UM EXERCÍCIO COMPARATIVO DE POLÍTICA EXTERNA:FHC E LULA EM
PERSPECTIVA
1.
Considerações Preliminares
Mais de um ano
depois da inauguração do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 1º
de janeiro de 2003, parece possível traçar algumas linhas de sua política externa
numa perspectiva comparada com aquela implementada pelo anterior governo do
presidente
Pretendo
fazê-lo de modo muito breve, apenas alinhando, numa tabela simétrica, posições
de política externa e práticas diplomáticas respectivas dos dois presidentes,
sem maiores elaborações conceituais ou digressões analíticas, pelo momento.
Este exercício comparativo apresenta, deliberadamente, algumas caracterizações
estereotipadas, o que pode ser considerado como instrumental para melhor
enfatizar as diferenças entre as duas administrações. Existem, no entanto,
provas documentais ou suportes declaratórios para cada uma das caracterizações
oferecidas, que representam o resultado de um seguimento relativamente
detalhado da política externa e das relações internacionais do Brasil desde
muitos anos, tanto em função de um envolvimento direto com a área, em
decorrência de minha condição de diplomata profissional, como devido às atividades
acadêmicas por mim desenvolvidas desde sempre.
Um dos
exemplos preliminares desse tipo de exercício foi conduzido no ensaio “A relação do Brasil com os EUA: de
FHC-Clinton a Lula-Bush”, preparado para o livro Reformas no Brasil: Balanço e Agenda, organizado por André Urani,
Fabio Giambiagi e
O
presente exercício comparativo também dá seqüência a esforços similares ou
preliminares de reconstrução histórica, baseados num seguimento tanto quanto
possível próximo das posições e declarações do Partido dos Trabalhadores em
matéria de política internacional e de relações exteriores do Brasil, seja em
seus documentos fundacionais, seja por ocasião de campanhas presidenciais, que
costumam revelar de modo mais claro o pensamento dos dirigentes em questões
internacionais. Um primeiro levantamento desse tipo foi feito no artigo “A
política internacional do Partido dos Trabalhadores: da fundação do partido à
diplomacia do governo Lula”, publicado na revista Sociologia e Política (Curitiba: UFPR; ISSN: 0104-4478; nº. 20,
junho de 2003, p. 87-102; ver em: http://www.scielo.br/rsocp ou www.pralmeida.org/docs/1009PolExtPT.pdf).
Uma versão atualizada e ampliada foi oferecida no ensaio “La politique
internationale du Parti des Travailleurs: de la fondation du parti à la
diplomatie du gouvernement Lula”, in
Denis Rolland (org.), Le Brésil de Lula,
un an après (Paris: L’Harmattan, 2004; disponível em francês em meu site: www.pralmeida.org/docs/1193PRADiplomatiePT.pdf).
A tabela
comparativa que se apresenta a seguir, sem maiores pretensões quanto a seu
rigor analítico ou caráter exaustivo, foi construída em torno de algumas
grandes áreas de interesse para a diplomacia brasileira. Estas áreas são as
seguintes: multilateralismo e Conselho de Segurança das Nações Unidas; OMC,
negociações comerciais multilaterais e cooperação Sul-Sul; terrorismo;
globalização e capitais voláteis; FMI e política de condicionalidades; Brasil
como líder; América do Sul; Mercosul; Argentina; Europa; relação com os Estados
Unidos; ALCA, ademais de dois últimos tópicos funcionais sobre os instrumentos
diplomáticos e as características gerais das duas políticas externas.
Poderei, eventualmente,
ampliar e tornar mais rigoroso, tanto metodologicamente quanto
substantivamente, o presente exercício, que procurou evitar, tanto quanto
possível, julgamentos de valor ou apreciações qualitativas sobre os impactos
internos e externos das duas diplomacias, aqui sumariamente caracterizadas. Uma
análise desse tipo exigiria, porém, um certo recuo histórico e uma investigação
mais acurada sobre o significado e as conseqüências de determinadas iniciativas
de política externa tomadas por cada um dos presidentes, em suas administrações
respectivas. Pelo menos no que se refere ao governo Lula, parece ser ainda
muito cedo para oferecer uma avaliação desse tipo.
2.
Comparando Duas Diplomacias: FHC e Lula
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(1995-2002) |
Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2004) |
Multilateralismo e Conselho de
Segurança das Nações Unidas |
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Multilateralismo
moderado; ênfase
no direito internacional mas aceitação tácita dos “mais iguais”; relações com
outras potências médias; candidato
não-insistente a uma cadeira permanente no CSNU. |
Forte
multilateralismo; soberania e igualdade de todos os países; alianças
com outras potências médias e economias emergentes; grande prioridade na conquista
de uma cadeira permanente no CSNU. |
OMC, negociações comerciais multilaterais e
cooperação Sul-Sul
|
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Participação
plena, ativismo moderado; interdependência econômica e abertura ao
investimento direto estrangeiro; diálogo mas sem real coordenação
com os países do Sul. |
Participação plena, forte
ativismo; soberania econômica nacional e
políticas setoriais de desenvolvimento; alianças estratégicas (G-20; G3,
com África do Sul e Índia). |
Terrorismo |
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“É
preciso reagir com determinação ao terrorismo, mas ao mesmo tempo enfrentar,
com igual vigor, as causas profundas e imediatas de conflito, de
instabilidade, de desigualdade. (…) A barbárie não é somente a covardia do
terrorismo, mas também a intolerância ou a imposição de políticas unilaterais
em escala planetária.” (30/10/2001) “A Carta das Nações Unidas reconhece aos Estados membros o
direito de agir em autodefesa. Isto não está em discussão. Mas é importante
termos consciência de que o êxito na luta contra o terrorismo não pode
depender apenas da eficácia das ações de autodefesa ou do uso da força
militar de cada país. (…) Mas o terrorismo não pode silenciar a agenda da
cooperação e das outras questões de interesse global.” (9/11/2001) |
“Não será
militarmente que vamos acabar com o terrorismo, nem tampouco com o
narcotráfico. Vamos enfrentar isso com muito mais densidade na hora em que a
gente atacar o problema crucial que é a pobreza no mundo.” (10/7/2003) “Existe, hoje,
louvável disposição de adotar formas mais efetivas de combate ao terrorismo,
às armas de destruição em massa, ao crime organizado. (…) Não podemos confiar
mais na ação militar do que nas instituições que criamos com a visão da
História e a luz da Razão. (…) O verdadeiro caminho da paz é o combate sem
tréguas à fome e à miséria, numa formidável campanha de solidariedade capaz
de unir o planeta ao invés de aprofundar as divisões e o ódio que conflagram
os povos e semeiam o terror.” (23/09/2003) |
Globalização e capitais voláteis
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No
começo, um novo “Renascimento”; sim
a Davos, relações cordiais; sequer cogitado para ir a Porto Alegre; depois,
limitações, devido às assimetrias e a volatilidade dos capitais; aceitação
implícita do Consenso de Washington e suas premissas; sustentabilidade
econômica. |
No começo, “um novo mundo é possível”;
sim enfático a Porto Alegre, um sonoro NÃO a Davos; depois, buscando um diálogo
realista com os dois mundos; recusa explícita do Consenso de
Washington (consenso de Buenos Aires);
preferência pela
sustentabilidade social. |
FMI e condicionalidades
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Abordagem não-ideológica; relações cooperativas durante as
turbulências financeiras (três pacotes de apoio preventivo: 1998, 2001 e
2002); aceitação, enquanto for
necessário. |
PT opôs-se a qualquer acordo, no
começo; depois, aceitação relutante e
desconfiança silenciosa (novo acordo em 2003); tolerar, apenas e tão somente
enquanto for absolutamente indispensável. |
Brasil como líder
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Visto como resultado da
preeminência econômica e limitado à região; modulação em função das
percepções dos parceiros regionais (Argentina); consciência dos limites
estratégicos e das capacidades econômicas do Brasil; cooperação com a África. |
Um dos grandes objetivos
políticos, não limitado apenas à região; pode ser conquistado com o
ativismo diplomático e as alianças estratégicas; não existem limitações aparentes
em função de fatores “reais”; solidariedade com a África. |
América do Sul
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Relações estratégicas, ênfase
retórica, mas poucas iniciativas reais durante o primeiro mandato
(1995-1998); acordo comercial Mercosul-CAN
bloqueado; conceito de Alcsa esquecido; Encontro de Brasília dos chefes
de Estado no segundo mandato (setembro 2000); integração física (IIRSA-BID). |
Relações estratégicas,
iniciativas políticas para traduzir a retórica em realidade; Viagens a, e visitas bilaterais
de todos os países da região (menos Uruguai); retomada das negociações
regionais de comércio: acordo CAN-Mercosul, mas dificuldades para a área de
livre comércio; integração física (bilateral,
BNDES). |
Mercosul
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Uma das mais importantes
prioridades da diplomacia brasileira; base possível para a integração
econômica com o mundo e para o fortalecimento das relações econômicas na
região; temas econômicos e comerciais
têm prioridade sobre os demais. |
A prioridade mais importante da diplomacia brasileira; importância estratégica e uma
base para a união política da América do Sul, livre de influências externas e
de limitações hegemônicas (fortaleza); o social e o político têm a
precedência. |
Argentina
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Um parceiro estratégico; coordenação política e econômica
dentro de certos limites; pressupostos e posições
cautelosas sobre a moeda única do Mercosul; Mercosul intergovernamental. |
O parceiro estratégico; consultas freqüentes sobre os
mais diversos assuntos, buscando posições comuns (na ALCA, por exemplo); meta reafirmada da moeda comum e
de uma união política no Mercosul. |
Europa
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Laços históricos, o mais
importante parceiro, mas postura realista sobre a abertura comercial; não considerada como alavanca
estratégica nas relações com os EUA. |
Parceiro importante e papel
compensatório nas alianças estratégicas contra o unilateralismo (EUA); acordo comercial Mercosul-UE
visto como mais benéfico do que a ALCA. |
Relação com os Estados Unidos |
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Definida como essencial,
cooperativa; desacordos setoriais, a maior
parte limitada a questões de comércio; ênfase política na cooperação
bilateral; reciprocidade moderada. |
Importante, mas não considerada
essencial; várias áreas de desacordos,
tanto políticos quanto econômicos; ênfase política na
multipolaridade; reciprocidade estrita. |
ALCA
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Sem muito entusiasmo a respeito,
mas sem oposição real ao projeto; ALCA poderia ser uma
oportunidade concreta para a modernização da economia; barganha realista sobre os
protecionismos setoriais dos EUA (subsídios agrícolas) e aceitação limitada
dos novos temas (regras e acesso). |
PT se opunha, no começo; Lula candidato falou de
“anexação”; aceitação relutante, uma vez no
poder, e dura barganha na mesa de negociação; pedidos de compensações para
corrigir assimetrias estruturais; acordo limitado nas regras, na
ausência de um real acesso a mercados (setor agrícola). |
Instrumentos diplomáticos |
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Itamaraty como foco principal; diplomacia presidencial
explícita; prioridades econômicas antes de tudo; aceitar o mundo como ele é; talvez uma Tobin tax para
diminuir a volatilidade e promover a cooperação; diálogo com o G-7 e uma
abordagem da |
Itamaraty e assessores
presidenciais; diplomacia presidencial
implícita; prioridades políticas em
primeiro lugar; mudar o mundo (Fome Zero
Mundial); sim à Tobin tax e outros
instrumentos distributivos para lutar contra as injustiças; diálogo com o G-8, coordenação com o G-15 e
promoção de alianças estratégicas; |
Características gerais
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Integração ao mundo globalizado; desejo de uma
“globalização com face humana”; abordagem tradicional da diplomacia; diplomacia tem um papel acessório no
desenvolvimento; diálogo com outros líderes mundiais, buscando um
melhor ambiente cooperativo para o desenvolvimento. |
Participação num mundo
globalizado com preservação da soberania nacional; política externa criativa (“ativa e altiva”); diplomacia tem um papel substantivo na conformação do “projeto
nacional”; liderança regional e
internacional para mudar substantivamente e trazer justiça ao mundo (“nova
geografia comercial”). |
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O autor é Diplomata, Professor e Doutor em Ciências Sociais. pralmeida@mac.com;
www.pralmeida.org