Marcel
de Almeida Freitas *
Vivemos hoje sob
a hegemonia do sistema capitalista e num mundo em que as
possibilidades de transformação da ordem sócio-política
se mostram bastante reduzidas e para muitos não há mais meios para se fazer
qualquer transformação. Nesta perspectiva, a palavra transformação é, nos
nossos dias, incompatível com o contexto sócio-político que experimentamos. O
capitalismo se apresenta como a única alternativa viável para qualquer
sociedade e para qualquer povo. A sociedade burguesa deve ser a base de qualquer sociedade que queira progredir, se
desenvolver economicamente e, principalmente, que queira efetivar os ideais
democráticos e as liberdades civis. Capitalismo passa a ser sinônimo de
desenvolvimento, progresso, democracia e liberdade. Para muitos, só ele pode
fazer girar tudo de forma eficiente.
Ao lado dessa hegemonia capitalista, o
que percebemos é que o mundo hoje, é um mundo cheio de contradições e
conflitos, principalmente contrastes de natureza social. O planeta se divide
cada vez mais, em ricos e pobres, em desenvolvimento e subdesenvolvimento. Não
há como negar o desenvolvimento econômico, os avanços tecnológicos, o progresso
científico e a modernização de uma parte do mundo. Mas, por outro lado, não há
como negar as desigualdades sociais, as injustiças, a miséria, a fome e o
subdesenvolvimento que está presente numa outra parte do mundo, muito maior do
que a primeira. Assim, estamos num mundo sob a égide capitalista que se
caracteriza por duas esferas contrastantes. Uma esfera é a da modernização e do
desenvolvimento, a outra é da desigualdade e do subdesenvolvimento, que é a
esfera onde está a maioria da população.
É importante ressaltar a origem dessa conjuntura sócio-política
e o que foi responsável por essa hegemonia do capitalismo nos dias atuais. Sem
dúvida, o desmoronamento da ex-URSS e a derrocada dos
regimes socialistas do Leste Europeu foram os principais fatores que
determinaram para que o mundo chegasse à atual conjuntura. É evidente que o
capitalismo não chegaria à posição que chegou hoje se o socialismo não tivesse
dado a sua contribuição de forma decisiva. Não nos cabe aqui discutir quais os
fatores que levaram a essa derrocada, nem se esses erros e defeitos foram do
socialismo em si, enquanto doutrina, ou se foram dos governos comunistas que
dirigiram tais sistemas. O importante é percebermos que essa derrocada e esse
desmoronamento foram primordiais para a ascensão capitalista hoje.
É dentro do presente contexto, de
ascensão capitalista e fracasso socialista e do desaparecimento da bipolaridade
mundial, que surge uma grande e importante questão, que pode ser colocada da
seguinte maneira: será que o desmoronamento da ex-URSS
e a derrocada dos regimes socialistas do Leste Europeu teriam estabelecido a
impossibilidade de se propor alternativas à sociedade capitalistas? E a partir
desse quadro, não haveria mais sentido falar de esquerda e direita no mundo
atual já que a esquerda se propunha de certas formas, a contestar o
capitalismo? Poderíamos afirmar de forma enfática, como Blackburn
(1993), que esses acontecimentos implicaram no ‘fim da história’?
Todavia, uma coisa é o sentido dos
termos esquerda e direita, ele se alterar em face de tais transformações, outra
é esse sentido desaparecer. A ascensão capitalista e a derrocada da antiga URSS
e dos regimes socialistas não são suficientes para se afirmar que os termos esquerda e direita estejam ultrapassados e não
tenham mais significação. A dicotomia esquerda-direita
vai além da bipolaridade capitalismo-socialismo, que orientou toda a ordem
política mundial, durante anos. Não podemos dizer que o fim dessa bipolaridade
represente o fim da dicotomia esquerda-direita, pois
os princípios típicos de esquerda como a igualdade e a justiça social, não
acabam com o fim da bipolaridade. O fim dos regimes socialistas pode
representar a derrocada de uma via que possibilitava a realização desses
ideais, mas não que há uma única via.
Diante disso, é mister frisar que o que
define realmente a dicotomia esquerda-direita, não é
tanto a antiga bipolaridade capitalismo-socialismo, mas é fundamentalmente a
contraposição mercado versus justiça
social. É essa contraposição o elemento primordial para pensar em esquerda e
direita, principalmente nos dias de hoje, pois, atualmente essa contraposição
se mostra não só presente, mas fundamental para a análise do cenário político
brasileiro. Quanto a essa questão, Emir Sader
escreve:
"Nessas condições,
nunca como hoje a contraposição mercado x justiça social foi tão essencial.
Jamais esta contradição cruzou tanto nossas sociedades desde os 30 milhões de
desempregados do próprio hemisfério norte, junto à discriminação e segregação
de suas dezenas de milhões de imigrantes, até as grandes maiorias do hemisfério
sul, vivendo em sociedades cada vez mais apartadas" (Sader,
1995:17).
É dentro desse contexto sócio-político que compreendemos a dicotomia esquerda-direita no Brasil, procurando ressaltar o novo sentido que essa dicotomia tem atualmente. Para isso, é necessário atualizar a contraposição mercado versus justiça social e conseqüentemente, fazendo isso, estaremos atualizando o próprio sentido dos termos esquerda e direita. Por fim, ao reciclar o significado dos termos esquerda e direita, apontaremos para a possibilidade de surgimento de uma nova esquerda.
Para fazer uma sólida análise da
dicotomia esquerda-direita e para que se possa
entender bem o sentido destes conceitos hoje, se faz necessário conceituar, minimamente,
os próprios termos esquerda e direita, verificando o
significado político que tiveram e, principalmente, averiguando como
estes termos estiveram presentes em grandes acontecimentos históricos.
Os dois termos simbolizam localizações
geográficas que se opõem uma a outra. Os termos ganharam significado
estritamente político, inicialmente, na Revolução Francesa. Durante a
Assembléia Constituinte, aqueles que apoiavam e que estavam a favor do antigo
regime ficavam originalmente, do lado direito, por outro lado, aqueles que
defendiam a nova ordem social e política se sentavam do lado esquerdo. Isso
significa que os conservadores, que pretendiam manter o regime anterior, se
agrupavam à direita no parlamento, os defensores da mudança se agrupavam à esquerda.
A partir dessa distinção básica, as
concepções esquerda e direita adquirem significado fundamentalmente político. Esquerda
passou a designar aquele conjunto de forças que luta, essencialmente, por
transformações numa determinada ordem social e política, transformações que
resultem na instauração de uma nova ordem, ou transformações que resultem na
reformulação da ordem vigente. Mesmo que o teor e o grau das mudanças possam
variar, de acordo com uma esquerda mais ou menos ‘radical’, o que está presente
em qualquer esquerda é o caráter contestatório assumido.
A direita já seria o contrário disso.
Direita passou a designar, no âmbito político, aquelas forças favoráveis à
manutenção de uma ordem social e política. A direita se preocupa, basicamente,
em conservar e não alterar um sistema que está dado. Isso pelo fato de que a
manutenção de um sistema, tal como ele foi instaurado e tal como ele se
apresenta, é amplamente favorável aos interesses econômicos, sociais e
políticos daqueles que compõem as forças de direita. Para a direita não é
vantagem alterar o sistema, mas sim preservá-lo.
Analisando as noções ‘esquerda’ e
‘direita’ poderíamos identificar a direita com aquele conjunto de forças
políticas interessadas em manter o sistema atual vigente, que é o capitalista.
A esquerda seria identificada com aqueles que se propõem a lutar por mudanças
no sistema capitalista, seja no sentido de reformulá-lo ou seja no sentido de
superá-lo e instituir um outro sistema. Dessa forma, as pessoas ou partidos que
lutam para implementar mudanças e até pela superação do sistema capitalista,
constituem a esquerda. Quanto a essa diferenciação, podemos colocar que
"Assim, hoje a
direita se compõe dos conservadores daqueles que se interessam pela reprodução
e manutenção do sistema vigente, o capitalismo, e a esquerda se caracteriza por
integrar aqueles que desejam a evolução e a superação de tal sistema" (Sader, 1995:21).
A contraposição mercado versus justiça social que é fundamental
para entendermos a díade esquerda-direita no Brasil,
e que sempre faz parte dos cenários políticos em todo o mundo, principalmente
no tocante às lutas políticas entre esquerda e direita,
tem o ponto de origem na própria Revolução Francesa. Isso pelo fato de propor a
implementação de ideais que se mostravam bastante contraditórios, o que
permitiu uma série de críticas à efetivação dos ideais por completo. Os ideais
de liberdade, igualdade e fraternidade se mostravam contraditórios porque a
efetivação de um, implicaria a negação do outro, de modo que não haveria como
esses planos se concretizarem conjuntamente. Garantir a liberdade significa
garantir o direito de propriedade e a liberdade de mercado, instituindo
relações econômicas de mercado, o que por sua vez, entrava em choque com a
realização da plena igualdade.
Essa contradição existente entre os
ideais da Revolução Francesa proporcionou críticas quanto ao rumo que o
processo revolucionário estava tomando, e essas críticas eram dirigidas,
principalmente, por parte daqueles que colocavam a igualdade em primeiro lugar.
Os críticos da Revolução Francesa começavam a delinear o que seria a esquerda e
o que ela representaria posteriormente como força política. Além disso, a
contraposição mercado versus justiça
social emergia no cenário político mundial como um divisor de águas no que se
refere à divisão entre as várias forças políticas e a luta que elas passariam a
travar a partir da Revolução Francesa. Tal contraposição seria o ponto de
referência para o posterior enfrentamento entre as forças de esquerda e de
direita.
Na verdade, todas as críticas à
Revolução Francesa e seus ideais tinham fundamento, pois a realização da
liberdade tal como era entendida, em especial a econômica, resultava na não
realização da igualdade. Rousseau, muito antes, já ressaltava essa visão.
Segundo ele, a propriedade privada era a base da
desigualdade entre os indivíduos, visto que a partir do momento em que alguns
passam a donos, proprietários e outros não, os indivíduos se tornam também
desiguais. Emir Sader deixa claro esse pensamento de
Rousseau, quando destaca:
"A tradição de
esquerda partiu justamente dessa crítica: antes mesmo da Revolução Francesa, um
de seus fomentadores ideológicos, Rousseau afirmava que a desigualdade humana
tinha suas origens na propriedade privada, ao dividir os homens em
proprietários e não-proprietários, isto é, em poderosos e fracos, em
governantes e governados" (Sader, 1995:23).
A partir dessas críticas e dos
antagonismos provocados pela Revolução Francesa, aquelas forças que atuaram
juntas contra o antigo regime começaram a se dividir e, principalmente,
começaram a optar por caminhos diferentes e antagônicos e, diríamos, um caminho
mais a ‘esquerda’ e outro mais a ‘direita’. Aqueles que pretendiam seguir um
caminho à direita defendiam o livre mercado, a propriedade privada, uma
economia auto-regulada, enfim, a liberdade econômica estava em primeiro plano e
deveria se realizar mesmo que isso afetasse a igualdade. Com esse caminho se
identificavam basicamente a alta burguesia industrial e comercial e alguns
setores médios da burguesia. Por outro lado, aqueles que pretendiam seguir um
caminho à esquerda advogavam o interesse público, o bem coletivo e a justiça
social. Para tais pessoas a igualdade estava acima da liberdade econômica.
Nessa linha estavam, principalmente, a pequena burguesia varejista e os setores
populares.
Ao longo do tempo o movimento político de esquerda veio se desenvolvendo e fazendo adeptos. O cenário político mundial, após a Revolução Francesa passaria por uma redefinição devido aos novos atores que estavam atuando na arena política e também em razão da nova agenda política. Simultaneamente, a esquerda ia se repartindo em vários grupos. Embora esses grupos fossem orientados por diferentes ideologias e utilizassem estratégias de luta diferentes, eles se assemelhavam num ponto básico, ou seja, eram forças de esquerda, grupos contestadores da ordem capitalista vigente.
Essas coletividades tinham uma tendência
anticapitalista, mas eram orientadas por várias correntes ideológicas, principalmente
as correntes anarquistas, reformistas e comunistas em suas diferentes
variações. Como se sabe, a abordagem que mais se expandiu mundialmente foi a
comunista. Ela não só foi importante para a evolução das várias facções de
esquerda como foi o principal marco de referência para as lutas de esquerda em
todo o mundo. Esta corrente entrou no cenário político em 1848 com O Manifesto Comunista de Marx e Engels
(1988) e, a partir daí, foi a grande corrente ideológica de contestação do
sistema capitalista. Foi nesta vertente que se aglutinaram as principais
propostas de esquerda e por muito tempo representaria a principal possibilidade
de superação do capitalismo.
A divisão que foi se instaurando na
esquerda em nível global não dizia respeito somente às correntes ideológicas
que a orientavam, desde a anarquista até a comunista. Essa divisão se estendia
a outro âmbito, isto é, o âmbito da trajetória, da melhor via a ser escolhida
pelos partidos de esquerda para que se pudesse efetivar a superação do
capitalismo e, conseqüentemente, instaurar uma nova ordem. A escolha da via a
ser percorrida provocou, então, uma divisão nos partidos e organizações de
esquerda. Havia duas grandes opções: transformações graduais e contínuas do
capitalismo, até se chegar a uma nova sociedade, ou ruptura total com o
capitalismo e a construção imediata da nova sociedade.
A primeira via era caracterizada como de
longo prazo, o sistema capitalista seria eliminado aos poucos até chegar a sua
totalidade e, por outro lado, o socialismo seria implantado gradualmente. Nesse
caso, o que teríamos seria uma transição reformista. Os adversários dessa via
colocavam que, jamais, uma sociedade socialista poderia ser implantada dessa
maneira, porque as forças conservadoras e os interesses capitalistas e
burgueses não permitiriam que essas transformações graduais se efetivassem e,
possivelmente, utilizariam todos os meios repressivos para impedir essas
alterações. Para os adversários dessa alternativa não se destrói o sistema
capitalista com reformas.
A segunda via é a revolucionária.
Acredita que a implantação da sociedade socialista só é possível por meio de
uma revolução, só ela consegue destruir as estruturas capitalistas e que é
estritamente necessário romper com o Estado capitalista e com a sociedade
burguesa para que existam condições de instaurar uma nova ordem. Para os
defensores desse caminho, participar das instituições políticas burguesas e
atuar dentro da legalidade democrática capitalista significaria dar apoio ao
sistema capitalista.
Essas duas vias de ação, que
caracterizavam dois caminhos alternativos para a construção de uma nova
sociedade e para a superação do capitalismo, possibilitaram uma divisão entre
as forças de esquerda em todo o mundo. Parte da esquerda optou pelo primeiro
caminho e outra parte optou pelo segundo. Ao mesmo tempo em que a esquerda se
dividia entre essas duas posições uma grande questão emergia: qual seria a
melhor via, a mais eficaz para derrubar o capitalismo? Quanto a essa divisão, Sader (1995) frisa que grande parte dos dirigentes
socialistas alemães optou pelo caminho das transformações graduais e
institucionais, enquanto o nascente movimento revolucionário russo escolheu a
via da insurreição.
A partir dessa divisão mundial que ia se
estendendo entre as forças de esquerda, o movimento político considerado de
esquerda passou a se constituir de uma série de subgrupos, de facções e
ideologias que não atuavam dentro de uma mesma linha e nem seguiam uma mesma
trajetória, mas que (ainda) buscavam um objetivo semelhante. Tal clivagem fez
com que o movimento de esquerda fosse separado entre revolucionários e
reformistas, internacionalistas e nacionalistas e entre comunistas e social-
democratas.
Assim, Entender a dicotomia esquerda-direita no presente, não só no Brasil, mas em
qualquer parte do mundo, requer uma avaliação do atual quadro político e social
em que vivemos. Não há como analisar a divisão entre forças de esquerda e direita
que prevalece em todo o mundo, se não levarmos em conta que o cenário político
hoje, é novo.
Ser de esquerda ou de direita no início
do milênio tem uma conotação diversa da que anteriormente caracterizava esses
dois termos. Com o desmoronamento da antiga URSS e a derrocada dos regimes
comunistas do Leste Europeu uma nova conjuntura sócio-política emergiu, não mais caracterizado pela
bipolaridade mundial, pela divisão do mundo em dois grandes líberos, o
capitalista e o socialista. Estamos hoje dentro de um contexto dominado pelo
capitalismo e, que por isso, obriga-nos a pensar a dicotomia esquerda-direita de uma forma diferente, sem entretanto chegarmos ao ponto de dizer, como muitos, que
não há mais sentido nem necessidade em falar de esquerda e direita.
Sublinhamos que o fim da bipolaridade
mundial entre capitalismo e socialismo não significa o fim da contraposição esquerda-direita, mas significa que tal contraposição se
expressa de uma forma diferente e nova. É importante entendermos que a
contraposição mercado versus justiça
social, que é o aspecto fundamental e elemento primordial para se analisar a
dicotomia esquerda-direita, continua efetivamente
presente nessa nova conjuntura sócio-política
brasileira. E mais do que isso, tal contraposição se apresenta hoje, no cenário
político brasileiro, de maneira extremamente forte.
A nova situação sócio-política
brasileira expressa o fim da bipolaridade capitalismo-socialismo mas não o fim da contraposição mercado versus justiça social, que é o que, na verdade, sempre marcou a
divisão entre esquerda e direita em todo o mundo e ao longo da história. Já na
Revolução Francesa essa contraposição marcaria ou definiria toda a divisão de
forças políticas. Aqueles que privilegiavam a igualdade em detrimento da
liberdade (principalmente a econômica), passariam a lutar pela justiça social,
já aqueles que privilegiavam a liberdade em detrimento da igualdade, tenderiam
a defender o mercado.
Sem dúvida que a bipolaridade entre
capitalismo e socialismo expressava a contraposição mercado versus justiça social, já que colocava
em enfrentamento um sistema sócio-econômico que caracterizava a hegemonia do
mercado e outro que caracterizava a hegemonia da justiça social. Mas o fato de
não haver mais a hegemonia da justiça social não significa que tal
contraposição tenha acabada. O que acontece é que essa contraposição, hoje, se
encerra ou se apresenta de uma maneira diferente, pois, como foi dito antes,
vivemos numa conjuntura sócio-política nova.
Dessa forma, para analisar a dualidade esquerda-direita, nesse novo contexto, há de ressaltar que essa recente conjuntura sócio-política
é caracterizada principalmente, pela emergência e ascensão do neoliberalismo. É
internamente nesse contexto de ascensão do neoliberalismo que devemos situar a
bipolaridade esquerda-direita. É também, a partir do
neoliberalismo que vamos conseguir atualizar o significado dos dois termos.
O neoliberalismo é o ponto chave para se
entender, no atual quadro político, a divisão de forças entre esquerda e
direita. É através da ascensão neoliberal que se pode perceber a redefinição da
divisão de forças que hoje ocorre no país. A própria interpretação da
contraposição mercado e justiça social, que é o elemento primordial que definiu
historicamente e ainda define a dicotomia esquerda-direita,
não pode ser desenvolvida sem que tenhamos como referência o neoliberalismo. A
contraposição ou a defesa da doutrina neoliberal são os aspectos principais que
hoje definem e orientam a divisão das forças políticas. Falar em esquerda e
direita na atual conjuntura política requer falar em política neoliberal. Não
há como analisar o pensamento político atual, seja ele no campo da esquerda ou
no campo da direita, sem menção ao neoliberalismo.
A contraposição mercado versus justiça social, que ao longo da
história a partir da Revolução Francesa definiu a dicotomia esquerda-direita,
em qualquer lugar do mundo, se expressa, nessa nova conjuntura sócio-política, na contraposição neoliberalismo versus anti-neoliberalismo,
e não mais na bipolaridade capitalismo e socialismo. O fim da bipolaridade
cedeu lugar a uma nova forma de expressão da contraposição que é a base da discussão entre esquerda e direita na arena
política, ou seja, a contraposição mercado versus
justiça social.
Dito isso, pode-se ressaltar que o
pensamento, a atuação e o discurso político de esquerda, nesse novo contexto
sócio-político, se reflete ou se exprime na contraposição ao neoliberalismo. O
neoliberalismo é hoje o grande divisor de águas entre forças de esquerda e de
direita, e apresenta uma séria ameaça à justiça social. Essa doutrina
representa o privilégio do mercado em detrimento da justiça social, apontando
para um caminho de desenvolvimento econômico e de modernização capitalista que
se efetiva as expensas de injustiças sociais e de grandes desigualdades.
O privilégio e a ênfase que a doutrina
neoliberal fornece ao mercado em detrimento da justiça social não é algo
difícil de se perceber, pois fica bastante claro nos seus próprios fundamentos
que mostram as raízes do neoliberalismo, e podemos perceber que em nenhum
aspecto há preocupação em se defender a distributividade
social, mas pelo contrário, o objetivo é destruir qualquer idéia que se
relacione à justiça social.
Presentemente o neoliberalismo é o mais
novo figurino da direita mundial e, principalmente, da direita dos países do
terceiro mundo. É a mais nova bandeira de oposição dos segmentos conservadores,
daquela parcela reduzida que compõe a elite econômica e política da sociedade
brasileira e que tenta, nesse atual contexto sócio-político, maximizar cada vez
mais seus interesses econômicos, não importando se isso vai acarretar o aumento
das desigualdades sociais no país. Quanto a esse novo modelo assumido pela direita
brasileira, similar ao “menenmismo” argentino,
ressalte-se que:
"Durante os governos
Sarney, Collor e Itamar Franco, o poder foi assumindo uma nova cara no Brasil.
A partir de 1989, o último ano do governo Sarney, a ideologia predominante no
Brasil passou a ser o neoliberalismo. Este é um figurino novo para a direita
brasileira, que já havia adotado vários modelos" (Sader,
1995:37).
Dessa forma, devemos entender que ao
longo da história política brasileira, vários figurinos caracterizaram a ação
política dos setores conservadores da nossa sociedade. Na verdade, todos esses
figurinos tentavam encobrir o objetivo maior, ou seja: a manutenção da ordem
social e política vigente e a hegemonia do mercado sobre a igualdade social. Em
última instância, o que setores de direita pretendiam era evitar que o pólo da
justiça social prevalecesse sobre o pólo de mercado.
A doutrina de segurança nacional, o
figurino típico da direita brasileira nos anos 1960, acabou resultando no golpe
militar de 64. Esse golpe decretava a derrubada de qualquer tentativa de se
implementar as reformas de base, que seriam reformas que privilegiariam a
justiça social:
"A partir da ditadura
militar, a direita assumiu uma cara que estava gestando
desde o final dos anos 40: a doutrina de segurança nacional, para a qual os
objetivos fundamentais do país deviam estar no binômio desenvolvimento e
segurança. A direita reivindicava agora o desenvolvimento industrial e até
mesmo, a atividade estatal na economia, associada ao capital estrangeiro"
(Sader, 1995:186).
Mas essa não foi a
única face assumida pela direita ao longo da história. Vários outros artifícios
foram colocados em cena e expressaram os interesses de toda a direita brasileira.
O importante é destacar que agora o neoliberalismo representa a sua mais nova
faceta. É um projeto de modernização e de desenvolvimento que se caracteriza
pela hegemonia e pela ênfase no mercado e que apresenta fundamentos que
desconsideram a idéia de justiça social. O neoliberalismo carrega consigo um
caráter exclusivista e discriminatório. É uma via de modernização do sistema
capitalista na qual as vantagens propiciadas serão exclusivas de parcelas da
sociedade, principalmente dos segmentos ligados ao capital
privado, financeiro e monopolista. Portanto, é uma via de modernização
que se contrapõe a propostas de inclusão social e que só é possível se
concretizar às custas do aumento das desigualdades sociais.
É importante ressaltar também que o
próprio neoliberalismo se reveste de um certo ‘ar’ de modernização bastante
específico e que é assaz criticável. É uma idéia associável ao pensamento
político da direita brasileira, na medida em que negligencia qualquer dimensão
social da modernização. A modernização bem como o desenvolvimento tratado na
concepção neoliberal se refere, basicamente, à dimensão meramente econômica.
Não que a dimensão econômica não seja importante (é importante desde que seja
um desenvolvimento econômico que alcance os diversos setores da sociedade), o
problema é que a modernização é vista apenas financeiramente, ou seja, é
pensada distanciando-se o progresso econômico de políticas sociais. SADER
ressalta bem a concepção de modernidade defendida pela doutrina neoliberal:
"... é concebida
apenas na sua dimensão econômica. Mesmo que fosse assim, os países que mais se
desenvolveram nas últimas décadas - Japão, Alemanha, Coréia do Sul - não o
fizeram por essa via. E a verdadeira modernidade significa a superação do
atraso, a implantação dos direitos de cidadania para todos, e tem assim uma
inerente dimensão ética, espírito público e preocupação social" (Sader, 1995:192).
A passagem acima, além de mostrar a
idéia de modernização inerente ao neoliberalismo, tenta também desmistificar
certos pressupostos que estão inseridos no caminho neoliberal. O principal
deles é o que se refere ao suposto caráter inevitável do neoliberalismo.
Aqueles que o defendem, na verdade, procuram mostrar que não defendem uma
alternativa possível, mas que defendem o único caminho, a única e inevitável
alternativa. Seus partidários tentam mostrar que não se tem outra opção, a via
neoliberal seria, hoje, a ordem natural das coisas. Mas o que podemos notar, na
atual conjuntura política e social, é que existem outras saídas. Ressaltamos
que países como Japão e Alemanha adotam uma via diferente do projeto neoliberal
e obtêm resultados satisfatórios.
Há que se destacar que vários motivos
levam a esquerda brasileira ainda a se contrapor ao neoliberalismo. Dentre
estes, ressaltamos:
1º) As políticas neoliberais representam
uma grande ameaça de eliminação dos direitos sociais conquistados e de
liquidação das grandes conquistas coletivas que se efetivaram até hoje e que
ameaçariam todos os avanços e os progressos em termos de justiça social que se
concretizaram no país;
2º) Por outro lado, quando não torna
impossível, o neoliberalismo torna difícil qualquer tentativa ou possibilidade
de implementação de reformas sociais no sistema capitalista. Esses seriam duas
grandes razões que levam a esquerda brasileira a se opor e a lutar contra o
neoliberalismo, expressando seu caráter totalmente antipopular.
Antes de passar para a análise desses
fundamentos urge frisar que o neoliberalismo surgiu como alternativa à crise
que se verificou no chamado Estado do bem-estar social. Na verdade, o
neoliberalismo representou uma reação de direita a esse Estado. O Estado de
bem-estar social se caracterizou pela intervenção na economia buscando um crescimento
mais prolongado, por grandes investimentos estatais no setor econômico, pela
concessão de créditos e subvenções fiscais estimulando o desenvolvimento e,
mormente, pela execução de políticas sociais abrangentes. Era um Estado que
procurava minimizar as desigualdades sociais, assumindo uma função social e
procurando consolidar um conjunto de direitos sociais primordiais no sentido de
amenizar as graves conseqüências sociais provocadas pelo capitalismo. Enfim,
propiciou progressos em termos de justiça social, embora tenha deixado falhas e
lacunas em alguns aspectos, como por exemplo, uma pesada máquina burocrática.
Contrário a esse tipo de sistema surgiu a ideologia neoliberal, que viria propor um novo modelo de
estado, alicerçado em princípios bastante diferentes. O que o neoliberalismo
propõe é um Estado desvinculado de qualquer papel social, descompromissado
com as questões populares, o que significa a desintegração da dimensão social
da cidadania, cuja efetivação e consolidação se deu no Estado do bem-estar
social. Se a dimensão social da cidadania é o que caracteriza, em grande parte,
o Estado do bem-estar, o neoliberalismo enquanto reação a esse estado só pode
almejar a sua deterioração.
Por mais falhas que o Estado do
bem-estar social possa ter apresentado (alvo de críticas, principalmente
daqueles setores conservadores e ligados ao grande capital privado), ele
aumentou os níveis de conforto material das classes trabalhadoras,
possibilitando grandes avanços na área social. É importante fazer tais referências
históricas quanto ao processo de formação e constituição da doutrina neoliberal
para entendermos porque, atualmente, a esquerda brasileira se coloca em posição
de enfrentamento a esse projeto.
É mister destacar três pressupostos
básicos que orientam e estruturam as políticas neoliberais. O primeiro
fundamento do neoliberalismo é a desregulamentação da economia, o que é o
contrário do que acontecia no Estado do bem-estar. Segundo a doutrina
neoliberal, a desregulamentação permitiria a livre circulação do capital e os
recursos da economia seriam repartidos pelas regras do próprio mercado de forma
equilibrada para os diversos setores da sociedade. Na verdade, o que,
historicamente, aconteceu foi que quanto mais a economia esteve desregulamentada, mais se produziram desequilíbrios
econômicos entre os seus diversos setores.
Como é sabido, o mercado nunca se
mostrou capaz de repartir os recursos de uma maneira equilibrada, que beneficie
todos os setores da sociedade. Além do mais, numa economia como a brasileira,
caracterizada por grandes monopólios, oligopólios, cartéis e amplamente
dominada pelo grande capital privado internacionalizado, a desregulamentação da
economia torna o mercado mais desigual do que ele já é e muito mais excludente.
A competição ficaria fortemente ameaçada e, possivelmente, sem a intervenção
estatal, o mercado seria dominado em pouco tempo pelos cartéis nacionais e
estrangeiros que têm interesses convergentes.
Talvez a desregulamentação possa até
gerar desenvolvimento econômico, mas isso nos remete a uma pergunta crucial:
que tipo de desenvolvimento se produzirá? Será um progresso
amplo, global, que trará benefícios aos diversos setores da sociedade e
que favorecerá a distribuição de renda no país como seria ideal, ou será um
desenvolvimento do tipo do milagre econômico nos anos 1970, restritivo,
desigual, que trouxe benefícios para determinadas camadas sociais e que teve
como base a concentração de renda?
Outro pilar básico do neoliberalismo são
os programas de privatização. Tais estão inseridas na desregulamentação da
economia e a complementam. Esses programas são importantes para diminuir,
gradualmente, a presença do Estado na esfera econômica. A redução significativa
do setor público é importante na doutrina neoliberal para propiciar a expansão
do setor privado, que é o grande objetivo do neoliberalismo. Busca-se, também,
reduzir a presença do Estado em outras áreas, com as sociais, abrindo caminho
para que o grande capital privado ocupe essas esferas também. Dessa forma, fica
garantida a expansão do setor privado.
Concretamente, o objetivo maior dessas
privatizações é repassar ou transferir para o setor privado, de forma gradual,
as áreas tradicionalmente de atuação maciça do setor público, como as áreas de
educação, saúde, habitação, telecomunicações até possibilitar amplo controle do
capital privado sobre as mesmas. Embora os programas de privatizações busquem,
em primeiro lugar, reduzir a atuação do setor público sobre as áreas sociais (e
não só sobre essas áreas, todas as outras) e, simultaneamente, aumentar a
presença do grande capital privado, a idéia central é eliminar qualquer
participação ou atuação do Estado em tais áreas.
Ao se instituir, através das
privatizações, esse processo de substituição da presença
efetiva do Estado pelo controle do setor privado nas áreas sociais, estará
possibilitada a expansão do grande capital privado e, com isso, o
desenvolvimento capitalista, mas com graves conseqüências sociais. Há também
que se destacar o perigo que esses programas representam para os direitos
sociais, já que tais direitos dependem, diretamente, de um setor público
eficiente e fortalecido.
Outro fundamento básico do
neoliberalismo é o corte do déficit público. Isso significa, precisamente, a
redução significativa dos gastos públicos através da execução de uma política
de contenção das despesas do Estado. Essa contenção das despesas estatais se
direciona, especialmente, para os gastos com pessoal, buscando uma redução na
folha de pagamentos, e para as políticas sociais, o que seria altamente
prejudicial para as camadas mais populares que dependem, em grande medida,
dessas políticas. Para a doutrina neoliberal, os gastos com pessoal e com as
políticas sociais geram inflação e descontrolam as contas públicas, logo, devem
ser eliminados ou pelo menos ser drasticamente reduzidos. Portanto, podemos
inferir que:
"O diagnóstico
neoliberal considera que a inflação e o descontrole dos gastos estatais viriam
da folha salarial do Estado e de seus gastos em educação,
saúde, habitação, saneamento básico, considerados populistas. Uma parte
destes seria absorvida pelo mercado, na medida em que as pessoas dispusessem de
recursos para se associar a planos privados de saúde ou para colocar seus
filhos em escolas particulares" (Sader,
1995:189).
Com essa política de contenção de
gastos, ficam evidentes as conseqüências que ela acarretaria e que seriam
sentidas, como já foi dito, principalmente pelos setores médios e baixos da
sociedade. Além do grande desemprego que tais medidas fatalmente provocariam,
iriam ferir frontalmente a democracia social ou pelo menos tudo aquilo que foi
conquistado no Brasil, em termos de democracia social, na medida em que liquida
com substanciais conquistas sociais.
Vale ressaltar que sem um setor público
forte e sem investimentos maciços do Estado nas áreas sociais não é possível
atender às demandas sociais, o que implica numa grande ameaça aos direitos
humanos e às conquistas sociais. Além disso, tal política de contenção dos
gastos públicos ameaça também todo o conjunto de garantias e direitos
trabalhistas, já que grande parte dessas prerrogativas depende da atuação do
Estado, principalmente no que se refere à questão da Previdência Social. De
todos os trabalhadores que certamente seriam prejudicados com a contenção dos
gastos públicos, sem dúvida, os mais afetados seriam os funcionários públicos,
já que todos os benefícios e garantias que estes adquiriram dependem,
diretamente, do tesouro estatal. Eles seriam os primeiros a sentir os efeitos
da execução de tal política.
Uma análise bastante sucinta da via de
modernização e desenvolvimento que vem sendo defendida pela esquerda brasileira
mostra que esta não chega a ter um formato bem definido. Tal caminho nasce como
uma alternativa neoliberal e se contrapõe aos fundamentos do neoliberalismo.
Essa via vem sendo chamada pela própria esquerda e pelos seus principais
partidos que a compõem como a via democrático-popular ou o projeto
democrático-popular.
O caminho democrático-popular busca
contestar os alicerces do neoliberalismo e propor um projeto de modernização
antagônico àquele proposto pela corrente neoliberal. São projetos que culminam
em objetivos finais amplamente diferentes e opostos entre si. Há que se
ressaltar, como já foi lembrado em algumas passagens dessa exposição, que a
própria noção de modernização defendida pela corrente democrático-popular é
diferente daquela defendida pela corrente neoliberal, ou seja, a ênfase da
modernização, segundo o neoliberalismo, é a dimensão econômica e não mais do
que isso. E é esse aspecto que a vertente democrático-popular contesta. Para
seus defensores, e aqui se coloca a esquerda brasileira, a ênfase da
modernização deve ser a dimensão social.
Na verdade, o que ocorre é um problema
de conceituação da palavra modernização. Não se consegue entender o que venha a
ser essa tão defendida modernização segundo o neoliberalismo. O que acontece,
concretamente, é a defesa de um certo padrão que não significa,
necessariamente, que ele seja melhor, ou pelo menos, o melhor para a grande parte
da população brasileira. O que o neoliberalismo tenta fazer é obscurecer,
encobrir essas questões e mostrar que as suas propostas representam a
modernização e que tudo o que se contrapõe a ela é retrógrado, arcaico,
obsoleto. Isso significa atrelar a noção de modernização a uma dimensão
meramente econômica.
O que o ‘projeto’ democrático-popular,
que é a principal bandeira da atual esquerda brasileira, propõe é, justamente,
defender a dimensão social da modernização. Isso se realiza na defesa e
manutenção dos direitos sociais e de todo um conjunto de benefícios, garantias
e direitos trabalhistas, na manutenção e consolidação da dimensão coletiva da
cidadania e do aparato social do Estado, na consolidação e efetivação das
políticas sociais, na ratificação do papel social do Estado, enfim, na
reafirmação e dos importantes avanços e progressos, em termos de justiça
social, que se efetivaram no país até o momento, que favoreceu o aumento
significativo nos níveis de bem estar material das classes trabalhadoras e das
camadas humildes.
O projeto neoliberal, ao contrário do
democrático-popular, representa uma séria ameaça a tudo isso que foi colocado.
Pelo fato de privilegiar a dimensão econômica da modernização e de pleitear um
desenvolvimento econômico condenável, através da desregulamentação da economia.
Mas é através de seus fundamentos básicos que essa ameaça se consolida. A
execução desses fundamentos representa grande possibilidade de liquidação das
grandes conquistas sociais, da própria extinção da dimensão social da
cidadania, enfim, representa grave ameaça de destruição daquilo que foi
conquistado em termos de democracia social. Se isso se concretiza, acarretaria
um aumento assustador das desigualdades sociais a níveis alarmantes.
O projeto democrático-popular surge não
somente para se contrapor ao neoliberalismo e defender os direitos sociais e
tudo aquilo que foi conquistado no país em termos de democracia social, mas
surge também como via de modernização que busca ampliar os direitos sociais, a
obtenção de novas conquistas e de novos progressos em termos de justiça social,
a ampliação e intensificação das políticas sociais, enfim, procura construir
uma sociedade capitalista mais humana, menos desigual e menos injusta
socialmente.
O fim da bipolaridade mundial entre
capitalismo e socialismo provocou uma série de conseqüências no âmbito político
internacional. O fenômeno da crise do socialismo e da desintegração dos regimes
comunistas no Leste Europeu levou, sem dúvida nenhuma, a uma nova releitura dos
termos esquerda e direita como vimos tentando demonstrar ao longo desse artigo.
No entanto, o que ressaltamos é que essa
nova releitura não implicou na falta de sentido dos termos citados, não
significou que a dicotomia esquerda-direita tinha
desaparecido do cenário político mundial e, em especial do cenário político
brasileiro. Para que isso tivesse ocorrido, seria necessário demonstrar que os
discursos e os pensamentos políticos das várias correntes ideológicas estariam
apontando, se não para um mesmo caminho, ao menos para um caminho semelhante. E
não é isso que ocorre, hoje, no Brasil.
É claro que não se trata, no momento, de
apontar uma rota alternativa ao capitalismo, ao modo de produção capitalista,
até mesmo porque seria difícil convencer a sociedade brasileira que o ideal do
socialismo ainda pode ter sucesso. A queda dos sistemas do Leste Europeu parece
que, se não tornou impossível, pelo menos ampliou os obstáculos à realização
desse ideal, obstáculos estes que já eram grandes.
A queda desses regimes do Leste Europeu
e o solapamento da antiga URSS foi um fenômeno que alterou, radicalmente, a
forma de expressão das lutas políticas entre esquerda e direita a nível
mundial. O importante a ser considerado é que essas lutas ainda continuam se
travando politicamente, embora dentro de um novo contexto, e os ideais de
justiça social e de mercado é que estão sustentando tais lutas.
É dentro desse novo contexto, marcado
principalmente pela emergência do neoliberalismo, que o pensamento político da
esquerda brasileira está se desenvolvendo. Se não se trata, hoje, de apontar
alternativas ao sistema capitalista, se trata, na atual conjuntura, de apontar
um caminho de modernização para o sistema capitalista alternativo e diferente
daquele proposto pelo neoliberalismo. E é exatamente isso que a esquerda
brasileira, seja no âmbito de partidos políticos ou de movimentos populares,
vem tentando implementar. E é também por isso que não se pode dizer que a
dicotomia esquerda-direita desapareceu, que ela está
extinta. O que percebemos hoje é que estão sendo apresentadas vias de
modernização e de desenvolvimento para o sistema capitalista conflitantes e que
se sustentam em princípios opostos.
Se não ocorre uma convergência entre as
múltiplas forças políticas e se as vias de modernização e desenvolvimento
apresentadas não apontam para um caminho semelhante, é porque as expressões
esquerda e direita ainda continuam vigorando no cenário político brasileiro e,
também, porque os ideais de justiça social e de mercado ainda permanecem. Prova
disso é o fato da esquerda, se contrapor ao neoliberalismo, que representa uma
saída de modernização que contempla o pólo do mercado, desconsiderando
totalmente os ideais de justiça social.
O fato de ter emergido uma inovadora conjuntura sócio-política
e da dicotomia esquerda-direita passar a ser
expressar de uma nova forma e com ideais de justiça social e de mercado
ganhando novo contorno, acarretaram um processo de reformulação e revisão do
pensamento e do discurso político da esquerda nacional. A luta pelos ideais de
justiça social, que sempre orientou a atuação da esquerda brasileira, não se
expressa mais da mesma forma que se expressava antes da queda do socialismo. Na
verdade, essa luta ganhou novo formato, o que não significa que a busca de uma
sociedade mais justa e menos desigual tenha se tornado inviável. Essa busca
continua por caminhos diferentes, caminhos que foram abertos com o fim da
bipolaridade mundial, que deu lugar a um novo modo de expressão da
contraposição mercado versus justiça social, que é a base fundante
da dicotomia esquerda-direita.
Todas essas mudanças que ocorreram a
nível mundial, isto é, o surgimento de uma nova conjuntura sócio-política
e a nova moldura que ganhou a luta pela justiça social, acabaram implicando na
formação e na emergência de uma nova esquerda brasileira. Uma esquerda que se
mantém fiel aos ideais de eqüidade social, mas que adota novos percursos de
luta e projetos diferentes daqueles adotados anteriormente. O caminho que se
tem hoje para a implantação de uma sociedade mais humana e menos desigual é
bastante diferente daquele que a esquerda brasileira acreditava antes da
derrocada do comunismo.
A emergência dessa nova ordem
esquerdista é um fenômeno importantíssimo para se entender, nos dias de hoje, a
dicotomia esquerda-direita e resultou de um
complicado processo de revisitação do pensamento político da esquerda não só no
Brasil, como também em todo o mundo. O que essa revisão fez foi abrir novos
horizontes para o duelo das forças políticas revitalizando o papel dessa
esquerda que estava, de certa forma, confuso. Em realidade, o papel da esquerda
nacional é ainda mais crucial do que em qualquer outro momento da história
brasileira. Isso porque, atualmente, o mais importante não é tanto lutar para
se obter direitos e progressos em termos de justiça social ou conquistar novos
direitos, benefícios e garantias para as camadas mais baixas da sociedade (isso
faria parte de um segundo momento). O mais importante agora é defender tudo
aquilo que já foi conquistado no país, é garantir a manutenção das garantias e
dos benefícios sociais e trabalhistas já adquiridos na área social, e que estão
fortemente enfraquecidos pelo neoliberalismo.
Cabe a essa nova esquerda brasileira
procurar atuar ativamente no cenário político e social no sentido de mobilizar
a sociedade e, mormente, as camadas populares, alertando-as com relação aos
objetivos pretendidos pela política neoliberal.
Para caracterizar melhor essa nova esquerda brasileira e, com isso,
resumir um pouco de tudo o que foi exposto até agora nesse texto, gostaríamos
de abordar três aspectos que expressam a formação e a emergência dessa nova
esquerda. Esses aspectos servem também para contrapor a esquerda brasileira
antes da derrocada dos regimes comunistas e a esquerda emergente após esses
acontecimentos.
Um primeiro aspecto que chama atenção é
o fato de que o marco de referência para a atuação, o discurso e o pensamento
político das várias correntes ideológicas da miríade de segmentos sociais e
organizações partidárias é o neoliberalismo e não mais o capitalismo, como
acontecia antes de toda a derrocada dos regimes comunistas e da ex-URSS. Anteriormente, o que delimitava a divisão das
correntes políticas entre esquerda e direita era o
capitalismo. Enfim, a posição assumida por um partido ou por um grupo social
era definida de acordo com sua relação com o capitalismo e esta poderia ser
caracterizada pela luta em favor da consolidação do sistema capitalista ou
caracterizada pela luta em favor da transformação e da superação do sistema
capitalista.
Antes de passar ao segundo aspecto
destacamos um ponto importante: por mais que o termo esquerda
seja complexo, a idéia de esquerda que se tem nesse trabalho, antes da
derrocada, é de um posicionamento que lutava para implementar transformações
estruturais no sistema capitalista, transformações que culminassem na sua
superação e que permitissem a instituição de uma nova ordem social e política.
Dessa forma, esta conotação de esquerda não pode ser resumida à idéia de
reformas sociais, embora isso tenha feito parte das lutas oposicionistas no
Brasil.
O segundo aspecto que expressaria a
emergência dessa nova esquerda brasileira é a maneira como ela se coloca hoje,
no cenário político nacional. O comportamento da esquerda dentro dessa atual
conjuntura sócio-política, se
caracteriza, primeiramente, por uma postura defensiva e não ofensiva. A
necessidade fundamental é defender os direitos, benefícios e garantias
sócio-trabalhistas, que já se concretizavam e que se vêem amealhados, hoje,
pelas políticas neoliberais. Há que se sublinhar que dentro dessa nova
conjuntura toda a dimensão social da cidadania se encontra ameaçada e, dessa
forma, a esquerda tem que se esforçar para garantir a sua manutenção.
Um terceiro aspecto que caracteriza essa
nova esquerda brasileira é o fato de que a luta empenhada não se desenvolve nos
mesmos moldes que se desenvolvia antes do fim da antiga URSS e dos governos do
leste europeu. O objetivo maior de construção de uma sociedade menos desigual não
é mais pensado pela esquerda brasileira da mesma maneira que era pensado quando
a bipolaridade mundial era vigente. Na vigência da bipolaridade mundial havia
por parte da esquerda grande aproximação com os ideais comunistas e
socialistas, alguns setores e partidos de esquerda mais, outros menos. Mas, o
fato é que existia tal aproximação e, de uma forma ou de outra, os ideais de
justiça social estavam dentro daquele contexto, associados ao comunismo e ao
socialismo.
O que fica claro antes da derrocada é que
os ideais de justiça social se operacionalizaram mediante transformações
estruturais no sistema capitalista, que acabariam levando à superação.
Obviamente que setores, partidos e organizações que se diziam de esquerda no
Brasil divergiam em relação muitos pontos. Alguns defendiam transformações
processuais e de forma gradual, outros exigiam transformações radicais e
imediatas, através de um processo revolucionário independente.
Essa divisão que se efetivara na França,
ainda naquela época, já mostrava a contraposição mercado versus eqüidade social, que é o aspecto
fundamental ainda hoje, para entendermos a dicotomia esquerda-direita.
De um lado, estavam aqueles que davam ênfase no mercado, do outro estavam
aqueles que privilegiavam a justiça social. A partir dali, os
termos esquerda e direita ganhariam solidez e passariam a fazer parte do
cenário político mundial.
Já a nova esquerda
brasileira, surgida após a derrocada da URSS, se particulariza por um
relativo distanciamento em relação a esses ideais comunistas e socialistas. A
aproximação que existia antes não existe mais, o que significa que os ideais de
igualdade social não estão mais associados ao comunismo e ao socialismo, a não
ser em alguns poucos grupos de esquerda que ainda retomam esses pilares. E é
isso que peculiariza a nova esquerda brasileira.
O que se tem hoje é uma luta que não se
caracteriza mais pela necessidade de destruição do sistema capitalista e de
construção de uma nova sociedade. O ideal de justiça social não se expressa na
implementação de transformações estruturais. Esse ideal se manifesta numa
abrangente reformulação do sistema capitalista, na escolha de uma via de
modernização e desenvolvimento alternativo à via neoliberal e que seja norteada
pelo objetivo de construir uma sociedade capitalista mais humana e menos
desigual.
O que
a esquerda brasileira pretende, nessa presente conjuntura, é efetivar um amplo
processo de democratização e humanização do sistema capitalista, mas tentando
seguir por uma via de modernização contrária àquela proposta pelo
neoliberalismo. Isso significa que a nova esquerda brasileira adota uma
tendência reformista e não transformadora. Os ideais de justiça social se
efetivam, na prática, através da implementação de reformas sociais do
capitalismo. São reformas que passam pela consolidação de todo o aparato social
do Estado, pela ratificação do papel social do Estado, pela destinação de
investimentos estatais maciços nas áreas sociais, pela ampliação das políticas
sociais, fazendo-o capaz de atender as grandes demandas sociais que são
dirigidas a ele.
É necessário que tais reformas abarquem,
também, um conjunto de medidas e políticas econômicas que busquem instaurar um
desenvolvimento global, com um grande poder de abrangência, que esteja,
fundamentalmente, alicerçado e baseado em um amplo processo de distribuição de
renda no país e também, em um processo efetivo de reforma agrária. De forma que
seja um desenvolvimento que estimule e incentive, efetivamente, o crescimento
dos salários e que estimule também o aumento significativo da participação dos
salários na renda nacional, acarretando, como isso, o aumento do poder
aquisitivo dos trabalhadores.
ARENDT, Hannah. A condição humana. 9a ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1999.
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Palavras-chave:
esquerda brasileira, justiça social, capitalismo neoliberal.
* MARCEL DE ALMEIDA FREITAS. Mestre Em Psicologia
Social. Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG. Autor do livro: Meretrizes, Amazonas e Magas: um estudo dos arquétipos femininos nos mitos
da humanidade. Belo Horizonte: edição do autor, 2001; 175 p. ISBN: 1001275902. E.mail: marleoni@Yahoo.com.br