uma vez que, tal perda, tornaria possível a inversão da relação de dependência entre ambos, assegurando também a perenidade desta relação (“... sempre me conservarias ao teu lado e me amarias...)[21]. As críticas de Jenny às perspectivas que seu século reservava para as mulheres, assim como o ciúme que tinha da produção intelectual de Marx, retornariam diversas vezes ao longo das quatro décadas em que ambos estiveram casados.Assim, quando escreveu a sua filha Laura, no final da década de 1860, solidarizando-se com o sofrimento dela pela perda dos filhos – dois meninos e uma menina que morreram todos na primeira infância – Jenny afirmaria:

 

Em todas essa lutas nós, mulheres, temos que arcar com a parte mais árdua (...) porque é a parte menor. O homem retira forças da luta com o mundo externo e é fortalecido pela visão dos inimigos, ainda que eles sejam um legião. Nós permanecemos sentadas  em casa, remendando meias”[22]

 

         Retomando o fio dos acontecimentos, de volta à manhã de 19 de junho de 1843, a despeito de tanto medo e insegurança, o casamento, por fim, realizou-se em condições bastante especiais. A oitenta quilômetros de Trier, no elegante balneário de Kreuznach, tendo sido acompanhado apenas pela mãe e um dos irmãos da noiva, Edgar, amigo de Karl desde a infância, além de outros poucos amigos locais. Ninguém da família Marx compareceu. Após a cerimônia, os noivos embarcaram em viagem de lua de mel pelo Reno, da qual retornaram para a casa da baronesa em Kreuznach, até que se definisse onde e quando surgiria o novo jornal que abrigaria Marx.

         Contudo, antes mesmo da definição, o casal já se mudava para Paris, cidade na qual, em 1º de maio de 1844, nasceria a primeira filha de ambos, chamada Jenny, como a mãe, porém, mais conhecida como “Jennychen”, o diminutivo do nome. Entretanto, as dificuldades iniciais com a maternidade levariam Jenny e a filha de volta a Trier, enquanto Marx permaneceria em Paris, dedicando-se ao primeiro e único número do novo jornal[23] e iniciando-se no estudo da economia política britânica.

         As leituras de Adam Smith, David Ricardo e James Mill seriam acompanhadas da redação por Marx de um longo e contínuo comentário que, descoberto apenas na década de 1930, daria origem aos “Manuscritos econômico-filosóficos”, hoje mais conhecidos como “Os manuscritos de Paris”.

         Nestes manuscritos, Marx principiava a construção da contundente crítica ao capitalismo que o notabilizaria no século XX, refletindo acerca do fenômeno da alienação. Em sua perspectiva, uma das grandes novidades do modo-de-produção-capitalista estava, justamente, neste fenômeno, “...um terrível estranhamento entre o sujeito-trabalhador e o produto do seu trabalho (...)[24] que, muito embora se originasse na esfera da produção, estendia-se de variadas formas, sob todas as atividades humanas, instaurando no homem um “ (...) doloroso conflito consigo mesmo, com seus semelhantes, com a natureza (...)[25]“.

Nesta ótica, a propriedade privada criaria uma nova subjetividade que definiria a riqueza pela posse em detrimento da sensibilidade. Assim, pareceria rico o homem que tivesse coisas, e não aquele cuja “atividade essencial sensível estivesse carregada de paixão”. Para Marx, esta paixão assumiria uma significação especial nas relações entre homens e mulheres, já que, tais relações se caracterizariam, essencialmente, por desvendar a medida da necessidade humana de outros seres humanos.

Esta concepção da experiência erótico-amorosa como ”(...) um dos meios de realização do ‘homem total’, (...) um dos modos de o ser humano apropriar-se universalmente do seu ser (...) tem fortes raízes no pensamento romântico, tendo sido também compartilhada por Jenny[26]. Vale entretanto, ressaltar que a influência romântica, não anula o fato de tanto Marx, quanto Jenny terem identificado uma hierarquia nas relações de gênero internas ao casamento burguês. Hierarquia que incomodava Jenny e que Marx interpretava como resultante da alienação produzida pelo capitalismo.

A relação de Marx com o romantismo remonta à sua infância, quando através do barão Ludwig von Westphalen, descobriu, com grande emoção, a obra de Shakespeare. Elo entre ele e aquele que, em grande medida substituiria a figura paterna em sua vida[27], o culto ao pensamento shakespeareano, mais tarde, reforçaria também, o forte elo entre Marx e suas filhas.

 Assim, durante seu exílio em Londres, quando costumava levar a família a piqueniques dominicais em Hampstead Heath, Marx desenvolveu o hábito de declamar cenas de Shakespeare, Dante e Goethe para Jenny e as meninas. Em 1856, escreveria a Engels, contando cheio de orgulho paterno que elas “liam constantemente” a obra do grande dramaturgo. Suas únicas incursões na cultura inglesa foram saídas ocasionais para assistir à montagens shakespeareanas e duas de suas três filhas sonharam tornar-se atrizes, sendo que uma conseguiu.

Como Marx fugia ao perfil de intelectual de sua época e buscava colocar em prática suas idéias, a concepção que tinha do amor, também estava inevitavelmente ligada à sua relação amorosa com Jenny. Assim, numa carta escrita à esposa treze anos depois do casamento, ainda é possível identificar a grande paixão que os unia:

”(...) Eis que assomas diante de mim, grande como a vida, e eu te ergo nos braços e te beijo dos pés à cabeça, e me prostro de joelhos diante de ti e exclamo: ‘Senhora, eu te amo’. E amo mesmo, com um amor maior do que jamais sentiu o Mouro de Veneza[28]. (...) Qual de meus muitos caluniadores e inimigos de língua viperina censurou-me, algum dia, por ser chamado a representar o principal papel romântico num teatro de segunda classe? E, no entanto, é verdade. Se os patifes tivessem alguma inteligência, teriam retratado ‘as relações produtivas e sociais’ de um lado e do outro, eu a teus pés. E embaixo escreveriam: ‘Olhem para esta imagem e para aquela (...)[29]

Na carta pode-se ainda, perceber que também esta paixão de Marx era atravessada por Shakespeare, já que a última frase fora extraída de Hamlet. Por outro lado, a mesma também revela que a paixão de um homem por uma mulher podia, contraditoriamente, ser lida como indício de fraqueza perante outros homens, convertendo-se assim, num trunfo para os inimigos. Contudo, apesar de reconhecer que tal percepção acerca da paixão era corrente em sua época, a despeito do florescimento do romantismo, Marx não abriu mão de vive-la. Desta forma afirmou nos “Manuscritos de Paris”; “(...) O domínio da essência objetiva em mim, o irrompimento sensível de minha atividade essencial é a paixão (...)” [30]

         Muito embora estivessem apaixonados, a vida de Marx e Jenny juntos foi marcada por muitas dificuldades; perseguições políticas que os obrigaram a mudar-se da França para a Bélgica, regressarem a Alemanha e terminarem seus dias na Inglaterra; problemas financeiros, oriundos da impossibilidade de Marx conseguir uma renda fixa, do medo que tinha da proletarização da família através do ingresso das mulheres – mãe e filhas – no mercado de trabalho e da extrema capacidade de endividamento que tinham. Além dos problemas financeiros e políticos, ainda havia os de saúde que, não apenas atingiam sistematicamente ao casal, como também vitimavam as crianças. Dos seis filhos que tiveram – “Jennychen” (já mencionada), Laura e Edgar, nascidos em Berlim, respectivamente em 1845 e 1846; Guido, Francisca e Eleanor, nascidos em Londres, respectivamente em 1849, 1851 e 1855 – só três sobreviveram. Edgar faleceu com oito anos e meio; Guido e Francisca viveram apenas um ano. Das três mulheres que restaram, “Jennychen” morreu de câncer antes do pai, Laura e Eleanor, a “Tussy”, mais tarde cometeriam suicídio. Certamente, a dramaticidade da vida dos pais atingiu-as mas como teria sido a relação de Marx com as filhas nas diversas fases de suas vidas?

         Apesar dos comentários decepcionados a Engels acerca do nascimento das meninas - quando Eleanor veio ao mundo, ele escreveu ao amigo: “infelizmente, do sexo ‘par excellence’, se fosse um menino estaria tudo bem” - [31], não é correto afirmar que Marx tenha sido um pai frio e ausente. A correspondência com as filhas e excertos autobiográficos de todas, indicam justamente o contrário. Desafiando o “espírito” de sua época, Marx “tratava as meninas como futuros adultos inteligentes” [32], e assim preocupava-se com a formação intelectual delas iniciando-as, não apenas na leitura de Shakespeare, mas ainda de Homero, Marryat, Cooper e Walter Scott. Quanto à esfera afetiva, também existem indícios de que Marx tenha sido um bom pai, a descrição dos piqueniques em Hampstead Heath e a cena de infância de “Tussy”, em que ela passeava nos ombros do pai pelos jardins da casa da família em Grafton Terrace estão entre eles.[33]

         A angústia de Marx em relação a ser pai de meninas deve, portanto, ser compreendida como reação à expectativa sócio-cultural vitoriana de que moças de classe média não devessem garantir sua própria sobrevivência, expectativa que transformavam-nas em verdadeiros encargos financeiros para os pais de orçamento mais apertado. Segundo Francis Wheen, “na adolescência, as filhas de Marx freqüentaram um seminário para moças que custava oito libras por trimestre, além de serem matriculadas em aulas particulares de francês, italiano, desenho, música e dança.” [34] Todo esse investimento era visto como necessário para garantir o futuro das meninas através de “bons casamentos”.

         Numa carta a Engels de 1865, Marx justificaria a mudança da família para uma mansão na zona norte de Londres, afirmando ser impróprio “nas circunstâncias em que se encontrava, chefiar uma família puramente proletária, muito embora fosse perfeitamente aceitável se ele e a mulher estivessem sozinhos ou se as meninas fossem meninos”.[35]

         O medo de Marx da proletarização de sua família, combinado à culpa que sentia por ter infringido à uma “antiga princesa de Trier” tão miserável sorte, marcaram sua vida de marido e pai de família vitoriano. Tais sentimentos explicam-se, não apenas por sua história pessoal, mas também por sua obra especialmente, por “O Capital”.

         No primeiro volume do primeiro dos livros que compõem “O Capital”, em Marx dedicou-se à análise crítica da produção capitalista, na parte utilizada para discussão da produção da mais-valia relativa, encontra-se um capítulo intitulado “A Maquinaria e a Indústria Moderna”. Num dos subitens deste capítulo o autor se volta para o estudo das conseqüências imediatas da produção mecanizada sobre o trabalhador e, mais especificamente, para a apropriação pelo capital das forças de trabalho suplementares, isto é, do trabalho das mulheres e das crianças.

         A dissolução dos antigos laços familiares nas famílias operárias, ocasionada pela grande indústria, em função do papel decisivo que a mesma destinou à mulheres e crianças fora do círculo doméstico, através de processos produção socialmente organizados horrorizavam Marx.

         Além do definhamento físico de todos aqueles que eram submetidos à máquina, havia ainda, as conseqüências indiretas desta submissão como, por exemplo, os altos índices de mortalidade infantil nos primeiros anos de vida, entre famílias da classe trabalhadora. Excetuando-se circunstâncias locais, Marx interpretava tais índices como resultantes do trabalho das mães fora de casa que gerava crianças negligenciadas, maltratadas e mal nutridas.

         Nos distritos agrícolas onde o número de mulheres ocupadas desta forma era menor, os índices de mortalidade também tendiam a ser mais baixos.

         Entretanto, a comissão de inquérito de 1861, cujos dados e pareceres foram utilizados por Marx nesta análise, traziam inesperado resultado de que , alguns distritos exclusivamente agrícolas à beira do mar do norte, apresentavam índices de mortalidade de crianças menores de um ano, quase iguais aos dos distritos fabris “de pior fama”.

 Supunha-se até então, que fosse a malária e demais doenças próprias a esta região que dizimassem as crianças. O inquérito demonstrava, contudo, que a revolução na cultura do solo, ocasionada pela introdução do sistema industrial naqueles distritos se, por um lado, afastara a varíola, por outro, modificara as relações de produção trazendo consigo, o chamado “sistema de bandos”. Tal sistema foi descrito por Marx da seguinte maneira:

         “Mulheres casadas, trabalhando em bando com moças e rapazes, são postas à disposição de um fazendeiro mediante uma certa soma por um homem que traz o nome de chefe de bando, o ‘gangmaster’, e que não vende o bando senão inteiro. O campo de trabalho desses bandos ambulantes é freqüentemente situado a muitas léguas de suas vilas. Encontramo-los pela manhã e à noite nas estradas públicas, as mulheres vestidas de calças curtas e de saias harmoniosas, e às vezes calças compridas, fortes e sadias, mas corrompidas pela sua libertinagem habitual, e não tendo nenhuma preocupação pelas conseqüências funestas que seus gostos por esse gênero de vida nômade trazem à sua prole que permanece só na casa e aí morre.”[36]

 

         Mais adiante, afirma ainda:

         “Não é raro que mocinhas de treze e quatorze anos fiquem grávidas de companheiros da mesma idade. Nas localidades em que o sistema de bandos é freqüente, a cifra de nascimentos ilegítimos atinge seu máximo”.[37]

         A despeito do trabalho nas fábricas e, muito menos no campo, sobretudo através do sistema de bandos, jamais ter-se colocado como possibilidade para “Jennychen”, Laura e “Tussy” ( a única possibilidade em que se aventou, foi a de trabalharem como governantas. “Tussy” chegou a dar aulas numa escola para moças ), estas considerações de Marx, na medida em que trazem à tona preconceitos e fantasias acerca do trabalho das mulheres fora de casa, podem explicar seu medo de que a mulher e as filhas uma dia tivessem que exerce-lo.

         Em primeiro lugar, suas asserções sobre os altos índices de mortalidade infantil nas famílias de trabalhadores, parecem contrariar sua própria experiência de vida, já que sua família com Jenny não fosse propriamente “de trabalhadores” também apresentava um “alto índice de mortalidade infantil” o que, provavelmente, devia-se às precárias condições de existência de seus membros e não à ausência da mãe.

         Quanto ao trabalho feminino fora de casa, a ênfase na descrição das vestimentas das mulheres que integravam os “bandos”, afirmação de que elas exerciam sua sexualidade livremente em detrimento do cuidado com os filhos, que acabavam morrendo por causa do abandono materno e a referência ao fato de tais bandos misturarem homens e mulheres de diferentes gerações e estados civis, sugerem que as fantasias de Marx a esse respeito se relacionassem à idéia de que, uma vez libertas dos controles masculinos no interior das famílias e expostas ao contato com outros homens, as mulheres não conseguissem “controlar-se” a si mesmas. A esta fantasia da existência de uma sexualidade feminina desenfreada e perigosa, denomina-se misoginia.

         Outro aspecto relevante na referida passagem d’ O Capital é o tom severo com que Marx alude às “altas cifras de nascimentos ilegítimos”, que via como resultantes da adoção do “sistema de bandos” pelos fazendeiros capitalistas, quando ele próprio tivera um filho ilegítimo com Heléne Demuth, empregada da família desde o nascimento de “Jennychen”.

         Nos resta refletir, ainda sobre a relação de Marx com as filhas na fase adulta da vida das três. Quanto aos casamentos que lhes garantiriam o futuro, os investimentos realizados por ele, através da “prestimosa ajuda” de Engels, foram em vão. Jennychen e Laura casaram-se, ambas com socialistas franceses-Jennychen” casou-se com Charles Longuet em 2 de outubro de 1872 e Laura com Paul Lafargue em 2 de abril de 1868-, mediante o “contrariado consentimento” do pai e foram infelizes no casamento.       Assim, quando “Tussy” também se apaixonou por um socialista francês- Olivier Lissagaray- Marx obstaculizou a continuidade da relação, infringindo à filha grande sofrimento psíquico que a acompanhou por toda a vida.

         Embora tenham tido resultados ruins, as três escolhas estão, contudo,inscritas na relação que as três moças desenvolveram com seus pais.Em grande medida reproduziam as escolhas da mãe, refletindo também uma profunda identificação com a figura paterna, já que todos os escolhidos eram socialistas e tinham estilos de vida semelhantes ao do pai.

         Marx e Jenny passaram quarenta anos juntos. Ela morreu primeiro, em 2 de dezembro de 1881. Marx, porém, não conseguiu sobreviver muito tempo à sua morte, acompanhando-a quinze meses depois.

 

Considerações Finais:

 

            Poucos autores produziram tanto impacto na história do século XX quanto Karl Marx. Suas idéias revolucionaram todo o campo de conhecimento que hoje compreendemos como “Ciências Humanas e Sociais”. Mas, quem era ele? Quem era Marx? Um emigrado prussiano que acabou se tornando um pequeno-burguês da sociedade inglesa vitoriana? Um pai de família e marido amoroso que teve um filho com a empregada?

         Antes de tudo, Marx era um homem de seu tempo, interpelado pelo caldo de cultura de sua época. Como intelectual, levou a extremos o objetivo de conciliar teoria e prática, não apenas em função de sua militância política, mas especialmente porque vivia suas idéias. Mesmo na esfera mais recôndita das relações que estabeleceu com o mundo, a esfera familiar, suas idéias reverberavam, e vice-versa. Como marido, pai e filho, Marx personificou a contradição.

         Nunca conseguiu romper completamente com seus vínculos familiares de origem. E embora, mais tarde, Freud demonstrasse que a realização deste projeto não era possível a ninguém, Marx, apesar de ter-lhe antecedido e voltar sua atenção para questões de outra ordem, teve importantes intuições a esse respeito. Desta forma, a afirmação presente “n’O 18 Brumário” de que  “a tradição de todas as gerações mortas, pesa como uma montanha na mente dos vivos”, parece não apenas, explicar o papel fundamental da subjetividade naquele momento da história francesa, como resumir sua própria vida.

         O aspecto que escolhemos desenvolver desta vida, relacionando-o à sua obra, não é aquele que traz à tona toda a genialidade do “mago de Trier”, mas o que revela a fragilidade do homem por trás da grande teoria. Consideramos, contudo, que o fascínio que Marx exerceu sob as pessoas que mais de perto conviveram com ele – sua esposa e filhas, a empregada e Engels – estivesse também aí, nesse conjunto de paixões e contradições que ele era e não somente, no brilhantismo de suas idéias.        

 


Notas:

[1] ENGELS, Friedrich. A origem da família da propriedade privada e do Estado in Obras Escolhidas, volume 1,São Paulo, Alfa Omega, s/d. 

[2] WHEEN, Francis.Karl Marx, Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 2001.

[3] WHEEN, Francis, Op. Cit.,p.19.

[4] Quando a Prússia retomou a Renânia de Napoleão, os judeus de Trier foram submetidos a um edito prussiano de 1812 que os proibia de ocuparem cargos públicos ou exercerem profissões liberais, foi então que Hirshel decidiu converter-se ao cristianismo luterano.In WHEEN, Francis, Op. Cit.,p.18

[5] A liberalidade do barão pode ser lida como resquício do iluminismo francês com o qual a população de Trier teve contato por ocasião da anexação da cidade por Napoleão. Quanto à tal assunto ver: FEBVRE,Lucien.O Reno,histórias, mitos e realidades.Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.

[6] MCFARLANE,Alan. História do casamento e do amor. São Paulo, Cia. Das Letras, 1990, p.

[7] WHEEN,Francis, Op. Cit.., p.27.

[8] Idem, p.34

[9] Idem, p.52.

[10] Idem, p. 54.

[11] LAPLANCHE e PONTALIS,Vocabulário da Psicanálise, São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 169.

[12] MARX, Karl, O Capital, livro 1, volume 1,São Paulo, Difel, 1984.

[13] ENGELS,Friedrich, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.In Obras escolhidas,volume 3,São Paulo, Alfa Omega, s/d.

[14] Sobre a questão da “solteirice” na França da virada do século XIX para o XX, ver: FONSECA, Cláudia.”Solteironas de fino trato: reflexões em torno do não casamento entre pequeno-burguesas no início do século.”In Revista Brasileira de História N18, São Paulo, Marco Zero, 1989.

[15] GAY, Peter. A Experiência Burguesa: da rainha Vitória à Freud, volume 4, O Coração Desvelado, São Paulo, Cia. Das Letras, p.49   

[16] GAY, Peter. Op. Cit.,p. 116-117

[17] GAY, Peter. A Experiência Burguesa: da rainha Vitória à Freud, vol. 4, Ocoração Desvelado, São Paulo, Cia. Das Letras, 1999, p. 104.

[18] Idem, p. 112.

[19] WHEEN, Francis. Op. Cit., p.53

[20] Idem, p.54

[21] Idem, p.54

[22] Idem, p.271.

[23] O jornal chamava-se DeustscheFrazösische Jahrbücher, e era dirigido por Arnold Ruge, Karl Marx e pelo poeta Georg Herwegh, até que uma divergência entre Ruge e Marx levasse ao seu fechamento.

[24] KONDER, Leandro. “Marx e o amor” in Por Que Marx? Rio de Janeiro, Graal, 1983, p. 210

[25] KONDER, Leandro, Op. Cit. , p.211.

[26] Idem, p. 211.

[27] Sua tese doutoral foi dedicada ao querido amigo paternal Ludwig von Westphalen (...) em sinal de amor filial”... e em várias visitas a Trier, quando o barão estava doente, Marx não deixava de visitá-lo.WHEEN, Franccis. “Karl Marx”, Op. Cit., p. 39.

[28] Este era o apelido de Marx em família.

[29] WHEEN, Francis. Karl Marx. Op. Cit., p.27

[30] KONDER, Leandro. Marx e o Amor. Op. Cit..p. 211.

[31] WHEEN, Francis. Op. Cit., p. 201.

[32] Idem, p. 201

[33] Idem, p.

[34] Idem, p. 174

[35] Idem, p.

[36] MARX, Karl, ENGELS, Friedrich e LENIN, Vladimir. Sobre a mulher. São Paulo: Global, 1981, pp.82-83

[37] Idem, p. 85

Bibliografia:

ENGELS, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Alfa-ômega, obras escolhidas, 1986.

ENGELS, Friedrich, MARX, Karl e LÊNIN, Vladimir.”Sobre a Mulher”. São Paulo: Global, 1981.

FEBVRE, Lucien. O Reno; histórias, mitos e realidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

FONSECA, Cláudia. Solteironas de Fino Trato: Reflexões em torno do (Não) Casamento entre Pequeno-burguesas no início do século.In Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, 1989.

KONDER, Leandro. Marx e o Amor.In “Por Que Marx?” Rio de Janeiro: Graal, 1983.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

MACFARLANE, Alan. História do Casamento e do Amor. São Paulo,Cia. Das Letras, 1990.

MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Difel, livro 1, volumes 1 e 2, 1984.

WHEEN, Francis. Karl Marx. Rio de Janeiro: Record, 2001.


Resumo:
Temos como objetivo neste artigo estabelecer pontes entre a forma como Marx refere-se às mulheres em sua obra e a relação que o mesmo desenvolveu com as mulheres de sua vida; mãe e irmãs, esposa, empregada e filhas. Pretendemos ainda, inscrever tal perspectiva acerca das mulheres na ambiência cultural da época de Marx, o século XIX vitoriano, tão bem representado e criticado em sua obra.

Palavras-chave: pensamento marxiano, questão de gênero, misoginia.

* A autora é Doutoranda em História Social (UFF).

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