AS CIÊNCIAS
SOCIAIS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO E O ENIGMA DA ESFINGE
Marcelo
Cavalcante*
1. Introdução
A
história da humanidade pode ser compreendida sob um ponto de vista epistêmico que a ordene com base nos valores dominantes em
cada época, levando em conta que as
relações sociais são sempre permeadas por um modo específico de pensar (Marcondes
Filho, 1987: 9).
Assim entendendo, podemos
ordenar longos períodos históricos á luz de incontestes hegemonias (no sentido gramsciano) quanto as formas de
pensar; a saber: o período dominado pelo pensamento mágico, pelo filosófico, pelo
religioso e, a partir da modernidade, pela crença na eficácia da ciência. Essas
formas de conhecimento, uma vez hegemônicas, independem de “acertos” ou grau de
“verdade”, pois se legitimam na medida
em que dão fundamentos ideológicos
ao modu vivendi dominante
no período considerado.
Sendo na atualidade a ciência, ainda, e apesar da propalada “crise
dos paradigmas” [1], a
forma hegemônica de conhecimento, ela imprime modos específicos de pensar
que permeiam as relações sociais. Mas pode-se simplesmente dizer que a vida
social é regida por esta forma específica
de conhecimento hegemônico? Ambiguamente pode-se responder: sim e não.
De certo modo há um forte
grau de consenso em torno da premissa de ser a ciência basicamente um conjunto
articulado de conhecimentos sobre determinado objeto, ou seja, os conhecimentos
obtidos mediante a observação dos fatos e um método próprio de investigá-los. Método
que sofre variações quanto as diferentes escolas do pensamento e áreas de
investigação. Acrescente-se ao dito que a ciência observa regras de
sistemática, objetividade, controle, predição, precisão e mais uma infinidade
de estatutos, chegando a desqualificar
juízos de valor (Weber: 1977), enfatizando a neutralidade e a mensurabilidade. Por
outro lado, de forma panorâmica, pode-se também dizer que as formas de pensar que
orientam o ordenamento das relações sociais na contemporaneidade, não são inteiramente
informadas pelo saber científico, enquanto maneira de pensar hegemônica.
Da questão suscitada –
descompasso entre ciência e organização social - são ilustrativas as seguintes indagações:
“... que verdade tem o noticiário de televisão quando, apesar de
irrefutáveis provas apresentadas pelo investigador da corrupção política, a
velha raposa da política usa-se de todos os canais de TV para ‘provar’ o
contrário? Que verdade há nas previsões eleitorais, quando se constata que por
mais improvável que parece o político, e por menos chances que possui, assim
mesmo desbanca qualquer instituto de pesquisa e vence galhardamente? Que
verdade há nas pesquisas científicas das multinacionais da indústria química
que provam que os ‘defensivos agrícolas’ não são tóxicos e venenosos à saúde
humana? Que verdade há nos institutos que medem a poluição ambiental e
‘comprovam’ que o ar está abaixo dos níveis de periculosidade? Em que verdade
dos políticos acreditar? Em que verdade dos cientistas? Em que verdade dos
comunicadores? Em nenhuma”. (Marcondes Filho, 1987: 13-14).
Estas candentes perguntas poderiam
ser (re)formuladas ad
nausean com tendências ao infinito sem que alterasse
o referido descompasso. Na fundação da ciência moderna a idéia que exasperava
um de seus próceres era de que “A lógica
tal como é hoje usada mais vale para consolidar e perpetuar erros, fundados em
noções vulgares, que para a indagação da verdade, de sorte que é mais danosa
que útil“. (Bacon, 1972: 21).
2. Os fatos sociais.
Emile Durkheim (1858-1917),
contribuiu sobremaneira no sentido de dar
estatuto científico à sociologia, ao construí-la à luz de objeto de
estudo e método próprio. Através de um esforço monumental dotou-a de um corpo
de conceitos adequados e de específicos processos de investigação e de interpretação
[2]. No livro “As Regras do Método Sociológico”,
Durkheim postulou serem os “fatos sociais” externos aos indivíduos (portanto
fatos objetivos) e “também dotados de um poder imperativo e coercitivo, em virtude do qual
se lhe impõem, quer queira, quer não”. (Durkheim, 1982: 2).
A distância temporal que nos
separa dos escritos de Durkheim, inclui, necessariamente, todo o advento do
processo científico-tecnológico moderno e seus desdobramentos. Os fatos
sociais, na atualidade, podem ser artificialmente construídos tanto pela “propaganda
ideológica” que “visa controlar o juízo
público” (Chomsky, s/d: 11), intentando forjar
consenso político, quanto pelos modernos meios de comunicação de massa, em
atendimento aos interesses econômicos através da fabricação de gostos e padrões
de consumo coletivos, pois os fatos sociais foram transformados em mercadorias
que, no dizer de um estudioso: “são as
mais humanas de todas, pois vendem a varejo, os hectoplasmas
de humanidade, os amores e os medos romanceados, os fatos variados do coração e
da alma”. (Morin, 1975: 9).
Os
homens necessitam dar um significado à realidade que os rodeia pelo simples
fato dela existir e, portanto, não podem prescindir de elaborar justificativas
para os fenômenos naturais e sociais. Essa justificativa imperativa, os leva a
criar padrões culturais. Sociedades diferentes, dão sentido às suas existências
de formas diversas, uma vez que produtos de culturas diferenciadas. Este anti-etnocentrismo
cultural deixa patente que as idéias de “certo” e de “errado” não podem ser
encontradas num absoluto, mas sim na cultura de cada sociedade. Se fosse um
absoluto, teríamos apenas uma cultura única, uma mesma e indiferenciada visão
de mundo, universalizada. As diversas culturas legitimam as suas respectivas
visões de mundo, pois estas dão significado à existência, independente de serem
de caráter religioso, mágico, filosófico ou científico, ou seja, “nas culturas pré-industriais a magia é o
‘estabilizador cultural’ enquanto que na cultura industrial moderna tal função
é desempenhada pela ciência como técnica”. (Bartholo
Jr., 1986: 23).
A
cultura de determinada sociedade estabelece um patamar no qual as normas e leis
(folkways e
mores) tornam a convivência possível.
Costumes, normas, leis, formam o suporte sob o qual os membros de determinada
sociedade se baseiam na busca de um equilíbrio para as suas existências. É como
um paradigma (no sentido kuhniano). É como um corpo geral, um sentimento do mundo, nem
sempre explicitado. Nas sociedades modernas, fazem parte deste corpo geral, além
do aparato jurídico, possibilidades ideais tais como: igualdade, equidade,
justiça, honra, honestidade e outros “sentimentos edificantes”... Mas há uma
idealidade que se destaca das demais, sob o aspecto de apresentar a capacidade
de oferecer uma quase mensurabilidade: a idéia de igualdade política e jurídica
entre todos os homens.
Realizando o pressuposto baconiano
de desvendar os “mistérios da natureza” [3], as ciências
naturais, através da instrumentalização dos fecundos
conhecimentos produzidos, vai efetivando cada vez mais um avassalador controle
sobre os fenômenos naturais. Desta forma, a moderna ciência natural torna-se
ciência aplicada apresentando o seu traço distintivo enquanto ciência:
a “sua indissolúvel vinculação ao método experimental e com isso a exatidão
dos aparatos técnicos de medida” (Bartholo Jr.,
1986: 61). O mesmo não ocorre com as ditas ciências sociais; isto por uma
impossibilidade intrínseca, pois como argumentou Max Weber o método das ciências
naturais é explicativo e o das ciências da cultura, compreensivo.
Ainda
em fase de gestação, há um rascunho de teoria social que tenta justificar as
mazelas humanas (fome, exclusão, violência, injustiças, etc.) no fato de as
ciências da sociedade não possuírem
“precisão” comparável á das ciências
naturais. Esse problema, apesar de uma aparente clareza e simplicidade de
raciocínio, encobre uma lógica perversa, uma tautologia, ou mesmo a velha
história de se entregar à raposa a chave do galinheiro.
No
que tange a anteriormente referida necessidade de explicação das coisas,
consideramos que ela possui um duplo aspecto: interno e externo. Sob o aspecto
interno, as possibilidades de um subjetivismo manipulador, são quase nulas,
pois que dispensáveis enquanto exercício já que “foram validadas num processo argumentativo em que o consenso foi
alcançado, sem deformações externas, resultantes da violência” (Rouanet, 1984: 14). Por outro lado, sob o seu aspecto
externo, as explicações que muitas vezes
têm sido produzidas tipificam-se pela farta manipulação. É exatamente
sob os seus aspectos de externalidade que a
manipulação encontra seus motivos e suas justificativas nos interesses de
grupos, classes ou frações de classe.
Uma
excessiva manipulação do sistema de valores de um mundo cada vez mais globalizado
tende a comprometer o sistema de hábitos
estabilizados e introduzir situações caóticas. Assim como o nosso meio
ambiente (entendido como sistema fechado) possui seus limites e
irreversibilidade quanto à intervenção técnica, a intervenção no sistema
simbólico decerto estabelece limites e irreversibilidade quanto à indiscriminada
intervenção no sistema de valores. Esta intervenção em nada se compara às
hegemonias mágica, filosófica ou religiosa do passado, uma vez que estas
buscavam uma permanência ao passo que a intervenção moderna, de caráter
lógico-operativo, está ancorada em mudanças constantes e contraditórias.
Na atualidade, por artes da
denominada globalização, há pelos quatro cantos da terra um processo de franca e inequívoca degradação da
credibilidade. Um unânime manto de suspeição reveste quaisquer enunciados -
objetivos ou subjetivos - que porventura possam ser elaborados. Perplexas as
pessoas comuns e mesmo os estudiosos (e suas teorias) buscam uma apreensão
lógica, na tentativa de captura racional para estes rumos tecnológicos e mesmo
um entendimento dos efeitos de todo esse processo sobre a humanidade. Tal
problema, de tamanha magnitude e complexidade, desafia a capacidade de síntese
e a possibilidade de discernimento abrangente.
3. Conclusão
Por suas especificidades, as
ciências naturais impõem certos limites à manipulação ideológica. O mesmo não
ocorre no campo dos fenômenos sociais, onde tudo, rigorosamente tudo, pode ser
submetido aos rigores dos interesses, das vontades e dos preconceitos de classe,
sob um conveniente e ilimitado manto de subjetivismo. Isso leva a que, sem
dúvida, nossa época coloque aos que se dedicam às ciências sociais, na
convicção que elas podem ser um guia na construção de uma sociedade mundial
centrada no entendimento e cooperação, perante o enigma proposto pela Esfinge:
“decifra-me ou te devoro”.
NOTAS:
[1] Sobre a noção de “paradigma” e “crise
dos paradigmas” ver: Thomas Kuhn, 1994.
[2] Sobre o assunto ver: Aluizio Alves
Filho, 2002: 165-185.
[3] No “Novum
Organon”, textualmente Francis Bacon nos fala:
“Mas se houvesse entre nós alguém pronto a responder
às interrogações incitadas pela natureza, em poucos anos seria realizado
o descobrimento de todas as causas e o estabelecimento de todas as ciências”
.(Bacon, 1972: 79). Mais adiante encontramos outra passagem significativa:
“Só então poderemos dizer ter colocado
nas mãos dos homens, como justos e fiéis tutores, as suas próprias fortunas,
estando o intelecto emancipado e, por assim dizer, liberto da minoridade;
daí, como necessária, segue-se a reforma do estado
de humanidade bem como a ampliação do seu poder sobre a natureza”. (Bacon,
1972:236).
BIBLIOGRAFIA:
ALBUQUERQUE, J.A.G. “Classes Sociais e
Produção Intelectual”. In, Classes Sociais
e Trabalho Produtivo. Rio de Janeiro: CEDEC/Paz e
Terra, 1978.
ALVES FILHO, Aluizio. “O ‘fato social’
como objeto de estudo da sociologia – a revolução teórica de Emile Durheim”. In, Contemporânea
– Revista de Estudos e Debates das Faculdades Integradas Bennett, vol. 6, no.
1. Rio de Janeiro: Bennett, 2002.
BACON, F. Novum Organum. São Paulo: Abril
Cultural, 1973.
BARTHOLO JR., R. S. Os Labirintos do Silêncio - Cosmovisão e
Tecnologia na Modernidade. São Paulo: Marco Zero/COPPE/UFRJ,
1986.
CHOMSKY, Noam. Propaganda ideológica e controle do juízo público. Rio de Janeiro:
Achiamé, s/d.
DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Ed. Nacional, 1982.
KUHN, T. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva,
1994.
MARCONDES FILHO, C. Quem manipula quem? - poder e massas na indústria da cultura e da
comunicação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1986.
MORIN, E. Cultura de Massas no Século XX (O Espírito do Tempo). Rio de
Janeiro: Forense / Universitária, 1975.
ROUANET, S. P. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1984.
WEBER,
Max. Sobre a teoria das ciências
sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1977.
Resumo:
O presente texto busca discutir a
produção científico-tecnológica destinada a potencializar a sua intervenção, via
manipulação, no sistema de valores simbólicos nas sociedades. Abordando a
questão da crise dos paradigmas pretende demonstrar a contradição radical entre
ciência e poder, seus objetivos e pressupostos e, apontar os limites de tal
intervenção.
Palavras-chave: Ciência, tecnologia,
manipulação, sistema de valores, poder.
* O autor é cientista político e MSc. (COPPE/UFRJ).