OCTAVIO IANNI: A SOCIOLOGIA COMO
VOCAÇÃO
André
Botelho *
“Enfim, a sociedade, que não lhe pode
conferir sossego e segurança, coloca-o
numa posição que o projeta no âmago dos grandes processos históricos em
efervescência” (Florestan Fernandes, Sociologia
numa era de revolução social, 1963).
“É pouco, pois, colocar o problema em
termos de “neutralidade” ou “engajamento” (Octavio Ianni, Sociologia da sociologia, 1989).
O falecimento do
professor Octavio Ianni, como o desaparecimento dos intelectuais públicos em
geral, nos coloca diante do destino da utopia na sociedade contemporânea e
assim nos convida a repensar a vida intelectual que temos levado e a que
queremos viver. Afinal, como sugere Russell Jacoby:
“O destino de toda visão utópica está vinculado ao destino
dos intelectuais, pois se em algum momento a utopia pode sentir-se em casa, é
entre os pensadores independentes [...] Na medida em que estes já não existem,
a visão utópica esmorece” (2001: 139).
É verdade que ao
associar a utopia aos intelectuais e sua atuação ao espaço público das
sociedades, Jacoby, assim como outros analistas dos intelectuais na sociedade
contemporânea, parece ter em vista o declínio de um tipo de ator social
específico, o intelectual público, face à ascensão dos “institucionalizados” de
dentro e de fora da universidade. Ator social que no contexto atual torna-se
suspeito, entre outras razões, porque como os “padrões universais são cada vez
mais contestados como instrumentos de um ocidente imperialista” (2001: 151), os
intelectuais “já não podem intervir em questões públicas em nome de algo
universal; as únicas possibilidades são locais e defensivas” (2001: 155).
Processo em meio ao qual, inclusive, ao contrário do que ocorria no passado
recente quando “eram marginais que queriam se integrar”, os intelectuais
aparecem hoje como “integrados que se fingem de marginais – uma alegação que só
pode ser sustentada transformando a marginalidade numa pose” (2001: 153).
Ora, por que
então recorrer a essa idéia para pensar o caso de Octavio Ianni que, como é de
conhecimento geral no meio universitário brasileiro, e não apenas nele, e tem
sido assinalado (com sentidos diversos) nas numerosas manifestações que se
seguiram ao seu falecimento no último dia 04 de abril em São Paulo, foi acima
de tudo um notável “especialista rigoroso” no sentido weberiano (1982: 160) da
expressão?
Mesmo que a questão só possa
ser desenvolvida aqui até certo ponto, posto que seria necessário articular
minimamente condicionantes sociais à escolhas individuais, é possível dizer que
Octavio Ianni soube associar nos seus admiráveis cinqüenta anos de carreira as
tarefas do scholar, entre as quais a
formação de numerosas gerações de cientistas sociais, e as tarefas do intelectual público sempre pronto ao
diálogo e ao debate de idéias com diferentes grupos da sociedade. E creio que
isso foi possível sobretudo porque o professor Ianni assumiu intensa e
responsavelmente a sociologia como “vocação”.
Nascido em Itu,
em 1926, numa família de origem italiana, Octavio Ianni formou-se em Ciências
Sociais na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo, em 1954 e, logo após a formatura, integrou o corpo de assistentes da Faculdade,
na cadeira de Sociologia I, da qual Florestan Fernandes era o titular.
Aposentado pelo AI-5, foi para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
– PUC-SP, integrou a equipe de pesquisadores do CEBRAP, foi professor visitante
e conferencista em universidades norte-americanas, latino-americanas e
européias. Voltou à universidade pública – da qual sempre foi defensor lúcido –
como professor na Universidade Estadual de Campinas, na qual, mesmo após
aposentadoria compulsória, ministrou aulas até seus últimos dias. Aulas
inesquecíveis que levaram Florestan Fernandes, em depoimento sobre o antigo aluno, a destacar o
papel de Ianni como professor e educador:
“Em cada classe, ano a ano, forma um extenso grupo de
alunos e de aprendizes, que projetam em sua personalidade o mestre-modelo, e,
muitas vezes, a imagem do substituto do pai. O tempo se esvai mas essa
identificação perdura. Encontrei vários testemunhos por onde ele passou, como
professor, deixando os sulcos de uma pedagogia imaginativa e libertária” (Fernandes,
1996: 14).
Autor de obra extensa e
diversificada quanto aos temas, mas cuja unidade parece estar justamente na
concepção da sociologia como crítica do existente, a contribuição de Octavio
Ianni para o esclarecimento sociológico da sociedade brasileira desenvolvido ao
longo de cinqüenta anos de carreira é reconhecidamente fundamental. E, entre
outras razões, fundamental porque, em seu conjunto, logrou integrar três
dimensões temporais que permitem uma visão viva do processo de formação da
sociedade brasileira em seu passado, presente e, por assim dizer, impasses e
perspectivas de futuro. Na primeira dimensão, avulta, por exemplo, sua análise
do legado da escravidão e dos impasses dela decorrentes ao desenvolvimento de
uma sociedade democrática e igualitária no Brasil, como no clássico As metamorfoses do escravo (1962). Na
segunda, suas análises das mudanças sociais em curso na história coetânea, em
que avulta a sensibilidade para distinguir os dilemas políticos do presente, a
exemplo da análise desenvolvida em O
colapso do populismo no Brasil (1968). Na terceira dimensão, destacam-se
suas análises pioneiras sobre a reestruturação das relações e processos sociais
operada pela chamada globalização e a crise dela decorrente dos paradigmas referentes a sociologia, iniciada com A sociedade global (1992) e, entre
outros, Enigmas da modernidade-mundo
(2000) pelo qual recebeu, em 2001, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras,
na categoria ensaio, crítica e história literária, e o Prêmio Juca Pato,
concedido pela União Brasileira de Escritores.
O exercício da
sociologia como “vocação íntima”, ou aquela “estranha embriaguez,
ridicularizada por todos os que vivem fora do ambiente” científico,
identificada por Max Weber como exigência da situação “interna da ciência em
nossa época – condicionada pelos fatos de que a ciência entrou numa fase de
especialização antes desconhecida e que isto continuará” (1982, p. 160), nunca
significou no caso de Octavio Ianni indiferença em relação aos graves problemas
sociais e dos atores sociais, ou ignorância de outros domínios do conhecimento,
ou ainda alheamento em relação às conseqüências sociais das suas atividades
como cientista da sociedade. A equação, por assim dizer, entre problemas
sociais e formulação sociológica que Octavio Ianni logrou realizar em sua obra,
não se deu, como freqüentemente pode acontecer, com a redução de um termo ao
outro. Mas pela mútua fertilização de ambos. Como sugeriu Elide Rugai Bastos
discutindo a contribuição do sociólogo ao entendimento da recriação das
desigualdades sociais implicadas na problemática racial no Brasil como um
exemplo da sua vasta produção intelectual, Ianni jamais dissociou a “atividade
de pensar” do “compromisso de elevar a condição humana” (2004: 4). Assim, nos
seus trabalhos sobre a condição social do negro, por exemplo, questiona “não
apenas a bibliografia consagrada sobre a questão étnica, mas também os
comportamentos que fundam as relações sociais no Brasil. Mostra como, ao
definir-se a situação da população negra e mulata no Brasil, a raça é elemento
dos mais importantes, pois funda a assimetria das relações sociais. Essa
ausência de paralelismo nas trocas sociais leva à configuração de uma
desigualdade perversa, não só porque impede que grande parte da população tenha
acesso aos bens sociais, como opera como reprodutora da condição de
excludência. Aqui se coloca a questão principal que orienta sua reflexão: como
romper esse círculo vicioso?” (Ibidem).
O exercício da
sociologia como vocação jamais significou também, para Octavio Ianni, a
ignorância de outros domínios do conhecimento, como demonstra parte
significativa da sua obra, a exemplo dos ensaios reunidos em Revolução e cultura (1983) e Ensaios de sociologia da cultura (1991).
A esse propósito, aqueles que foram seus alunos devem se lembrar de uma
expressão por ele utilizada para estimular a aventura por outros domínios que,
embora não podendo ser traduzidos segundo os interesses imediatos das pesquisas
em curso, fariam a diferença em termos de formação: “é preciso afinar o
violino”, dizia sempre o professor. Na mesma direção, fez uso do microfone no
último congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, em 2003, ao receber o
prêmio Florestan Fernandes, seu professor-orientador, numa calorosa defesa da
sociologia como método e não apenas como um corpo cristalizado de objetos de
estudo e da necessária relação da disciplina com outros domínios de
conhecimento, especialmente com a literatura.
E, por fim, mas
não menos importante, o exercício da sociologia como vocação tampouco implicou
no alheamento em relação às conseqüências sociais das suas atividades como
cientista da sociedade. Pelo contrário, justamente porque não concebia as
relações entre conhecimento sociológico e formulação política de modo mecânico,
o tema da responsabilidade era central para Octavio Ianni. Também nesse caso há
correspondências fundamentais entre sua atuação e obra. Como seus escritos
sobre o tema sugerem, Ianni encarnou com radicalidade suas próprias idéias a
respeito da sociologia e do papel social do sociólogo. Tome-se como exemplo os
ensaios reunidos em Sociologia da
sociologia latino-americana (1971), livro revisto e ampliado a partir da
terceira edição sob o título Sociologia
da sociologia (1989), neles há duas distinções que me parecem fundamentais
para um entendimento justo, ainda que preliminar, da atuação de Ianni como
sociólogo e a força ética dela emanada.
A primeira delas diz
respeito ao reconhecimento, tornado explícito em seus trabalhos, de que a
sociologia permite possibilidades de desenvolvimento diversificadas, ainda que
ambivalentes, das quais são exemplares a sociologia como “técnica de controle
social” ou como “crítica da ordem social existente”, tal como discutida em
“Notícias da sociologia brasileira” (1989: 49-56). A segunda diz respeito à
prioridade da questão da responsabilidade
do sociólogo sobre a do engajamento,
como aparece em “Florestan Fernandes e a formação da sociologia brasileira” no
mesmo Sociologia da sociologia (1989:
84-124). Responsabilidade que, ao contrário do que possam sugerir as diferentes
perspectivas que acabam por submetê-la aos mais diferentes compromissos, apenas
aumenta na medida em que a sociologia se desenvolve como disciplina e ganha
autonomia relativa, pois como qualquer outra forma de poder também o
conhecimento sociológico traz ao menos virtualmente os seus “demônios”, como o
professor também gostava de fazer notar. Assim, Ianni alertava para o risco da
sociologia tornar-se incapaz de transcender a ordem constituída, como crítica
do existente, e acabar por desempenhar meramente o papel de instrumento de
adequação técnica de meios a fins em sociedades, também por isso, marcadas por
uma esfera pública cada vez mais estreita e uma participação democrática cada
vez mais reduzida.
Por tudo isso e
muito mais o contato das gerações atuais e futuras de cientistas sociais com a
obra e as idéias de Octavio Ianni não apenas permitirá evitar o trágico destino
em geral reservado aos “heróis” brasileiros, a exemplo daquele da rapsódia de
Mário de Andrade que foi para o céu viver “o brilho inútil das estrelas”, como
ainda fomentar, num passo simples, mas decisivo, a necessária e constante
reflexão crítica sobre o papel público do sociólogo e da sociologia, disciplina
a que Ianni se dedicou com a convicção de que, talvez mais do que outras
ciências sociais, é ela “uma ciência que sempre se pensa, ao mesmo tempo em que
se realiza, desenvolve, enfrenta impasses, reorienta” (Ianni, 1990: 92). Alerta
assim ainda para os equívocos decorrentes da posição ingênua e/ou interessada –
cujos limites sempre voláteis não são em geral fáceis de serem demarcados - de
que ciência e política constituem ou uma só “vocação” ou “vocações” mutuamente
excludentes. Sociologia e política se encontram e, embora possam mesmo se
confundir, especialmente em momentos socialmente dramáticos, não se reduzem uma
a outra. Creio ser possível dizer que assumindo a vocação sociológica com
radicalidade, Octavio Ianni expressava a convicção de que, afinal, não existe
apenas “a política dos políticos”, pois se assim o fosse, parafraseando
Norberto Bobbio:
“Não haveria lugar para os grandes debates de idéias, para
o momento da utopia (aqui entendida no sentido mais lato de reflexão sobre os
problemas da convivência não imediatamente práticos, embora praticáveis), que
todavia contribui para mudar o mundo (e não só para compreendê-lo e
interpretá-lo), ainda que em tempos mais longos, em prazos que escapam a quem
vive no e para o cotidiano” (1997: 105).
E, se como o
professor Ianni observava em relação à sociologia, o pathos de algumas obras fundamentais nasce da condição ao mesmo
tempo individual e coletiva do autor (1990: 99), é possível vislumbrar uma
vitalidade em sua própria obra decorrente em grande medida daquele que
Florestan Fernandes assinalou, ao lado do “encanto pela vida”, como o seu
“traço marcante” e “decisivo”: uma “curiosidade insaciável” (1996: 13). A obra
de Octavio Ianni é viva pois corresponde a um sólido projeto teórico que
estimula a busca de novas formulações para novos e velhos problemas sociais e
sociológicos sem justificar a indiferença, a ignorância ou o alheamento do
sociólogo e, ainda por cima, reconhecendo e fomentando a utopia como dimensão
inseparável da produção social e da produção do social. Viva Octavio Ianni!
BASTOS, E. R. 2004. “Ianni, a responsabilidade intelectual levada
ao limite” Jornal
da
UNICAMP, 19 a 25 de
abril de 2005, p. 4.
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Janeiro,
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Guanabara, pp. 154-83.
RESUMO:
Trata-se
nesta pequena homenagem de procurar fixar alguns traços da obra e trajetória do
notável sociólogo brasileiro Octavio Ianni, recentemente falecido. Explora-se de modo preliminar, nesse sentido,
a hipótese de que assumindo a vocação sociológica com radicalidade, Ianni
compatibilizou as tarefas do scholar
e as do intelectual público.
Palavras-chave:
Intelectual público; intelectual institucionalizado, utopia; sociologia como
vocação.
* o autor
é Doutor em Ciências Sociais (Unicamp), professor recém-doutor do Departamento
de Sociologia do IFCS/UFRJ e autor do livro: Aprendizado do Brasil – a nação em busca de seus portadores sociais.
Campinas (SP): Editora Unicamp, 2002.