SOBRE A SUPERAÇÃO DA CRISE DA ÉTICA CONTEMPORÂNEA

                                                                                             

                                                                                          

Alexandre Marques Cabral*

 

 

1.                Não é preciso estar situado no mundo acadêmico para que se compreenda ou apreenda o fenômeno contemporâneo da crise dos paradigmas éticos na e da cultura ocidental.  Todos nós já nos movemos sempre nesta crise.  Por isso, por todo lado, a toda a hora e de múltiplas formas diz-se que vigora, na cultura hoje vigente, uma crise dos valores outrora instituídos como norte do agir humano; vige a cultura da anti – cultura  – isto é, chegamos ao ponto máximo da mentalidade criticista  - iconoclasta”, que a nada se submete e que tudo destrói, demole e abala, sem que nenhum valor novo, nenhuma norma nova nasça como norte para a cultura ocidental; pelo contrário, a nossa cultura é justamente uma anti – cultura, isto é, uma dinamite que deve explodir toda e qualquer possibilidade de organização dos múltiplos setores ou matizes da sociedade – ou até vigora, como valor, o que já fora anti – valor  – por isso, a hipervalorização da atividade sexual humana assume, hoje, o caráter de valor, quando já fora um anti – valor, algo a ser superado ou suprimido, como na moral clássica cristã.  Neste sentido, o fenômeno da crise ou dissolução dos valores aparece como um “câncer” que corrói, avassala e deteriora toda possível ordem ou estruturação da cultura.  Agora, é a lógica do caos, isto é, a ordem da desordem que, a todo instante, permeia mais e mais a existência, a vida dos homens e dos povos ocidentais.  Mas, aqui surge uma questão: será que, como rezam as ciências da história e geografia, o termo ocidente refere-se a uma região do globo terrestre do planeta Terra, que, devido a isto, se opõe ao oriente, que, assim, seria uma outra zona ou região planetária, onde possivelmente vigora um outro tipo de paradigma cultural, que não está afetado pela lógica do caos axiológico – ético – moral?  Certamente que não.  Por ocidente entende-se não um lugar geográfico, mas um modo singular de ser do homem e de toda uma cultura que lida com a totalidade do real na sua multiplicidade ou diversidade de matizes de forma racional.  Neste sentido, lembrando a máxima de Hegel, pode-se dizer que somente no ocidente todo o real é racional.  Isto não significa que o que se entende por oriente ou por qualquer outro tipo de cultura que não a ocidental não possua pessoas que tenham ou utilizem a razão.  Isto seria um absurdo!  O que se deve dizer é que o ocidente é o lugar onde a razão é o “carro – chefe” ou o “coração”, isto é, o que irriga ou vitaliza todo desenvolvimento da cultura, todos possíveis modos de ser do homem e da sociedade.  Aprofundemo-nos um pouco mais nisso.

       Foi o pensador Friedrich Nietzsche que, de forma magistral, viu que, desde Sócrates /Platão [1], a cultura ocidental tornou-se LOGOCÊNTRICA.  Desde então, tudo e todos para que sejam como são, devem aparecer medidos ou sob a custódia disso que é a razão.  Este é o motivo por que, após Sócrates / Platão, o mundo passou a ver (e ainda vê!) o espetáculo da inquisição racionalista de todos os setores da vida ou do real.  Desde o momento em que tudo que é, para ser, precisou passar pelo crivo ou pelo tribunal da razão, a máxima de Hegel – todo real é racional – passou a valer como credo ou dogma indiscutível na história do ocidente; por isso, é digno de nota, é desde a gênese do raciocentrismo que, pode-se dizer, o ocidente ganhou vida e força.  Justamente porque em português, francês, espanhol, dentre outras línguas latinas, o termo razão advém da palavra latina ratio, cujo significado é medida, o raciocentrismo se caracteriza pelo modo de medição do real única e exclusivamente através da luz da razão, que, aqui, representa uma faculdade própria do homem que tem como característica a capacidade de inteligir e formular conceitos, desde suas relações com os entes que compõem o real.  Após a gênese desta forma de instauração da relação homem – real, lembrando Nietzsche [2], não somente o real passou a ser aquilo que diz a razão, como a razão passou a corrigir, isto é, modificar e aperfeiçoar o real, se ele não corresponde ao que deve ser.  A conseqüência disso é que a razão também passou a dizer e determinar todas as transformações necessárias no real para que ele se identifique com o teor e textura daquilo que ela diz que ele deve ser para ser plenamente ele mesmo.  Não se deve, então, estranhar a crença  (ou mesmo superstição) ilimitada do iluminismo, já embrionariamente presente no humanismo renascentista, no progresso do homem e do mundo, a partir do desenvolvimento progressivo e constante das ciências, que são sintomas e símbolos do raciocentrismo ocidental. 

              Mas, o que isto tem a ver, de fato, com a crise ético / axiológica do ocidente?  Tudo. A crise da ética ocidental ou na relação entre ética e ocidente é realmente crise porque é o próprio ocidente que, como já foi dito, enquanto modo de ser de uma cultura raciocêntrica, está em crise.  Por isso, deve-se dizer que a crise da ética é sintoma da crise na crença da razão.  Isto porque, como percebeu Martin Heidegger [3], a ética, junto com a física e a lógica, é tão – somente um capítulo da filosofia – que refere-se a um dos vários setores do real, estudado outrora tão – somente pela filosofia e hoje por uma diversidade de saberes (psicologia, sociologia, antropologia, etc) – que surgiu quando, após Platão, a razão surgiu como guia ou agente norteador da vida ocidental.  Antes de Platão, então, não existia ética, ou seja, antes de Platão não se necessitava de uma ordenação “dogmática” racional que conduzisse as relações entre os homens a partir do pré – estabelecimento de um conceito de bem e, concomitantemente, de dever.  Ou melhor: antes de Platão, o agir humano não precisava ser exaustivamente explicitado através de conceitos e, também, corrigido segundo uma ontologia ou metafísica prévia que indicasse os critérios necessários para correção e modelação do agir humano.  Entrando em crise o pressuposto de toda a ética ocidental – a Razão –, todo edifício ético no ocidente desmoronou.

              Isto explica por que, após Platão, o ocidente, durante os últimos 25 séculos, vem tentando dizer e formular os fundamentos do agir do homem e, conseqüentemente, formular doutrinas que sirvam de “cartilhas” ou “catecismos” para o homem conduzir-se na totalidade das experiências de sua existência.  Evidencia-se isto na República de Platão, na moral epicurista, no pensamento místico plotiniano, na moral cristã medieval, na deontologia kantiana, de certa forma na moral dos marxistas, etc.  Nestas éticas, todo agir humano deve coordenar-se por parâmetros pré – estabelecidos pelos conceitos subjacentes às suas respectivas filosofias e/ou doutrinas.  É por isso que todas estas éticas permitem pré – ver todas as possíveis ações em relação a uma diversidade de situações, sem que estas nem mesmo estejam ocorrendo ou possam vir a ocorrer de fato.  Disso resulta que para tais doutrinas éticas não há imprevisto, pois não há nada que não possa ser enquadrado nos moldes racionais ou conceituais que as sustentam, que as dão base, suporte.  Caso apareça um caso ou uma situação que fuja à cartilha destas éticas, surge a necessidade da deformação de tal realidade “a – morfa, para que ela tome a forma dos conceitos e preceitos inerentes ao sistema ético em questão.

            A questão é que, hoje, como já foi dito, nada mais disso vigora.  Não há mais crença no “deus razão”. Como um ícone ou ídolo religioso nas mãos de um iconoclasta, o fideísmo ou crença desenfreada na razão foi quebrado e, com tal quebra, quebrou-se também a crença nas éticas até então vigentes.  É isto que explica o porquê, hoje, mais do que nunca, do surgimento de uma multiplicidade de livros, artigos, congressos e encontros que versam exclusivamente sobre ética e, às vezes, sobre propostas de reformulação ou mesmo criação de um novo paradigma ético.  Por isso, vê-se por toda a parte e a todo instante o surgimento de vários tipos de ética: ética da libertação, ética da vida, ética da alteridade, ética dialógica, assim como vários movimentos que tentam viabilizar a implementação de suportes éticos nos mais diversos setores da cultura: ética na política, ética na escola, ética na advocacia, ética nas empresas, bioética etc.  A pulverização de todos estes movimentos que reivindicam um novo pensamento ético ou a implementação da ética ou de uma nova ética nos múltiplos setores da cultura parece contradizer a afirmação da falência  ou derrocada da presença da razão na cultura ocidental, pois todos estes movimentos acontecem a partir do vigor disto que é a racionalidade, isto é, todos estes movimentos são frutos do clamor e da presença da racionalidade no seio da cultura ocidental.  Mas isto é falso! A pluralidade de movimentos que gritam por uma nova ética e pela sua inserção em toda extensão ou amplitude da cultura mostra justamente a falta, a escassez de uma racionalidade homogênea no ocidente.  O afã, a luta desenfreada pela busca de um re – vigoramento da racionalidade como fonte de todo e qualquer pensamento ético, hoje, de forma alguma é sintoma de um imperialismo da razão, mas, sim, de sua decadência.

                Em todos estes 25 séculos de história do ocidente toda ruptura, com um certo modelo de racionalidade, se apresentava como abertura para uma nova forma de vigoramento da razão.  Assim podemos enxergar a crise da racionalidade grega, por exemplo, e o nascimento da racionalidade medieval – cristã.  No caso do presente momento da história ocidental, não há nenhum novo modo de sintomatização da racionalidade em vista.  É como se todos os movimentos em prol de uma nova ética fossem máscaras que escondessem a nostalgia que o ocidente tem de um tipo de racionalidade que de forma alguma é possível, hoje, nortear seu destino.  O ocidente vive sob o vigor de uma vontade de voltar ao passado, sem que encontre no hoje uma saída à altura da crise em que  está inserido.

            O objetivo deste trabalho é o de justamente propor uma via para que a questão da ética possa ser pensada segundo as exigências do presente instante da história ocidental, ou seja, propômo – nos, aqui, através de uma abordagem filosófica, apresentar um novo horizonte do real, onde a ética possa ser pensada liberta do jugo da razão, mas fundamentada num solo ontológico, que de forma alguma dê margem a algum tipo de relativismo ético – axiológico.

 

2.            Devemos aprofundar-nos na compreensão da crise em que estamos inseridos e da qual devemos apresentar um solo ontológico que possibilite a aparição de um novo tipo de ética, que rompa com a ditadura da razão – geradora de modelos totalitários para o agir humano - , ao mesmo tempo que não possibilite o aparecimento de uma nova forma de relativismo moral.  Para isso, escolhemos uma passagem de Nietzsche, que aponta-nos um caminho para evidenciação da crise em que nos movemos.  Trata-se do famoso aforismo 125 da obra A Gaia Ciência, que anuncia a tão badalada “morte de Deus”.  Reduzidamente, ei-lo:

“Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente:Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada.  Então ele está perdido?  Pergunto um deles.  Ele se perdeu como uma criança?  Disse o outro.  Está se escondendo? (...) O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar.  Para onde foi Deus? “, gritou ele, “já lhes direi!  Nós o matamos – vocês e eu.  Somos todos seus assassinos!  Mas como fizemos isso?  Como conseguimos beber inteiramente o mar?  Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte?  Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol?  Para onde se move ela agora?  Para onde nos movemos?  Para longe de todos os sóis?  Não caímos continuamente?(...)[4]

 

         Que se entende dessa passagem nietzschiana?  Certamente, nada que se refira a     algum tipo de apologia ao ateísmo, como alguns teólogos entenderam.  Não se trata de uma prova racional, através de uma cadeia lógica de concatenação de conceitos, sobre isto que é a morte de Deus.  É a exposição de uma evidência, que permeia uma certa época e uma certa cultura.  Trata-se do nefasto paradeiro da cultura ocidental no século XIX, que perdura até hoje.  É esta a época que mais se evidencia a crise e derrocada do paradigma racional medieval, ao mesmo tempo que se instaura seu substituto: a racionalidade científica, que, desde o falecimento da escolástica, é o principal sintoma da emergência do eu, ou melhor, da subjetividade na cultura ocidental, enquanto fonte de toda e qualquer norma na e para a cultura ocidental.  No movimento de ascensão da racionalidade moderna/científica e, simultaneamente, de esfacelamento da racionalidade medieval, irrompeu no ocidente a chamada “morte de Deus”.  Primeiramente, este fenômeno fala da desestruturação ou morte do fundamento ou horizonte organizador de toda cultura ocidental, que vigorou até o surgimento e desenvolvimento do cientificismo moderno.  Melhor dizendo: a morte de Deus é a morte da totalidade dos valores inter – relacionados que estruturaram toda cultura ocidental, por exemplo, a moral cristã, a metafísica medieval, o sistema político e econômico que norteou o ocidente até a gênese do liberalismo político – econômico etc.  Por isso Nietzsche usa as metáforas do SOL, do MAR, do HORIZONTE.  Estas indicam o antigo suporte de toda cultura ocidental, suporte este que norteou mais de mil anos o ocidente, e que, com a aparição da ciência, acabou se esfacelando.

       Mas o substituto da racionalidade medieval, diferentemente do que até então ocorreu na história, não conseguiu conduzir com segurança o homem ocidental.  A ciência, casando-se com a burguesia, classe social em ascensão desde o fim da idade média, passa a sustentar, mesmo sem saber, uma nova lógica no seio da cultura.  Agora, com a conexão ciência – capitalismo, passa a imperar a lógica do lucro, da produção e da funcionalidade.  Tudo passa a ser produto ou matéria para tornar-se produto, ou então uma peça que possibilita ou não o bom andamento do sistema de produção, mantenedor do ideal do lucro.  Disto resulta que tudo e todos passam a ser meios ordenados à única finalidade possível: o acúmulo de capital.  É desde esta  ótica que o outro passa a ser uma peça, um meio, uma coisa que pode ser descartada, caso não desempenhe sua função (funcionalismo).  Também é desde esta ótica que os outros seres que não humanos são enxergados como coisas à disposição, a serviço da lógica da produtividade, que, por sua vez, é escrava da lógica do lucro.  Agora, pode-se saquear todos os ecossistemas para que se mantenha de pé a lógica do capital.  Com isso, não há nenhum valor ético estável, a não ser os valores do lucro e do consumo.  É porque vigora esta nova ordem que a morte de Deus se intensifica por toda parte.  Não somente os valores medievais entraram em crise, como a nova racionalidade tornou obsoleta toda e qualquer tentativa de criar ou justificar racionalmente a existência de certos valores, que sirvam de parâmetros estáveis às relações entre homens e/ou entre homens e a natureza.  Então, lembrando Kant [5], o homem perde sua dignidade , já que torna-se um mero meio, e não um fim em si mesmo.

       A conseqüência da morte de Deus é a evidenciação do fenômeno niilismo.  Este termo, tão comum hoje, devido, principalmente, a Nietzsche, derivado da palavra latina nihil (nada), indica, sobretudo, que estamos numa cultura dominada pelo nada.  Estamos num deserto, numa falta completa de um tipo de vida cultural onde o caos não seja seu ordenador.  O niilismo indica a falta total de sentido e de valores na sustentação do destino do ocidente e de sua cultura.  Não há parâmetros, normas e leis para nada.  Quando há, as normatizações já não mais amedrontam o homem ocidental.  Tudo é permitido.  Por isso, não há mais absurdos.  Justamente porque o niilismo é a palavra de ordem no ocidente, é que podemos entender como se justifica as invasões americanas no Iraque e no Afeganistão.  Pode-se falsificar informações, mentir e forjar a existência de bombas atômicas em países do Oriente Médio, em nome da conquista de poços de petróleo, regiões com gás natural a explorar ou até em nome da aquisição de novos consumidores, que manterão mais ainda a lógica do lucro.  Também se pode ter uma vida sexualmente promíscua, tratando o outro como objeto descartável, desde que a lógica do prazer seja mantida. Nada disso causa-nos espanto.  É o niilismo que corrói toda amplitude das manifestações da cultura ocidental.  Conclusão: com o vazio de sentido inerente ao niilismo que permeia hoje o ocidente, torna-se impossível o vigoramento das velhas doutrinas éticas, baseadas no poder de sistematização da razão, que tudo conceitualmente explicava, possibilitando a construção de doutrinas éticas totalizadoras, já que norteavam todo comportamento humano, em toda situação possível.

 

3.            Trata-se, então, de tentar elaborar uma possível resposta à questão: como pensar a ética em um outro horizonte que aquele da razão clássica, que possibilite ao pensamento ético a superação do niilismo moral?  Com esta questão, de forma alguma se quer ressuscitar a velha racionalidade, mas achar um âmbito possibilitador da gênese de um novo pensamento ético, que não seja o da velha racionalidade e que não seja o âmbito em que o niilismo ganha vida ou razão de ser.

       Um novo texto serve-nos de guia para que encontremos um novo horizonte possibilitador da configuração de um novo pensamento ético.  Falamos do fragmento 119 de Heráclito de Éfeso [6], que diz: “Éthos anthrópo dáimon”.  A tradição costuma traduzir: a ética é o demônio (isto é, a divindade) do homem.  Mas será esta tradução sustentável?  Certamente que não.  Isto porque, como já mencionado, por ética se entende uma área, disciplina ou capítulo da filosofia que somente apareceu no cenário ocidental com Platão.  Ora, a sentença mencionada é de Heráclito, que fora predecessor de Platão, e não o contrário.  Disto decorre que jamais se poderia dizer que éthos em Heráclito é sinônimo de ética.  O problema é que, no que tange às traduções de textos antigos, a tradição costuma projetar seu horizonte de compreensão dos termos em questão (por exemplo, éthos, lógos, etc), que jamais se identifica com o sentido originário em que eles, numa determinada época, ganharam vida.  No caso do fragmento 119 de Heráclito, o termo éthos não se refere a costumes éticos, de onde surge seus correspondentes latinos mos e moris, pais da palavra portuguesa moral.  Éthos, com a letra grega “eta”, significa “estada, lugar de morada” [7]

         No sentido da frase de Heráclito, éthos diz respeito ao “espaço aberto onde mora o homem” [8], isto é, o habitat que serve de moradia para o homem.  Este espaço ou abertura onde o homem habita é, como diz o fragmento citado, o lugar onde faz –se presente a divindade, isto é, o daimon.  É a serviço desta moradia originária – e tão – somente a serviço dela – que qualquer norma moral ganha seu sentido de ser.  Por isso, toda moral é relativa à capacidade de salvaguardar o éthos, a morada humana, que é o lugar onde o divino é acolhido.  Como compreender, então, esta morada?  Como entender este divino?  Por fim: como entender a relação entre éthos e moral?  Vejamos.

 

4.            A morada humana (ou éthos) contém a divindade.  É como comparsa ou companheiro da divindade que o homem realiza-se como tal.  Mas, que é isto: divindade? Não se trata de entendê-la como um ente que, como rezam a filosofia e teologia medievais, fundamenta e cria ex nihilo a totalidade dos entes do real – as criaturas.  Esse Ipsum Esse Subsistens apareceu no pensamento ocidental quando, a partir do século II depois de Cristo, a recém – nascida religião cristã utilizou elementos conceituais do pensamento grego – primeiramente o platonismo e a tradição (após o século III) plotiniana, depois o pensamento aristotélico (após o século XII) – e também romano para explicitar os dados inerentes à Revelação Bíblica (Cf.: S. Justino, Tertuliano, Origines, S. Agostinho, S. Tomás de Aquino, etc).  É somente com o “casamento” entre Grécia e Jerusalém que o Deus que conhecemos aparece no mundo.  Antes disso, os termos théos e dáimon de forma alguma relacionavam-se com o Deus da dogmática cristã.  O universo de compreensão pré – socrático, por exemplo, nas palavras de Tales de Mileto, pensava que a “natureza está cheia de deuses" [9], isto é, que o divino tudo permeia e de múltiplas formas se manifesta.  Também Platão e Aristóteles acreditavam que o divino é algo polimorfo, no entanto, diferentemente de seus predecessores, acreditavam que o universo divino estava relacionado com a realidade supra – sensível e seus múltiplos matizes.  Mas, e a divindade de que fala Heráclito, que é inerente à morada humana, que é ela?  Para descobrir isto ouçamos Xenofonte falar de Sócrates.

       Segundo Xenofonte, “Socrátes falava o que sentia, dizendo-se inspirado por um demônio". [10] Ou seja, Sócrates falava o que falava (ou agia como agia) e era o que era porque auscultava o seu dáimon, a sua divindade.  É desde esta ausculta e da correspondência à mesma que Sócrates realizava-se em seu ser, traduzindo em suas ações aquilo que a divindade lhe dizia.  Neste sentido, pode-se dizer que a divindade era a condutora de toda a existência de Sócrates.  Não era ele que criava a divindade, mas era esta que o norteava (inspiração).  Disto resulta que a divindade aparecia como fonte de sentido realizador da vida de Sócrates.  É justamente este o sentido do termo dáimon presente na sentença supramencionada de Heráclito.  É como fonte de sentido realizador da existência que a divindade é inerente, isto é, sempre presente na morada do homem.  É na ausculta e correspondência a esta fonte que o homem realiza-se em seu ser.

       O problema é justamente acolher e corresponder ao divino, que, com outras palavras, podemos dizer que é o sentido realizador da vida.  Isto porque não há uma receita, uma norma pré – estabelecida ou uma lei que diga como o homem deve acolher da vida seu sentido, pois isto que é a vida e seu sentido se pluraliza, já que singulariza -se em cada homem e em cada cultura.  Além disso, outra dificuldade se refere ao fato de que o sentido realizador da vida (divino/dáimon) não esta fora dela, ou seja, o homem assume o sentido realizador de seu ser justamente assumindo ou se apropriando daquilo em cujo seio ele sempre já esteve e está.  Isto significa que para o homem realizar-se em seu ser, não é mister conduzir-se por doutrinas universalistas, mas saltar ou deixar-se afetar por isto em que sempre já se está: a vida e seu sentido.  É, então, da própria vida que o homem recebe as “leis” originárias que viabilizam sua realização.  Deve-se, portanto, reconhecer que é desde e para esta dimensão originária que toda norma ético - moral tem sua razão de ser.  Isto indica uma dupla relativização: a – as normas morais são relativas à vida, isto é, toda norma moral surge devido a vida e tão – somente a ela servem; b – todas as normas morais são temporais, pois a vida, que é o que ela (norma moral) deve de fato servir, é histórica, pois é uma realidade em aberto, que constrói-se processualmente. 

       Mas, nesta perspectiva, não há um certo tom niilista ou relativista da moral?  Não necessariamente.  Não se deve interpretar este tipo de relativização da moral como algo niilista, como, por exemplo, ocorre com a axiologia e  moral próprias da lógica da produtividade, da lógica do capital.  Isto porque há um elemento absoluto nesta nova perspectiva.  O absoluto é a própria vida.  Esta, no nível que estamos abordando, não tem nada a ver com seu homônimo utilizado pela biologia e demais ciências.  Vida, num sentido existencial, é o solo de onde brotam todos os valores e todas as ações humanas.  Ao mesmo tempo, a vida é sempre uma teia de relações, onde o homem aparece como ser – com – os – outros [11] humanos, ao mesmo tempo que aparece como um ser – em – comunhão – com – a – natureza.  Por isso, sendo sempre com os outros e com a natureza, isto que é a vida humana (e seu sentido) acontece sempre enraizada ou inserida numa cultura, que serve de elemento mediatizador dos possíveis modos de efetivação das relações com os outros e com os demais seres.  Isto significa que o absoluto, neste conceito de vida, é a dependência do outro e da natureza na realização da vida (e de seu sentido) humana.  Portanto, é desde a necessidade de harmonização destas relações próprias da vida (com os outros e com a natureza) que toda cultura, toda moral e toda axiologia devem ser modificadas, criadas ou salvaguardadas.  É como serva da realização da vida e de suas várias relações, enraizamentos e dependências que toda moral e axiologia são justificadas.  Ora, sendo a vida e suas relações mutáveis, toda moral e axiologia devem modificar-se para sempre desempenharem suas tarefas.O problema, então, não é a elaboração de novas normas morais racionais, como querem os movimentos éticos de hoje, mas ater-se à dignidade das múltiplas realidades com que a vida humana depende para chegar à sua plena realização (seja com os outros ou com a natureza), além de ater-se à dinâmica intrínseca destas relações, que aparecem como realidades histórico – processuais.  Na ausculta destes elementos absolutos, o niilismo é superado, as normas morais são criadas, porém não de forma apodítica, mas de forma débil, isto é, sempre abertas a possíveis transformações, caso a vida humana e suas múltiplas relações exijam.  Somente assim, o divino do qual fala Heráclito é salvaguardado e o homem mantém-se e realiza-se em sua morada (vida).

 

5.            Do que dissemos, podemos tecer algumas considerações conclusivas.  O problema da crise da ética no e do ocidente parece, desde o exposto, um passaporte ou ponte para o surgimento de uma nova humanidade: aquela que superou o dogmatismo das éticas apodíticas e o niilismo relativista moral-axiológico.  É que a recolocação da vida como elemento absoluto na configuração de qualquer ética ou moral possível possibilita a superação do dogmatismo moral inerente às morais clássicas, assim como possibilita a superação do niilismo moral – axiológico presente na cultura contemporânea.  Isto porque, sendo a vida algo processual – histórico e sendo toda moral (ou axiologia) mera salvaguardadora deste elemento originário, todo modelo racional ético tem, necessariamente, que ser débil, pois deve estar aberto para possíveis reelaborações.  Por outro lado, a superação do niilismo se dá, nesta perspectiva por nós anunciada, justamente devido a presença de elementos constantes presentes na historicidade própria da vida.  Tais elementos são os outros e os demais entes da natureza.  Mesmo que a vida seja histórica, o éthos humano (e sua realização) é sempre uma teia ou um laço que amarra o homem com tudo e todos.  Neste sentido, a moral ou o conjunto de valores somente tem sentido se o outro humano e a natureza não humana forem preservados em seu ser.  É somente na correspondência a esta imbricação mencionada que o homem, seguindo a sentença heraclitiana, acolhe o divino, isto é, o sentido realizador da vida ou existência e realiza-se como tal.  Portanto, somente pensando a vida em sua estrutura ontológica histórico – processual e em sua estrutura relacional que a ética pode ganhar vez e voz no mundo da MORTE DE DEUS.

 

  NOTAS:



[1] Cf. NIETZSCHE, F.  O nascimento da tragédia.  São Paulo: Companhia das Letras, 2003  p. 84-96

[2] Cf.  NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos.  Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000  p. 17-30

[3] Cf. HEIDEGGER, M.  Os conceitos fundamentais da Metafísica: mundo, finitude, solidão.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003 § 10;  e também, HEIDEGGER,  M.  Sobre o humanismo  Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967 p. 85

[4] NIETSCHE, F.  A gaia ciência.  São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 147-148

[5] Cf. KANT, E.  Crítica da razão pura.  São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[6] Estamos utilizando a menção que Heidegger faz deste fragmento em Carta sobre o humanismo,  op cit  p. 85

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] TALES DE MILETO. In, Os filósofos pré–socráticos.  São Paulo: Cultrix, 2000, p. 23

[10] XENOFONTE.  “Memoráveis”.  In, Coleção Os Pensadores.  São Paulo: Nova Cultura, 1987, p. 33

[11] Cf. HEIDEGGER, M.  Ser e Tempo.  Parte I.  Petrópolis: Vozes, 1999, § 26

 

BIBLIOGRAFIA:

 

HEIDEGGER, Martin.  Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão.  Rio de Janeiro: Forense universitária, 2003

_________________  Sobre o humanismo.  Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

_________________   Ser e Tempo . I Parte. Petrópolis:Vozes,1999.

 

KANT, Immanuel.  A crítica da razão pura.  São Paulo: Martins Fontes, 2002

 

NIETZSCHE, Friedrich.  O nascimento da tragédia.  São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

___________________  Crepúsculo dos ídolos. Rio de Janeiro: Relume Dumará,2000.

 

___________________  A gaia ciência.  São Paulo: Companhia das Letras, 2002

 

Os filósofos pré – socráticos.  São Paulo: Cultrix, 2000

 

XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates.  In: Coleção Os Pensadores.  São Paulo: Nova Cultura, 1987

 

RESUMO:

Desde Sócrates, o ocidente vem compreendendo e organizando o real e seus múltiplos matizes tão - somente segundo as exigencias da razão. É a partir da genese deste raciocentrismo, que emergiu , na cultura ocidental, a ética enquanto normatização do agir humano segundo conceitos racionais do que seja o BEM e o DEVER. Entrementes, tal paradigma racional ,com a genese da ciencia moderna , gerou, concomitantemente, uma dilaceração dos valores éticos até então vigentes, donde se verifica a raiz do atual niilismo ético - axiológico . No afã de contribuir para a superação desta situação ética contemporânea , este artigo visa apresentar a vida como elemento absoluto para pensar - se qualquer elaboração ética hoje, já que o que se entende por vida , além de não se identificar com um conceito bio-fisiológico, isto é , com um conceito advindo da ciencia, comporta a alteridade , os demais entes do real (natureza) , a situação cultural em questão e é algo histórico , possibilitando a gênese de uma ética não normativista , ao mesmo tempo que não desemboca em uma concepção ética relativista.

 

 Palavras-chave: ética, niilismo e vida.

 

* O autor é mestrando em filosofia na UFRJ.

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