TOCQUEVILLE E STUART MILL: REFLEXÕES SOBRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA1

 

Fabrício Jesus Teixeira Neves*

 

1. Introdução

No célebre discurso pronunciado no Ateneu Real de Paris em 1818, Benjamim Constant de Rebecque (1767-1830) anunciou a antítese entre liberalismo e democracia2, sob a forma da contraposição entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. A primeira exerceu-se na esfera pública, diretamente. Não haveria, lá, portanto, a delegação imediata dos poderes ao governo. A segunda, elegeu e ressaltou a primazia e essencialidade da esfera privada como base dos poderes, donde a necessidade mediadora do sistema representativo3. Deveria haver nos tempos modernos, então, governos que respeitassem a integridade da liberdade privada através dos mecanismos mediatos da representação. Liberal sincero, Constant defendeu, assim, a identificação entre liberdade e propriedade, ou seja, liberdade como desigualdade. 4

Com Jean Jacques Rousseau, a reflexão teórica incorporaria outros temas e enfoques à reflexão política. Não seria mais a liberdade privada a âncora da modernidade política, mas a eleição da igualdade como condição fundadora da convivência democrática. Completou-se, assim, o cenário onde se desenvolveria, desde o século XIX, o debate político contemporâneo centrado na dialética entre a questão da liberdade e a questão da igualdade, a do liberalismo e a da democracia.  

As concepções liberais foram sendo forjadas no contexto da luta contra o Estado absolutista, cujo poder político supremo era exercido exclusivamente por um monarca e seus associados, a aristocracia, a Igreja e as facções superiores da burguesia emergente. A expansão constante do desenvolvimento capitalista, levou à necessidade de dilatação dos espaços da atuação política de novos atores. Em muitos aspectos, os “textos” dos teóricos da época deram respostas às necessidades geradas pelos contextos histórico-sociais em processo de formação e desenvolvimento. O liberalismo nasceu, assim, como a doutrina do Estado limitado tanto no que diz respeito aos seus poderes quanto às suas funções. 5

As noções correntes que servem para representar os dois aspectos do Estado liberal – o limite dos poderes e o limite das atribuições – são a noção do Estado de direito e a noção do Estado mínimo, respectivamente. Por Estado de direito, entende-se um Estado cujos poderes públicos são submetidos às leis gerais do país. Tal tipo de organização estatal, no âmbito da doutrina liberal, coincide com o ordenamento jurídico que respeita o indivíduo e seus direitos naturais 6. Por Estado mínimo, concebe-se um Estado limitado em suas atividades no que se refere à esfera econômica. 7 O liberalismo, nascido para preservar a liberdade e a propriedade dos indivíduos, exprimiu profunda desconfiança para com qualquer forma de governo popular, tendo defendido a participação nos votos apenas às classes proprietárias. 8

A democracia é o governo do povo, segundo o próprio significado do termo (demos, povo; kratos, governo), cuja lógica é a da igualdade. Em meados dos séculos XVIII e XIX, o desenvolvimento da indústria e do comércio forçou o alargamento das bases sociais do sistema político, com a incorporação do proletariado. Na Inglaterra dessa época, tal processo se realizou mediante a ampliação da participação eleitoral até o limite último do sufrágio universal. 9 A extensão do sufrágio ao maior número de cidadãos possibilitou a união da democracia com o liberalismo. O encontro entre uma e outro, no entanto, não ocorreu pelo lado da igualdade, visto que reafirmou sempre o direito à propriedade, mas pela fórmula política da soberania popular. 10

O progressivo processo de democratização, decorrente da ampliação do direito de voto, considerado como uma ameaça à liberdade, acabou pondo em cheque o Estado liberal clássico. O receio de que a sociedade democratizante viesse a mostrar-se incompatível com a distinção individual tornou-se bastante comum entre os pensadores liberais do século XIX.11 Estes manifestaram  preocupação em defender os direitos do indivíduo ao mesmo tempo contra o Estado e contra as massas, recém-incorporadas ao processo de tomada de decisões.12

 

2. Tocqueville: A Democracia na América

Quando o jovem Alexis de Tocqueville desembarcou em Nova York, nos Estados Unidos, no dia 10 de maio de 1831, aos 25 anos, com a missão de estudar o regime penitenciário dos americanos, começava o primeiro mandato de Andrew Jackson (1767-1845). O governo do presidente foi marcado por uma série de medidas que visavam criar as condições para erigir uma sociedade realmente igualitária: afastaram-se as restrições de sufrágio, aboliram-se as exigências de propriedade para o exercício de mandatos e limitou-se sua duração.

Foi na observação e investigação desse contexto que ele escreveu sua maior obra, A democracia na América (1835-1840), dividindo-a em duas partes13. Na primeira, Tocqueville descreveu os aspectos geográficos do Novo Mundo, as origens dos anglo-americanos e as características mais notáveis dos Estados Unidos: a soberania e a democracia absoluta do povo. Após um  sumário das peculiaridades das instituições políticas americanas, analisou aquilo que, na sua concepção, era o maior dos males da sociedade americana: a tirania da maioria. Na segunda parte, tratou do impacto da tirania da maioria sobre a estrutura e a dinâmica da sociedade americana.

Aos olhos de Tocqueville, a democracia consistia no impulso irresistível da igualdade que levaria ao nivelamento das condições.

Nesse movimento, segundo ele, inscrever-se-ia não apenas a sociedade americana (embora considerasse que foi nos Estados Unidos onde o processo igualitário mais se desenvolveu), mas sim toda a humanidade.14 Assim, como colocou, a democracia “é universal, durável, foge dia a dia à interferência humana; e todos os acontecimentos, como todos homens, servem ao seu desenvolvimento”. 15 Tocqueville atribui à democracia um significado sagrado que lhe inspirou, segundo confessa, uma espécie de “terror religioso”. Para ele, “querer deter a democracia seria como lutar contra o próprio Deus, e só restaria às nações acomodar-se ao estado social que lhes impõe a Providência”.16

Tocqueville observou que as sociedades aristocráticas européias, baseadas na desigualdade e na hierarquia, vinham sendo substituídas desde a Idade Média por sociedades democráticas (Chevallier, 1980, pp. 255-256). Tendo escrito o texto após a Revolução Francesa (1789), e descendido de uma família que pertencia à pequena nobreza da França17, é possível que isso tenha influenciado Tocqueville a reconhecer a impossibilidade de restaurar a autoridade e os privilégios de uma aristocracia destruída pelo movimento revolucionário.

Tocqueville considerou uma diversidade de caminhos que as nações poderiam seguir para a realização da democracia. Assim, disse que as sociedades democráticas podem ser liberais ou tirânicas.18 Identificou dois grandes perigos que ameaçavam as democracias: de um lado, a tirania da maioria e, do outro, o despotismo do Estado.19

No que diz respeito ao primeiro caso, Tocqueville temia que os hábitos e os costumes de uma maioria destruíssem as vontades de minorias ou de indivíduos isolados.20 Segundo ele, o poder da maioria nos Estados Unidos “ultrapassa todos os poderes que conhecemos na Europa”.21 Não queria com isso afirmar que, na época igualitária, “se faça na América uso freqüente da tirania”, mas apenas que “nenhuma garantia ali se descobre contra ela ...” 22

Na sua visão, o despotismo se introduziu na democracia através do individualismo que caracterizou o estado social igualitário.23 Isso aconteceria porque os cidadãos, passando a dedicar-se cada vez mais aos seus assuntos privados, abandonariam o interesse pelos negócios públicos. Esse descaso pelas atividades abriria espaço para o surgimento de um Estado que primeiro se apoderaria de toda a administração pública e, depois, passaria a intervir nas liberdades fundamentais dos indivíduos.24

A principal preocupação de Tocqueville pode ser colocada nos seguintes termos: quais as condições necessárias para evitar o despotismo em sociedades igualitárias? Ou seja: como compatibilizar igualdade e liberdade? O remédio que propôs aos seus contemporâneos contra os males da igualdade foi a liberdade política.25 Nos Estados Unidos, como observou o jovem escritor, a igualdade se associou aos mecanismos da liberdade política.26 Os americanos foram sábios o suficiente para evitar o despotismo e estabelecer os princípios da soberania popular.27 Esta soberania, ao contrário do que aconteceu na Europa, se desenvolveu na América em instituições políticas concretas.28 Nos seus dizeres:

 

“Ali a sociedade age sozinha e sobre ela própria. Não existe poder, a não ser no seio dela; quase nem mesmo se encontram pessoas que ousem conceber e, sobretudo, exprimir a idéia de ir procurá-la noutra parte. O povo participa da composição das leis, pela escolha dos legisladores, da sua aplicação pela eleição dos agentes do poder executivo; pode-se dizer que ele mesmo governa, tão frágil e restrita é a parte deixada à administração, tanto se ressente esta da sua origem popular e obedece ao poder de que emana. O povo reina sobre o mundo político americano como Deus sobre o universo. É ele a causa e o fim de todas as coisas; tudo sai do seu seio, e tudo se absorve nele”.29

 

Às instituições da soberania do povo, Tocqueville acrescentou outras duas vantagens políticas que contribuíram para salvaguardar a liberdade, quais sejam: a descentralização administrativa e as associações livres.

A descentralização administrativa na América produziu efeitos políticos admiráveis aos olhos de Tocqueville. Diz ele:

 

“Nos Estados Unidos, a pátria faz-se sentir por toda parte. É objeto de anseios desde a aldeia até a União inteira. O habitante liga-se a cada um dos interesses de seu país como aos seus próprios. Glorifica-se na glória da nação; no triunfo que ela obtém, julga reconhecer a sua própria obra e nela se eleva; rejubila-se com a prosperidade geral da qual tira proveito. Tem por sua pátria um sentimento análogo àquele que experimentamos pela família, e é ainda por uma espécie de egoísmo que se interessa pelo Estado”.30 

 

As associações livres que Tocqueville encontrou na América foram as associações civis e as associações políticas. O autor chamou a atenção para a facilidade com que os americanos se associavam na vida civil tendo em vista os mais variados fins. Em suas palavras:

 

“Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os espíritos estão constantemente a se unir. Não só possuem associações comerciais e industriais, nas quais todos tomam parte, como ainda existem mil outras espécies: religiosas, morais, graves, fúteis, muito gerais e muito particulares, imensas e muito pequenas ...”.31

 

As associações políticas, voltadas para grandes empresas, reconduziam os homens uns aos outros, obrigando-os a saírem de suas famílias para se ajudarem mutuamente. Através dela, os homens “aprendem a submeter a sua vontade à dos outros e a subordinar os seus esforços particulares à ação comum”.32 Nos países democráticos, enunciou Tocqueville, “as associações políticas formam, por assim dizer, os únicos particulares poderosos que aspiram dirigir o Estado”.33

Tocqueville apontou para a relação entre as associações e a igualdade democrática. Como ele mesmo afirmou, “são as associações que, nos países democráticos, devem tomar o lugar dos particulares poderosos que a igualdade de condições faz desaparecer”.34 Em  A Democracia na América, Tocqueville explorou a influência dos  hábitos e dos costumes35 sobre o caráter das instituições políticas americanas. Procurou demonstrar os traços característicos dos americanos que tornaram a democracia liberal no Novo Mundo.

Tocqueville, longe de ser um admirador inocente dos Estados Unidos (como membro da aristocracia francesa conservava um certo desprezo pelos regimes populares), via na sociedade americana - como em todas as outras democráticas - fortes tendências tanto para o despotismo como para a tirania da maioria.

 

3. John Stuart Mill: Da Liberdade

 

O filósofo e economista inglês John Stuart Mill foi um dos maiores expoentes do utilitarismo. Submetido desde cedo à mais rigorosa experiência educacional, Mill foi iniciado na filosofia utilitarista por intermédio de seu pai, o economista e erudito escocês James Mill (1773-1836).36

O utilitarismo – doutrina ética desenvolvida pelo filósofo inglês do direito Jeremy Bentham (1748-1832) – o influenciou consideravelmente. Segundo esse filósofo inglês, o legislador deveria propor leis com o objetivo de produzir a maior felicidade (entendida como o prazer ou a ausência da dor) para o maior número. Seu objetivo era oferecer uma fundamentação coerente e racional das estratégias sociais e jurídicas em contraposição às ficções e abstrações dos direitos naturais.37

Como utilitarista, Stuart Mill recusou a teoria dos direitos naturais para fundar a sua defesa da liberdade.38 Na introdução do ensaio Da Liberdade, Mill apresentou e propôs os princípios inspiradores da sua doutrina:

 

“É conveniente declarar que renuncio a qualquer vantagem que possa resultar para meu argumento da idéia do direito abstrato como independente da utilidade. Considero a utilidade como último recurso em qualquer questão de ética; terá de ser, porém, a utilidade no sentido mais amplo, baseada nos interesses permanentes do homem como ser progressista”.39

 

Para Mill, a liberdade não caracteriza um direito natural. Entendeu a liberdade como a preservação da esfera das decisões individuais. Aos olhos de Mill, a maior ameaça para a liberdade não partia do governo, mas de uma maioria que visse com suspeita as minorias dissidentes. Ele escreveu:

 

“a vontade do povo significa praticamente a vontade da parte mais numerosa ou mais ativa do povo – a maioria, ou aqueles que conseguem fazer-se aceitos como maioria; em conseqüência o povo pode desejar oprimir uma parte da sua totalidade, tornando-se necessárias precauções contra essa atitude bem como qualquer outro abuso do poder”.40

 

Como observou Sabine:

 

“o ensaio Da Liberdade não era um apelo em prol do alívio da opressão política ou de uma modificação na organização política, mas em prol da formação de uma opinião pública genuinamente tolerante que atribuísse valor a diferenças de ponto de vista, que limitasse o grau de acordo que exigia e que recebesse as novas idéias como fontes de novas descobertas”.41

 

Mill chamou a atenção para a “crescente tendência à dilatação indevida dos poderes da sociedade sobre o indivíduo, não só pela força da opinião como também pela da legislação”.42

Em seu ensaio, Mill propôs formular um princípio com base no qual fosse possível estabelecer os limites à interferência da opinião coletiva em relação à independência individual. O princípio proposto por ele foi o de que “o único objetivo a favor do qual se pode exercer legitimamente pressão sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a vontade dele, consiste em prevenir danos a terceiros”.43 Segue-se daí que “se alguém comete um ato contra prejudicial a terceiros, concretiza-se um caso prima facie para castigá-lo pela lei ou, quando não se puderem aplicar com segurança penalidades legais, por desaprovação geral”.44

 

A esfera do que afeta só o indivíduo, e cujo direito deve ser reconhecido igualmente para todos, não pertence à esfera de ação da sociedade. Mill enumera as liberdades que fazem parte da esfera individual, e que sem as quais não há sociedade livre. Como diz ele, são elas:

 

“em primeiro lugar, o domínio interior da consciência, a liberdade de pensamento e de sentimento, a liberdade absoluta de opinião e de sentimento em todos os assuntos práticos ou especulativos, científicos, morais ou teológicos. Em segundo lugar, a liberdade de gostos e de ocupações, a de formular um plano de vida que esteja de acordo com o caráter do indivíduo, a de fazer o que se deseja, sujeitando-se às conseqüências que vierem a resultar, sem qualquer impedimento de terceiros, enquanto o que fizermos não lhes cause prejuízo, mesmo no caso em que nos julguem a conduta insensata, perversa ou errônea. Em terceiro lugar, a liberdade de cada indivíduo resulta a liberdade, dentro de certos limites da combinação entre indivíduos; a liberdade de se unirem para qualquer fim que não envolva dano a terceiros supondo-se que as pessoas assim combinadas são de maior idade e não foram nem forçadas nem iludidas”.45

 

Mill defende a diferença de opiniões, a qual considera fundamental para se alcançar a verdade. Afirma ele que  “a verdade, nos grandes interesses práticos da vida, consiste de tal maneira em uma questão de reconciliar e combinar os opostos (...)”.46 E repete mais adiante: “ (...) tão só por meio da diversidade de opiniões, no estágio atual da inteligência humana, será possível fazer justiça a todos os lados da verdade”.47

Sabine apontou quatro contribuições dadas por Stuart Mill à filosofia liberal. Primeiro, sua concepção de utilitarismo estabeleceu limites ao hedonismo bethamiano, diferenciando os prazeres em superiores e inferiores em qualidade moral. Segundo, o liberalismo de Mill considerou a liberdade política e social como boa em si mesma à parte dos resultados para os quais pudesse contribuir. “A boa sociedade, por conseguinte, devia ser aquela que permitisse liberdade e desse oportunidade para os meios livres e satisfatórios de vida”. Terceiro,  considerou a liberdade não apenas como um bem individual, mas também social. “Silenciar uma opinião pela força violentava a pessoa e roubava também a sociedade da vantagem que obteria com a livre investigação e a crítica das opiniões”. Quarto, supôs que a legislação poderia ser um meio de criar, aumentar e igualar as oportunidades, não cabendo ao liberalismo impor limites arbitrários aos seus usos. “Os limites são fixados pela capacidade, com os meios disponíveis, de preservar e estender ao maior número de pessoas as condições que tornavam a vida mais humana e menos coercitiva”.48

 

4. Tocqueville e Mill: dois liberais com algo em comum e em incomum.

 

Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill representaram as duas maiores tradições do pensamento liberal europeu: a francesa e a inglesa. Tocqueville foi um historiador e escritor político. Stuart Mill foi também um teórico da política. Contemporâneos (o primeiro nasceu em 1805 e o segundo em 1806), os dois se conheceram e se admiraram.

A Democracia na América e Da Liberdade, de Tocqueville e de Mill, respectivamente, suas obras mais importantes, referem-se  a objetos de reflexão distintos. O primeiro é o estudo de uma realidade concreta – a sociedade americana – e abrange desde a descrição dos hábitos e costumes de um povo até o caráter de suas instituições políticas. No entanto, problematiza e teoriza as vicissitudes da democracia moderna à luz de sua experiência concreta. O segundo é um estudo teórico que procura formular a relação entre o indivíduo e a liberdade no quadro democrático do século XIX. Sem que isso seja o principal aspecto, o referencial histórico é a Europa de seu tempo, notadamente a Inglaterra. Une-os, entretanto, a questão central: o que fazer para que a democracia não iniba a liberdade individual, podendo por isso vir a destruí-la? De fato, tanto para Tocqueville como para Mill, a ameaça que derivava da democracia como forma de governo era a “tirania da maioria”.49 

No capítulo sétimo da segunda parte do Livro I de A Democracia na América, dedicado à tirania da maioria, Tocqueville chamou a atenção para o poder irresistível do maior número. Diz ele: “É da própria essência dos governos democráticos que o império da maioria seja absoluto, pois fora da maioria, nas democracias, não existe coisa alguma que subsista”.50 Tocqueville foi um liberal conservador, não democrático.51

Para Tocqueville, o ideal liberal – que defendia a esfera individual – era incompatível com o ideal igualitário, que aspirava um tipo de sociedade voltada para a uniformidade dos modos de vida e de condições.52 Julgou jamais ser possível salvaguardar a liberdade através das instituições da democracia.

Mill, de outra parte, foi um liberal democrata.53 Viu a democracia como o prosseguimento natural do Estado liberal.54

Tocqueville e Mill, cada um à sua maneira, contribuíram para aprofundar as reflexões sobre o advento da democracia de massa no século XIX.

 

 

5. À Guisa de Conclusão

 

Utilizadas erroneamente como sinônimos, liberalismo e democracia expressam conceitos e posturas distintas em relação à natureza dos processos políticos modernos. O liberalismo se apóia na supremacia do indivíduo e da propriedade, e funda, aí, a concepção de uma sociedade melhor, mais eficiente e competitiva. No seu limite é conservador: a mudança deve ficar restrita ao aperfeiçoamento do que já existe. A democracia, concebida como uma correlação de forças, como uma permanente negociação das divergências dentro dos quadros legais em que o processo político ocorre, é mais adequada às modernas sociedades de volume, assentadas na crescente diversificação e especialização de suas estruturas sociais. No seu limite é transformadora: admite a incorporação constante das demandas, quando e se elas mostram-se capazes de expressar a força política dos atores que agem na arena do poder. A representação, expandindo-se, alarga o espaço dos movimentos políticos, inclusive – ou até mesmo principalmente – das minorias.  

Nos tempos contemporâneos, o liberalismo, na versão neoliberal, além de recuar à sua tradição do Estado mínimo, inaugurada por Adam Smith, parece contentar-se com a supremacia do “mercado”, alçado à categoria de foro essencial à própria existência da sociedade capitalista. Os defensores da democracia hoje parecem querer muito mais do que isso, inclusive o ataque, se necessário, aos postulados do “mercado”, se eles não têm como contrapartida o bem-estar social.

Antes, homens como Tocqueville e Stuart Mill elegiam a tirania da maioria como pior dos males que podem atingir as sociedades democráticas. Agora, os novos liberais (ou neoliberais) postulam que a maior das ameaças advém de uma compreensão inadequada dos processos que tipificam a sociedade moderna, incapaz de sobreviver caso não seja apta  a atender as exigências a ela inerente: competição máxima e eficiência máxima dentro de um Estado mínimo dotado de eficácia também a maior possível. A questão da democracia, então, incorpora-se porque se trata de se dispor – para além da representação das minorias – de um instrumental político que leve em conta, justamente, as reivindicações concretas da maioria das sociedades novas. Entretanto, em termos clássicos, tratar-se-á uma democracia de massas de caráter limitado, já que a liberdade estará ancorada na desigualdade. 

Em suma, e preliminarmente, a agenda teórica relativa às relações entre liberalismo e democracia não podem deixar de levar em consideração as contribuições indeléveis de Tocqueville e Mill. 

 

 



Notas:

 

1 Este trabalho foi apresentado para a obtenção de crédito na disciplina de “Teoria Política Moderna I”, oferecida pelo Programa de Pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ministrada pela professora Isabel Ribeiro (PPGCP/UFRJ) no primeiro semestre de 2003. 

2 Em importante estudo sobre as relações entre liberalismo e democracia, Bobbio aponta para a diversidade entre os dois ideais – o liberal e o democrático. Assim, diz ele que “o liberalismo é moderno, enquanto a democracia, como forma de governo, é antiga” (Bobbio, 1988, p. 31). Não obstante, para esse mesmo autor, liberalismo e democracia são cada vez mais interdependentes, sendo inconcebíveis, no mundo contemporâneo, Estados democráticos não-liberais ou Estados liberais não-democráticos (Id. op. cit., p. 43, grifos meus, FTN).

3 Nas suas palavras, “o sistema representativo não é mais do que uma organização com cuja ajuda uma nação encarrega alguns indivíduos de fazer o que ela mesma não quer fazer. Os indivíduos pobres cuidam eles próprios de seus problemas; os ricos contratam intendentes. Temos aqui a história das nações antigas e das modernas” (Constant apud Châtelet, 1985, p. 107).

4 Gruppi, 1998, p. 25.

5 Historicamente, o Estado liberal surgiu através de um processo gradual de erosão do poder absoluto do rei e, em momentos de crise mais conspícuos, de uma ruptura revolucionária (como no caso da Inglaterra do século XVII e da França no quartel final do século XVIII). Do ponto de vista de sua formulação racional, o Estado liberal se funda como resultado de um pacto entre indivíduos inicialmente livres que convencionam a estabelecer os vínculos necessários para uma convivência pacífica e duradoura (Bobbio, 1988, p. 14).

6 De acordo com a escola dos direitos naturais (ou jusnaturalismo), “todos os homens, indiscriminadamente, têm por natureza e, portanto, independentemente de sua própria vontade, e menos ainda da vontade de alguns poucos ou de apenas um, certos direitos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à segurança, à felicidade ...” (Id., op. cit., p. 11).

7 Bobbio, op. cit., pp. 17-19.

8 Id., op. cit., p.37.

9 Balbachevsky, 1999, p. 192.

10 Bobbio, op. cit., pp. 42-43.

11 Segundo Bobbio, no largo espectro do pensamento liberal, pode-se destacar a contraposição entre um liberalismo radical, ao mesmo tempo liberal e democrático, e um liberalismo conservador, liberal mas não-democrático. Para os liberais radicais, liberalismo e democracia estão necessariamente relacionados um à outra, no sentido de que apenas a democracia tem condições para realizar plenamente os ideais liberais e apenas o Estado liberal pode ser a condição de realização da democracia. Para os liberais conservadores, liberalismo e democracia são antitéticos, no sentido de que a democracia quando levada às suas conseqüências últimas, provoca a destruição do Estado liberal (Id., p. 52-53). O autor se alinha à primeira corrente de pensamento.

12 Chatêlet, 1985, p. 105. 

13 A obra de Tocqueville compreende duas partes publicadas entre 1835 e 1849. Adiante se fará referência ao plano de trabalho dessas duas partes.

14 Quirino, 1999, p. 153.

15 Tocqueville, 1987, p.13.

16 Id., op. cit., p.14.

17 Alexis Charles Henri Clérel de Tocqueville pertencia, por parte do pai, à petite noblesse da Normandia, enquanto que, por parte da mãe, tinha ligações bem próximas com os Malesherbes. Durante os primeiros anos da Revolução, seus pais foram aprisionados e seu avô materno, o marquês de Rosambo, morreu na guilhotina (Cuin e Gresle, 1992, p. 45).

18 Quirino, op. cit., p. 155.

19 Id. Ib.

20 Id. Ib.

21 Tocqueville, op. cit., p. 196.

22 Id., op. cit., p. 195.

23 Tocqueville descreveu como o individualismo, ausente nas épocas aristocráticas, nasceu da igualdade de condições. “A aristocracia fizera de todos os cidadãos uma longa cadeia que subia do camponês ao rei; a democracia desfaz a cadeia e põe cada elo à parte” (Tocqueville, op. cit., p. 387).

24 Quirino, op. cit., p. 156.

25 Tocqueville, op. cit., p. 391.

26 Chatelêt, 1985, p. 110.

27 Chevallier, op. cit., p. 256.

28 Chatelêt, op. cit., p. 110.

29 Tocqueville, 1987, p. 52.

30 Id., op. cit., p. 389.

31 Id., op. cit., p. 391.

32 Id., op. cit., p. 394.

33 Id., op. cit., p. 399.

34 Id., op. cit., p. 394.

35 Entre os costumes dos estadunidenses, Tocqueville considerou a religião o fator mais importante para se compreender o caráter liberal da democracia nos Estados Unidos. Como salientou, a sociedade americana soube combinar o espírito de religião ao de liberdade.

36 Após a morte do pai, em 1836, Stuart Mill afastou-se da ótica utilitarista mais estrita. Entretanto, sustentou em sua obra o princípio básico do utilitarismo. Para um maior entendimento da concepção utilitarista de Mill, ver, por exemplo, Balbachevisky (op. cit., p. 197) e Sabine , 1961, pp. 686-687).

37 Como salienta o estudioso italiano Norberto Bobbio, “na tradição do pensamento anglo-saxão, que certamente é a que forneceu a mais duradoura contribuição ao desenvolvimento do liberalismo, a partir de Bentham utilitarismo e liberalismo passaram a caminhar no mesmo passo, e a filosofia utilitarista torna-se a maior aliada do Estado liberal. A passagem do jusnaturalismo ao utilitarismo assinala para o pensamento liberal uma verdadeira crise dos fundamentos, que alcançará o renovado debate a respeito dos direitos do homem desses últimos anos” (Bobbio, op. cit., pp. 63-64).

38 Balbachevisky, op. cit., p. 198.

39 Mill, 1963, pp. 13-14.

40 Id., op. cit., p. 6.

41 Sabini., op. cit., p. 689.

42 Mill, op. cit., p. 17.

43 Id., op. cit., p. 12.

44 Id., op. cit., p. 14.

45 Id., op. cit., p. 15. 

46 Id., op. cit., p. 54.

47 Id. Ib.

48 Sabine, op. cit., p. 693

49 Bobbio, op. cit., p. 57.

50 Tocqueville, op. cit., p. 190.

51 Bobbio, op. cit., p. 56

52 Id., op. cit., p. 59.

53 Id., op. cit., p. 69.

54 Para Balbachevsky, a obra de Stuart Mill estabeleceu um compromisso entre o pensamento liberal e o ideal democrático. Escreve ela: “Com Mill, o liberalismo despe-se de seu ranço conservador, defensor do voto censitário e da cidadania restrita, para incorporar em sua agenda todo um elenco de reformas que vão desde o voto universal até a emancipação da mulher” (Blabachevsky, op. cit., p. 195).

 

Bibliografia:

 

BALBACHEVSKY, Elizabeth. “Stuart Mill: Liberdade e Repressão”, in: WEFFORT, Francisco C. (Org.) Os Clássicos da Política, São Paulo: Editora Ática, 1999.

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TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987.

 

Resumo:

Estuda-se, neste trabalho, as reflexões teóricas de Alexis de Tocqueville e de John Stuart Mill acerca dos efeitos da democracia de massa sobre a liberdade dos indivíduos. Procede-se, na primeira parte, o esboço das proposições centrais de Tocqueville tal como expostas em A democracia na América (1835-1840). A segunda parte objetiva expor, sumariamente, as principais idéias de Stuart Mill delineadas no livro Da liberdade (1859). Na terceira, intercala-se as duas visões em tela, ressaltando os pontos de convergência e de divergência entre os autores. Na última, conclui-se apontando para a distinção entre liberalismo e democracia, acentuando, ainda, a relevância das abordagens de Tocqueville e Mill.   

 

Palavras-chaves: Democracia, liberalismo e Teoria Política Moderna.

 

* Fabrício Jesus Teixeira Neves é mestrando de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.

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