MOÇAMBIQUE:
AS METAMORFOSES DA CIDADANIA OU EM BUSCA DE UMA CIDADANIA? [1]
Olívia
Maria Faite*
“O que se passa, e isso parece inevitável, é que
estamos criando cidadanias diversas
dentro de Moçambique” (Mia Couto).
1. Introdução
Falar
de cidadania em Moçambique significa rebuscar inúmeros aspectos da história de
um País do século XX e, tentar condensá-los para justificar o conceito, sendo
assim, não se mostra tarefa fácil e muito menos algo que possa ser esgotado
numa reflexão apenas, contudo, a necessidade de abrir esta página, e tentar
entender o real significado de cidadania em Moçambique apresentam-se-nos
algo irresistível, devido aos conturbados momentos que marcam o quotidiano
moçambicano.
Este artigo procura de forma
resumida refletir sobre o tipo de cidadania que se foi
construindo e, para sustentar a nossa argumentação baseamo-nos nalguns
fato da história de Moçambique. Não se trata, porém, de uma análise aprofundada,
uma vez que a mesma requereria maior espaço e tempo, mesmo assim, não
pretendemos furtar-nos a um debate que se têm tornado cada vez mais premente.
Ao
invés de descrever detalhadamente o estado da arte sobre o conceito de
cidadania e suas tipologias, apresentaremos o conceito de cidadania cunhado por
Marshall, a tipologia adotada por Turner, as
contribuições de Rosário e, Murilo de Carvalho.
Apesar
dos estudos de Marshall terem um cunho etnocentrista,
por ter generalizado a sua análise com base no caso inglês, o seu esquema
interpretativo é ainda considerado relevante para muitos enfoques sobre
cidadania, por ter contribuído grandemente para o avanço na discussão teórica e
nos estudos históricos sobre cidadania. Por essa razão resolvemos trazer a sua
abordagem.
Marshall
(1967:66) divide o conceito de cidadania em três partes ou elementos, que são:
o civil, o político e o social. O primeiro composto pelos direitos à liberdade
individual-liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o
direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça; o
segundo constituído pelo direito de participar no exercício do poder político,
como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um
eleitor dos membros de tal organismo e o terceiro e último se refere a tudo o
que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao
direito de participar por completo na herança social e levar a vida de acordo
com os padrões que prevalecem na sociedade.
Rosário
(1994:62) acrescenta ao conceito de cidadania à dimensão psicológica que
segundo ele “permite ao indivíduo
considerar-se membro da sua cidade, saber quem é e o que deve fazer e, ainda
que lugar ocupa”.
Portanto
o conceito de cidadania usado para a nossa reflexão será resultante de uma
combinação do conceito de Marshall e o acréscimo de Rosário.
Turner (1990) define duas tradições de
cidadania: a passiva (que é o resultado da obtenção da mesma,
via Estado) onde o Estado gere o espaço público, mantém a iniciativa
de mudança e vai incorporando aos poucos os cidadãos à medida que vai ampliando
os seus direitos, e a ativa (que é a obtenção da mesma como resultado de uma
luta pelos direitos civis, políticos e sociais) [2]
Buscando
um exemplo que de certa forma se aproxima de Moçambique, teríamos o caso da
cidadania brasileira, que nas palavras de Murilo de Carvalho (1996:340) “nossa tradição oitocentista
está mais próxima de um estilo de cidadania construída de cima para baixo, em
que predominaria a cultura política súbdita, quando não a paroquial”.
Carvalho faz uma incursão pelos primórdios da história brasileira e mostra como
a ditadura militar no seu país contribuiu para que se criasse uma cidadania
passiva, onde o brasileiro se tem mostrado cada vez mais passivo e,
constitui-se como ator social com base nas demandas estaduais.
Sendo
Moçambique um país resultado da dominação colonial portuguesa, a diversidade étnica é algo conflituoso de
tal forma que, os moçambicanos transfronteiriços
vivem quase sempre num dilema, pois acabam não sabendo a que realidades efetivamente
pertencem, por partilharem com os cidadãos dos países vizinhos não só a mesma
língua, como também a mesma cultura.
Apesar
dos inúmeros e sobejamente conhecidos percalços constatados quando se procura
enquadrar uma determinada teoria a um caso totalmente diferenciado, tentaremos
harmonizar o caso moçambicano numa das tipologias Turnianas
e, nesse ponto a contenda seria: que tipo de cidadania foi construído em
Moçambique? Passiva ou ativa? Será que lutamos para nos tornarmos cidadãos ou
somos cidadãos estado-cêntricos?
Partimos
da seguinte premissa: fatores convergentes contribuíram para que em Moçambique
se criasse uma cidadania passiva, via Estado e, para melhor defendermos a nossa
postura adotamos uma cronologia provavelmente conflituosa. Entenda-se que não
se trata aqui de criar balizas cronológicas definitivas, consideramos apenas
algumas etapas que melhor se enquadrariam à nossa reflexão. Eis os fatos:
I. Finais do século XIX [3] até ao início da luta armada em 1964. (período
colonial)
·
A principal
característica deste período seria o início da ocupação efetiva de Moçambique
pelos portugueses como marco inicial e, o marco final seria o início da luta
armada.
De
um modo geral nesta fase, ser cidadão significava ser assimilado, isto é saber
falar português, saber sentar-se à mesa, ter o IVº
nível de escolaridade, etc. Muito embora a maior parte da população não reunisse
esses requisitos o governo colonial, considerava cidadãos aos assimilados,
os demais ainda eram considerados indígenas. [4]
Parte significativa
destes assimilados acabou sendo a precursora da revolução moçambicana, em
vários sentidos (social, político e cultural), daí que a eles se delegue a
paternidade da cidadania moçambicana. [5] Naturalmente que neste período a
cidadania estava vinculada aos propósitos da administração colonial.
II.De 1964 a 1975
Com
a criação da Frelimo [6] (1962) e o início da luta armada (1964), os indígenas
e alguns assimilados, pela primeira vez tiveram a oportunidade de comungar
os mesmos ideais, lutando por uma causa comum, na esperança de poderem viver
num país livre e sentirem-se cidadãos em toda sua plenitude. Houve aqui uma
mudança significativa onde os indígenas tiveram que aceitar uma entidade abstrata
como a pátria, como objeto de lealdade suprema, acima da família e de outros
grupos primários. Este já era um ingrediente mais do que crucial para a criação
da cidadania. A Frelimo era para os indígenas (de ora em diante moçambicanos),
o seu representante único e legítimo, o aglutinador de todas as aspirações
e vontades, enfim, o único veículo para obtenção da cidadania. O surgimento
de um inimigo comum despertou sentimentos de patriotismo nunca antes vistos.
Não se questionava aqui o que era ser cidadão, quais os direitos e deveres,
mas a pátria acima de tudo.
III.De 1975 a 1986.
Quando
o país se tornou independente em 1975, a Frelimo declarou como prioridades:
a eliminação dos vestígios coloniais, das formas de poder tradicional, que
passaram a ser consideradas supersticiosas [7] e
a formação do homem novo com base numa orientação socialista.
A
formação do homem novo não ocorreu de forma pacífica, como a Frelimo almejava
de tal modo que, alguns moçambicanos dissidentes [8] revoltaram-se e formaram
a Renamo [9], que desencadeou uma guerra civil que
durou dezasseis anos (1976-1992). A guerra civil
significou uma ruptura com o sentido de cidadania que havia despontado apenas
como um esboço. Nesta altura passaram existir cidadãos dentro do horizonte
da Frelimo e outros que sendo moçambicanos reivindicavam pela sua cidadania,
pela força das armas. Houve aqui uma fissura e, os moçambicanos que se encontravam
dentro do território controlado pela Frelimo, sentiam-se cidadãos de acordo
com os ideais da Frelimo e, a outra parte constituía uma espécie de não-cidadãos.
Note-se
que os moçambicanos que nós consideramos cidadãos, não eram automaticamente pró-frelimistas, mas por motivos vários viviam sob a égide
da Frelimo que era o aglutinador e envidava esforços para acabar com a guerra. Após
a morte do primeiro Presidente da República em Outubro de 1986, o discurso da
Frelimo toma rumos diferentes e a sua tendência socialista vai esmorecendo.
IV.De
1986 aos nossos dias.
A partir de 1986 a Frelimo passou a agregar nos seus
discursos a reintegração das autoridades tradicionais, a abertura de um espaço
de diálogo entre as diversas sensibilidades (nesta altura ainda considerava a Renamo bandidos armados).
Em 1990 entrou em vigor a nova constituição que reza o direito
à participação dos cidadãos na vida política, o direito a livre associação,
etc. A nova constituição foi para muitos moçambicanos a grande oportunidade
de pela primeira vez participar ativamente na vida política, formar grupos
de interesse ou até mesmo voltar a acreditar num Moçambique onde se pudesse
consolidar a democracia. Em 1994, realizaram-se as primeiras eleições livres
e multipartidárias. O moçambicano, que não conhecia o voto secreto e direto,
sentiu-se livre e simultaneamente desordenado, por confrontar-se com uma nova
realidade [10].
Muito
provavelmente, para alguns moçambicanos este poderá ter sido um dos grandes
momentos de questionamento da sua cidadania enquanto fator psicológico, isto é,
enquanto conscientização dos seus direitos e deveres. Portanto, a guerra acabou
favorecendo a solidificação da cidadania passiva, uma vez que todo o esforço do
Estado visava eliminá-la, fazendo uma vez mais com que a população partilhasse
dos ideais comuns, isto é, do fim da guerra como pressuposto para a liberdade e
a democracia.
Analisando
os quatro momentos podemos notar que em Moçambique a cidadania foi construída
de cima para baixo, isto é, foi construída uma cidadania passiva e/ou estado-cêntrica. Tal passividade
resulta de vários fatores, dentre eles: a delimitação das fronteiras (imposta
pelo Estado colonial); o período da revolução socialista onde o processo de
construção da nação foi através da submissão da população ao Estado; o fato
da Frelimo ter agido numa lógica de partido único, no qual a manifestação
do movimento social na sua diversidade era inaceitável; a crença numa ”revolução”
[11] do Estado, que se transformou no instrumento privilegiado e o lugar de
realização da unidade nacional e construção da cidadania e, por último, a
guerra civil que dividiu os moçambicanos, fazendo com que uma vez mais o Estado
continuasse a dirigir os destinos do País seguindo uma nova realidade, mas,
criando uma cidadania cada vez mais passiva.
Com os desafios da globalização ou
mundialização como alguns pretendem designar, nos
quais os países em vias de desenvolvimento se vão tornando cada vez mais
periféricos, a classe burguesa em formação, busca o Estado para o atendimento
dos seus interesses privados e a classe média e baixa equaciona a questão da
cidadania apenas como uma vontade do Estado. Apesar de existir integridade
territorial ela não garante a coesão nacional, que passa pelo
respeito e, aceitação pela diversidade étnica, cultural, religiosa e
lingüística.
É necessário que desapareça o
sentimento de exclusão que vai surgindo no país e, um dos sinais evidentes é a
criação de várias associações de amigos e naturais de todos os pontos do país.
O que se verifica é que quiçá apenas nesses locais alguns moçambicanos se
sentem cidadãos e construtores da cidadania. Será que continuamos em busca da
nossa cidadania ou já a edificamos? Em que medida o moçambicano do norte do
país, se sente tão cidadão quão o do sul?
Não quisemos aqui concluir que não
existe reação popular as iniciativas governamentais, mas sim mostrar que até
mesmo o desenvolvimento de tais ações, ou atitudes contestatórias têm sempre o
viés da aquisição da nossa cidadania, portanto a via estado-cêntrica
é intrínseca ao desenvolvimento da nossa história cidadã.
Quando se questiona a falta de agressividade
do cidadão perante os inúmeros acontecimentos do cotidiano, uma das respostas
que se pode dar é que tal atitude seria sem dúvida resultado do nosso percurso,
que acabou contribuindo para a criação de uma cidadania súbdita e às vezes
paroquial. Dai a inferência de termos desenvolvido uma estadania.
Sem dúvida que cabe a nós lutar
por uma verdadeira cidadania como contraposição a estadania construída.
Claro que se pode questionar, como
é que um povo que se rebelou e lutou pela independência do seu país pode ter
constituído uma cidadania passiva? Ou como é que um povo que mesmo durante o
período colonial manifestava-se organizando greves, pode ter adquirido a
cidadania via Estado? O que aconteceu na verdade foi que todas essas conquistas
foram reivindicadas e aglutinadas num Estado que, com o decorrer do tempo foi
favorecendo algumas elites transformado-se num Estado
elitista e clientelista, como resultado da adoção da
via socialista. E como o socialismo concentra uma burocracia complexa que
segundo Weber (2000), após a sua instalação está entre as formas mais difíceis
de destruir, o que agora vivemos não é nada mais do que apanágio do nosso
percurso.
[1] Artigo publicado em Novembro de 2003
na Revista PROLER, uma edição do Fundo Bibliográfico de Língua portuguesa
(FBLP) em Maputo: Moçambique.
[3] Com a partilha de África na conferência
de Berlim.
[4] Estes apesar da sua parca instrução manifestavam-se
de diversas formas e uma delas foram às cartas dos leitores, compiladas
por Capela (1994) Todavia estas manifestações não tiveram impactos significativos.
Veja também. (Hedges, 1999:89)
[5] Para mais detalhes sobre
algumas nuances da cidadania moçambicana Veja, (Rosário, 1996:62).
[6] Frente de libertação de Moçambique, partido
que lutou pela independência de Moçambique e continua no poder até hoje.
[7] A Frelimo baniu oficialmente as Autoridades
Tradicionais (em parte por terem colaborado com o governo colonial) e os
elementos substantivos da cultura tradicional, por serem tidas como retrógradas.
[8] Uma parte dos dissidentes resultou da
decretada destruição dos valores tradicionais
[9] Resistência Nacional Moçambicana, grupo armado
que mais tarde se tornou no principal partido da oposição
[10] No período da construção do homem novo existia
o voto popular, mas este era de braço no ar, o que provocava constrangimentos
na população.
[11] Após a independência a imensa maioria da população,
acreditou cegamente que a prioridade da Frelimo era criar a nação moçambicana,
fato que não se verificou, pois, o nacionalismo dos dirigentes da Frelimo
sustentava-se na sua pretensão em criar uma nação numa perspectiva de partido
único e não no sentimento comum da população do que seria uma nação. Para
mais detalhes sobre a Frelimo no poder veja (Brito,
1995:6-7)
[12] Sobre o conceito de estadania Veja (Murilo
de Carvalho, 1996:339)
Bibliografia:
1. BRITO, Luís. C de. Moçambique independente: o novo
espaço político. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 1995 (mimeo).
2. CAPELA, José. Moçambique pelo seu povo. Porto:
Afrontamento, 1994.
3. CARVALHO, José. M de. “Cidadania: tipos e percursos”. Estudos
históricos, 18, 9: 357-424, Rio de Janeiro, 1996.
4. HEDGES, David. (Org), História de Moçambique Vol.
II: Moçambique no Auge do Colonialismo, 1930 – 1961. 2ª ed. Maputo: Imprensa universitária, 1999.
5. MARSHALL, T. H. Cidadania,
classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar,
1967.
6. TURNER, Bryan. S. “Outline of a theory of citizenship”. Sociology, Vol.
24, Nº. 2, 1990.
7. ROSÁRIO, Lourenço do. “Contribuição para uma reflexão
sobre a idéia de identidade e cidadania em Moçambique”, in L. Do Rosário, Singularidades
– estudos africanos, Lisboa: Edições universitárias Lusófonas, 1996.
7. WEBER, Max. Economia e sociedade - Fundamentos da
sociologia compreensiva. Vol I 4ª edição. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2000.
Resumo: O presente artigo discute a questão da
cidadania em Moçambique com base numa perspectiva histórica. Os dados aqui
examinados mostram que desde o período colonial a construção da cidadania se
deu por via do Estado, por motivos vários.Este viés conduziu a criação de uma
cidadania passiva e estado-cêntrica.Nas considerações
finais ressaltamos que na verdade o país ainda continua buscando a sua
cidadania como contraponto à perspectiva estado-cêntrica.
Palavras-chave:
Moçambique história, colonização, cidadania.
* A autora é moçambicana e mestranda em Ciências
Sociais – Gestão das Cidades, na Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais em Belo Horizonte.