UM EXERCÍCIO COMPARATIVO DE POLÍTICA EXTERNA:FHC E LULA EM PERSPECTIVA

 

 

Paulo Roberto de Almeida *

 

 

1. Considerações Preliminares

 

Mais de um ano depois da inauguração do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro de 2003, parece possível traçar algumas linhas de sua política externa numa perspectiva comparada com aquela implementada pelo anterior governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

Pretendo fazê-lo de modo muito breve, apenas alinhando, numa tabela simétrica, posições de política externa e práticas diplomáticas respectivas dos dois presidentes, sem maiores elaborações conceituais ou digressões analíticas, pelo momento. Este exercício comparativo apresenta, deliberadamente, algumas caracterizações estereotipadas, o que pode ser considerado como instrumental para melhor enfatizar as diferenças entre as duas administrações. Existem, no entanto, provas documentais ou suportes declaratórios para cada uma das caracterizações oferecidas, que representam o resultado de um seguimento relativamente detalhado da política externa e das relações internacionais do Brasil desde muitos anos, tanto em função de um envolvimento direto com a área, em decorrência de minha condição de diplomata profissional, como devido às atividades acadêmicas por mim desenvolvidas desde sempre.

Um dos exemplos preliminares desse tipo de exercício foi conduzido no ensaio “A relação do Brasil com os EUA: de FHC-Clinton a Lula-Bush”, preparado para o livro Reformas no Brasil: Balanço e Agenda, organizado por André Urani, Fabio Giambiagi e José Guilherme Reis (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004). A origem mais imediata da tabela comparativa foi, entretanto, um convite da Florida International University para participar, em 4 de março de 2004, do seminário “Brazil: Between Regionalism and Globalism: Old Ambitions, New Results?”, organizado pelo Summit of the Americas Center, daquela universidade, e pelo Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, do qual fui diretor executivo no período 1996-1999. Uma parte de minha participação nesse seminário encontra-se disponível, em inglês, no seguinte link de meu site pessoal: http://www.pralmeida.org/docs/1213bTwoForeignPol.htm.

O presente exercício comparativo também dá seqüência a esforços similares ou preliminares de reconstrução histórica, baseados num seguimento tanto quanto possível próximo das posições e declarações do Partido dos Trabalhadores em matéria de política internacional e de relações exteriores do Brasil, seja em seus documentos fundacionais, seja por ocasião de campanhas presidenciais, que costumam revelar de modo mais claro o pensamento dos dirigentes em questões internacionais. Um primeiro levantamento desse tipo foi feito no artigo “A política internacional do Partido dos Trabalhadores: da fundação do partido à diplomacia do governo Lula”, publicado na revista Sociologia e Política (Curitiba: UFPR; ISSN: 0104-4478; nº. 20, junho de 2003, p. 87-102; ver em: http://www.scielo.br/rsocp ou www.pralmeida.org/docs/1009PolExtPT.pdf). Uma versão atualizada e ampliada foi oferecida no ensaio “La politique internationale du Parti des Travailleurs: de la fondation du parti à la diplomatie du gouvernement Lula”, in Denis Rolland (org.), Le Brésil de Lula, un an après (Paris: L’Harmattan, 2004; disponível em francês em meu site: www.pralmeida.org/docs/1193PRADiplomatiePT.pdf).

A tabela comparativa que se apresenta a seguir, sem maiores pretensões quanto a seu rigor analítico ou caráter exaustivo, foi construída em torno de algumas grandes áreas de interesse para a diplomacia brasileira. Estas áreas são as seguintes: multilateralismo e Conselho de Segurança das Nações Unidas; OMC, negociações comerciais multilaterais e cooperação Sul-Sul; terrorismo; globalização e capitais voláteis; FMI e política de condicionalidades; Brasil como líder; América do Sul; Mercosul; Argentina; Europa; relação com os Estados Unidos; ALCA, ademais de dois últimos tópicos funcionais sobre os instrumentos diplomáticos e as características gerais das duas políticas externas.

Poderei, eventualmente, ampliar e tornar mais rigoroso, tanto metodologicamente quanto substantivamente, o presente exercício, que procurou evitar, tanto quanto possível, julgamentos de valor ou apreciações qualitativas sobre os impactos internos e externos das duas diplomacias, aqui sumariamente caracterizadas. Uma análise desse tipo exigiria, porém, um certo recuo histórico e uma investigação mais acurada sobre o significado e as conseqüências de determinadas iniciativas de política externa tomadas por cada um dos presidentes, em suas administrações respectivas. Pelo menos no que se refere ao governo Lula, parece ser ainda muito cedo para oferecer uma avaliação desse tipo.

 

2. Comparando Duas Diplomacias: FHC e Lula

 

 

Fernando Henrique Cardoso

(1995-2002)

Luiz Inácio Lula da Silva

(2003-2004)

Multilateralismo e Conselho de Segurança das Nações Unidas

Multilateralismo moderado;

ênfase no direito internacional mas aceitação tácita dos “mais iguais”; relações com outras potências médias;

candidato não-insistente a uma cadeira permanente no CSNU.

Forte multilateralismo; soberania e igualdade de todos os países;

alianças com outras potências médias e economias emergentes;

grande prioridade na conquista de uma cadeira permanente no CSNU.

OMC, negociações comerciais multilaterais e cooperação Sul-Sul

Participação plena, ativismo moderado; interdependência econômica e abertura ao investimento direto estrangeiro;

diálogo mas sem real coordenação com os países do Sul.

Participação plena, forte ativismo;

soberania econômica nacional e políticas setoriais de desenvolvimento;

alianças estratégicas (G-20; G3, com África do Sul e Índia).

Terrorismo

“É preciso reagir com determinação ao terrorismo, mas ao mesmo tempo enfrentar, com igual vigor, as causas profundas e imediatas de conflito, de instabilidade, de desigualdade. (…) A barbárie não é somente a covardia do terrorismo, mas também a intolerância ou a imposição de políticas unilaterais em escala planetária.” (30/10/2001)

“A Carta das Nações Unidas reconhece aos Estados membros o direito de agir em autodefesa. Isto não está em discussão. Mas é importante termos consciência de que o êxito na luta contra o terrorismo não pode depender apenas da eficácia das ações de autodefesa ou do uso da força militar de cada país. (…) Mas o terrorismo não pode silenciar a agenda da cooperação e das outras questões de interesse global.” (9/11/2001)

“Não será militarmente que vamos acabar com o terrorismo, nem tampouco com o narcotráfico. Vamos enfrentar isso com muito mais densidade na hora em que a gente atacar o problema crucial que é a pobreza no mundo.” (10/7/2003)

“Existe, hoje, louvável disposição de adotar formas mais efetivas de combate ao terrorismo, às armas de destruição em massa, ao crime organizado. (…) Não podemos confiar mais na ação militar do que nas instituições que criamos com a visão da História e a luz da Razão. (…) O verdadeiro caminho da paz é o combate sem tréguas à fome e à miséria, numa formidável campanha de solidariedade capaz de unir o planeta ao invés de aprofundar as divisões e o ódio que conflagram os povos e semeiam o terror.” (23/09/2003)

Globalização e capitais voláteis

No começo, um novo “Renascimento”;

sim a Davos, relações cordiais; sequer cogitado para ir a Porto Alegre; depois, limitações, devido às assimetrias e a volatilidade dos capitais; aceitação implícita do Consenso de Washington e suas premissas; sustentabilidade econômica.

No começo, “um novo mundo é possível”; sim enfático a Porto Alegre, um sonoro NÃO a Davos;

depois, buscando um diálogo realista com os dois mundos;

recusa explícita do Consenso de Washington (consenso de Buenos Aires);  

preferência pela sustentabilidade social.

FMI e condicionalidades

Abordagem não-ideológica;

relações cooperativas durante as turbulências financeiras (três pacotes de apoio preventivo: 1998, 2001 e 2002);

aceitação, enquanto for necessário.

PT opôs-se a qualquer acordo, no começo;

depois, aceitação relutante e desconfiança silenciosa (novo acordo em 2003);

tolerar, apenas e tão somente enquanto for absolutamente indispensável.

Brasil como líder

Visto como resultado da preeminência econômica e limitado à região;

modulação em função das percepções dos parceiros regionais (Argentina);

consciência dos limites estratégicos e das capacidades econômicas do Brasil;

cooperação com a África.

Um dos grandes objetivos políticos, não limitado apenas à região;

pode ser conquistado com o ativismo diplomático e as alianças estratégicas;

não existem limitações aparentes em função de fatores “reais”;

solidariedade com a África.

América do Sul

Relações estratégicas, ênfase retórica, mas poucas iniciativas reais durante o primeiro mandato (1995-1998);

acordo comercial Mercosul-CAN bloqueado; conceito de Alcsa esquecido;

Encontro de Brasília dos chefes de Estado no segundo mandato (setembro 2000);

integração física (IIRSA-BID).

Relações estratégicas, iniciativas políticas para traduzir a retórica em realidade;

Viagens a, e visitas bilaterais de todos os países da região (menos Uruguai);

retomada das negociações regionais de comércio: acordo CAN-Mercosul, mas dificuldades para a área de livre comércio;

integração física (bilateral, BNDES).

Mercosul

Uma das mais importantes prioridades da diplomacia brasileira;

base possível para a integração econômica com o mundo e para o fortalecimento das relações econômicas na região;

temas econômicos e comerciais têm prioridade sobre os demais.

A prioridade mais importante da diplomacia brasileira;

importância estratégica e uma base para a união política da América do Sul, livre de influências externas e de limitações hegemônicas (fortaleza);

o social e o político têm a precedência.

Argentina

Um parceiro estratégico;

coordenação política e econômica dentro de certos limites;

pressupostos e posições cautelosas sobre a moeda única do Mercosul;

Mercosul intergovernamental.

O parceiro estratégico;

consultas freqüentes sobre os mais diversos assuntos, buscando posições comuns (na ALCA, por exemplo);

meta reafirmada da moeda comum e de uma união política no Mercosul.

Europa

Laços históricos, o mais importante parceiro, mas postura realista sobre a abertura comercial;

não considerada como alavanca estratégica nas relações com os EUA.

Parceiro importante e papel compensatório nas alianças estratégicas contra o unilateralismo (EUA);

acordo comercial Mercosul-UE visto como mais benéfico do que a ALCA.

Relação com os Estados Unidos

Definida como essencial, cooperativa;

desacordos setoriais, a maior parte limitada a questões de comércio;

ênfase política na cooperação bilateral;

reciprocidade moderada.

Importante, mas não considerada essencial;

várias áreas de desacordos, tanto políticos quanto econômicos;

ênfase política na multipolaridade;

reciprocidade estrita.

ALCA

Sem muito entusiasmo a respeito, mas sem oposição real ao projeto;

ALCA poderia ser uma oportunidade concreta para a modernização da economia;

barganha realista sobre os protecionismos setoriais dos EUA (subsídios agrícolas) e aceitação limitada dos novos temas (regras e acesso).

PT se opunha, no começo;

Lula candidato falou de “anexação”;

aceitação relutante, uma vez no poder, e dura barganha na mesa de negociação;

pedidos de compensações para corrigir assimetrias estruturais;

acordo limitado nas regras, na ausência de um real acesso a mercados (setor agrícola).

Instrumentos diplomáticos

Itamaraty como foco principal;

diplomacia presidencial explícita;

 prioridades econômicas antes de tudo;

aceitar o mundo como ele é;

talvez uma Tobin tax para diminuir a volatilidade e promover a cooperação;

diálogo com o G-7 e uma abordagem da agenda internacional do tipo da OCDE.

Itamaraty e assessores presidenciais;

diplomacia presidencial implícita;

prioridades políticas em primeiro lugar;

mudar o mundo (Fome Zero Mundial);

sim à Tobin tax e outros instrumentos distributivos para lutar contra as injustiças;

 diálogo com o G-8, coordenação com o G-15 e promoção de alianças estratégicas;

Características gerais

Integração ao mundo globalizado; desejo de uma “globalização com face humana”;

abordagem tradicional da diplomacia;

diplomacia tem um papel acessório no desenvolvimento;

diálogo com outros líderes mundiais, buscando um melhor ambiente cooperativo para o desenvolvimento.

Participação num mundo globalizado com preservação da soberania nacional;

política externa criativa (“ativa e altiva”);

diplomacia tem um papel substantivo na conformação do “projeto nacional”;

liderança regional e internacional para mudar substantivamente e trazer justiça ao mundo (“nova geografia comercial”).

 

(Brasília, 1227: 14.03.04) 


* O autor é Diplomata, Professor e Doutor em Ciências  Sociais.  pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org

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