Alexandre
Marques Cabral (*)
Por
todos os lados as máquinas se nos apresentam com suas belas roupagens. Elas aparecem como instrumentos de
libertação: libertam os homens do suor do seu trabalho, facilitando seus
múltiplos afazeres. É como se, através
da tecno–ciência, houvesse a redenção do homem frente à maldição divina que
diz: “Com o suor do teu rosto comerás teu
pão.” (Gn, 1, 19) Com o avanço da
tecno–científico não é mais preciso suor nem esforço por parte dos homens: as
máquinas fazem tudo em seu lugar.
Soma-se a isto outra “benção” da tecno–ciência: suas descobertas
prolongam a vida humana na terra. Ou
seja, a morte é cada vez mais postergada, já que, mesmo nos países subdesenvolvidos, a expectativa de vida
cada vez mais aumenta. Seríamos loucos,
então, por colocarmos em cheque todas as “bênçãos” advindas da
tecno-ciência? É claro que não temos
nenhuma intenção de negar o valor e a dignidade de todas as descobertas
técnicas e científicas que, desde a gênese da modernidade, tem auxiliado o
desenvolvimento da sociedade ocidental.
Então, qual a questão que, aqui, trataremos?
Por
mais que queiramos fechar nossos olhos para os grandes fatos da história
contemporânea, não é possível não enxergarmos as duas Grandes Guerras ocorridas
na primeira metade do século XX. Estas
(Guerras), assim como outros tantos fatos, nos mostram o paradoxo existente no
seio da cultura tecnocrática ocidental.
Qual? Simples: as múltiplas
“bênçãos” advindas do avanço tecno–científico não levaram, necessariamente, o
homem ocidental a realizar-se em seu ser como pessoa. Pelo contrário, a corrida pelo progresso – que sempre foi
identificado com o avanço tecno-científico – devastou culturas, dizimou
tradições, chacinou uma multiplicidade de ecossistemas e reduziu o homem a uma
simples peça na engrenagem das indústrias, fábricas, órgãos do governo,
etc. Tudo isso em nome do projeto sócio
– cultural tecno – científico. Este é o
paradoxo: na cultura tecnocrática, apesar de haver uma multiplicidade de facilitações para o homem, este não
consegue realizar-se, de fato, como ser humano. Qual seria o motivo deste paradoxo? O motivo se encontra na essência do universo tecno–científico. Esta (essência) não se reduz ao fato dos
artefatos técnicos e dos resultados da ciência serem simples instrumentos nas mãos humanas. Esta perspectiva acerca da tecno–ciência é
superficial, portanto, não nos leva à compreensão do porquê o homem da era
tecnocrática frustra-se em seu ser e não respeita a dignidade da diversidade cultural,
social e ecológica que lhe circunda.
Este trabalho visa, através de uma análise filosófica,
angariar elementos de natureza teórica que possibilite-nos compreender a
essência do universo tecno–científico para que possamos tecer uma crítica à
cultura ocidental contemporânea, que baseia-se no ideal tecnocrático.
1 – Que é técnica? Que é ciência?
Perguntar: “que é algo?”
é perguntar, na linguagem dos latinos, pela qüidditas ou qüididade. A qüididade,
segundo a tradição, é aquilo que faz com que a coisa seja o que ela é, ou
melhor, a qüididade é o que dá
identidade à coisa em questão. Esta é
uma pergunta de caráter filosófico; portanto, da resposta a ela (à pergunta)
depende todo pensamento acerca dos diversos matizes do real. No nosso caso, perguntamos pela qüididade da técnica e da ciência. A partir de tal questionamento, chegaremos à
crítica por nós proposta.
Sinteticamente, esboçaremos uma resposta à tal indagação (qüididade da técnica e da ciência),
neste tópico. Comecemos, então, pela
ciência.
Comumente, principalmente a partir dos dados advindos das
chamadas ciências humanas, compreendemos a ciência, também a arte, como produto
da cultura. Assim, o homem seria por definição um ser – cultural. À cultura,
que nesta ótica é tudo aquilo que o homem cria e transforma no e do real,
pertence à ciência, como uma de suas manifestações. Apesar desta consideração acerca da ciência estar certa, ela não
toca o seu qüid. Pois, como assinala Heidegger, a ciência é
“um modo decisivo de se apresentar tudo que é e está sendo.” [1] Isto significa que a ciência, em seu
sentido originário, refere-se, antes de tudo, a um modo singular do real se
apresentar ao homem e do homem se apresentar ao real. Desta relação, portanto, surge a definição de ciência como
“teoria do real”. [2]
Por “teoria do real” entende-se uma das múltiplas possibilidades de ocorrência da relação homem –
ente, que emerge no ocidente, a partir da modernidade. Certamente, em outras épocas da história do
ocidente também houve outros tipos de teorização do real. É o caso, por exemplo, da chamada contemplatio medieval e da theoría dos gregos. No entanto, deve-se reparar que nestas
épocas a manifestação da relação homem – ente de forma alguma se compara com
aquela inerente à modernidade. Não
podemos diferenciar a teoria do real
presente na modernidade da teoria do real
presente, por exemplo, na Idade Média, tão somente através do critério do
desenvolvimento dos métodos e equipamentos utilizados para analisar os
entes. Analisar desta forma é ater-se a
aspectos superficiais, que de forma alguma tocam no cerne da questão. A diferença entre a concepção de ciência da
modernidade e das outras épocas da história ocidental refere-se, sobretudo, à
já referida relação originária homem –
ente. Nesta relação, tanto o homem
quanto os entes se desvelam numa diversidade de configurações que, por sua vez,
possibilitam a diferenciação das formas do homem teorizar o real. Como, então, na modernidade o homem e os
entes se desvelaram um para o outro de tal forma que a ciência moderna
emergisse enquanto tal? A resposta a
esta questão apresenta a resposta à questão da essência – qüididade – da ciência.
A modernidade traz consigo o nascimento do sujeito
humano. Como? Não existia homem antes da modernidade? Certamente sim. No
entanto, somente com a gênese da modernidade há o nascimento de um modo de
compreensão do real que possibilitou que o homem, diferentemente de outras
épocas, pudesse ser considerado sujeito, tal qual hoje ainda concebemos. E antes, não existia sujeito? Não, existiam SUJEITOS.
A idéia de sujeito, hoje, a partir do pensamento advindo da
modernidade, contrapõe-se necessariamente à idéia de objeto. Desta dicotomia
advém a força de todo pensamento moderno.
Antes da modernidade não havia a idéia de objeto. Como assinala Heidegger: “Para os gregos não
há objetos. Eles só aparecem a partir de Descartes.” [3] Os gregos designavam o real com o termo ousia, que significa presença. A partir da presença, da vigência dos entes, os gregos construíam
seus pensamentos. Esta presença foi
expressa, também, como o termo hipokéimenon. Tal termo foi traduzido pelos romanos com a
palavra latina subiectum, de onde vem
o termo sujeito. Ora, o subietum
nada tem a ver com o sujeito moderno.
Este último refere-se tão – somente ao EU do homem. Já o subiectum
medieval, que traduzia o hipokéimenon
grego, era utilizado para designar a presença de tudo que pertencia ao
real. Mais que isto: subiectum
referia-se à essência do real, àquilo sem o qual cada ente não pode ser o que
é. O subiectum manifestava-se,
por exemplo, na estrutura de uma frase. O sujeito da oração ou frase é aquilo sem o
qual o predicado não pode ser o que é. Portanto, o sujeito da oração refere-se
àquela dimensão do real da qual todas as outras dependem. Esta é a razão que nos levou a dizer que,
antes da modernidade, existiam vários sujeitos:
cada ente possuía uma dimensão essencial (subiectum)
da qual todas as outras dependiam.
O sujeito moderno não mais se refere aos entes em
geral. Pelo contrário, com a
modernidade, o termo sujeito reduz-se tão – somente ao ente humano. Por quê?
Como isto ocorreu? Isto se deve,
propriamente, a René Descartes, pensador do século XVII. Ele procurou, em seu pensamento filosófico,
um novo solo capaz de fundamentar o conhecimento humano, para que o homem
alcançasse verdades indubitáveis. O parâmetro de indubitabilidade, para
Descartes, era a matemática com suas
fórmulas apodíticas. Neste sentido, era necessário demolir os
fundamentos sobre os quais se fundavam as verdades dubitáveis, que, por sua
vez, não possuíam a indubitabilidade da matemática. O fundamentum inconcussum encontrado
por Descartes foi o EU do homem; por isso sua famosa sentença: cogito ergo sum – penso, logo existo. É o eu a realidade
inquestionável. Por isso, é ele que
passa a merecer a designação de SUJEITO, subiectum;
pois, é ele que é aquilo sem o qual qualquer verdade ou realidade tem
fundamento seguro. Ele, o eu, é aquilo
de que tudo depende para que se manifeste em sua verdade. É daí que Descartes sente a necessidade de
criar um método (um caminho) que, elaborado pelo sujeito, faça o real aparecer
em sua verdade, a partir do critério de certeza imposto pelo mesmo sujeito.
É daí que nasce a ciência, tal qual a conhecemos, hoje.
A gênese do sujeito reduzido ao eu e a gênese do método,
como único meio capaz de apresentar verdades reconhecidas como tais, permitiram
o surgimento da ciência. Cabe ainda
dizer que o pressuposto do método é a crença de que o real reduz-se à linguagem
matemática, pois todo método científico baseia-se no modelo e rigor próprios da
matemática. Por isso, disse com acerto
Heidegger que a ciência moderna é um projeto
matemático da natureza.[4] Este projeto “consiste em projetar a priori
um plano único ao qual devem conformar-se todos os fenômenos para poderem fazer
parte da natureza.” [5] Portanto, a ciência surge à medida que o eu
passa a ser considerado o fundamento do real – sujeito - , à medida que o eu
necessita de um método criado por ele mesmo para descobrir o real em sua
verdade e à medida que o pressuposto deste método é a redução de
toda realidade a critérios matemáticos.
Contrariamente aos antigos, a ciência não lida com os entes
do real em sua simples presença (ousia, subiectum). A ciência não deixa os entes serem e se
apresentarem tal como são. Ela constrói
os entes, à medida que o real passa a ser aquilo que se adequa aos critérios
criados pelo sujeito. Somente a partir
desta adequação o real pode ser alguma coisa.
Quando há a referida adequação, surge o objeto. Este nada mais é que tudo aquilo que se
enquadra aos métodos matematizados
criados por um sujeito. Por isso Max
Planck disse que “real é o que se pode medir.” [6] Nesta ótica deve ser entendida a definição
inicial de ciência: ciência é a teoria do
real. A teoria, aqui, é uma
construção do sujeito que visa explicitar o enquadramento dos entes numa
metodologia matematizada. A teoria é
tão – somente um asseguramento do real em sua redução ao projeto matematizador
da natureza, que é a ciência. O
pressuposto, então, do saber científico está no modo com que a relação homem –
ente se dá. Nesta, o homem visa tão –
só assegurar-se do real segundo seus métodos.
Assim, o real se dá como objeto e o homem como sujeito – substrato de
que todo real depende.
E a técnica? Qual
sua essência (qüididade)? Vejamos.
Costumamos pensar a técnica a partir do conceito de
instrumentalidade. Assim, por exemplo,
uma máquina de costura é um meio eficaz, para que a costura de vestimentas se
realize. Isto coloca em pé de igualdade
tanto uma máquina de costura quanto o trabalho manual de costura que utiliza
linha e agulha como instrumentos favoráveis à realização do seu fim: costurar
vestimentas. A diferença entre estes
dois meios estaria no grau de evolução técnica dos mesmos, porém, tanto um
quanto o outro são instrumentos favoráveis à realização de algo; portanto,
pertencem ao universo técnico. Será que
analisar a técnica a partir do conceito de instrumentalidade leva-nos a
compreender a essência da técnica?
Poderíamos colocar em pé de igualdade tanto a machadinha usada pelos
indígenas para cortar plantas e árvores quanto a moto – serra utilizada por funcionários
de uma indústria de madeiras? Será que
o que difere a técnica dos antigos da técnica dos modernos é um simples grau de
desenvolvimento dos instrumentos utilizados para dominar e transformar o
real? Certamente não.
O caráter singular da técnica moderna é a provocação. A técnica moderna, diferentemente da techné dos gregos, provoca e inquire o real. Provocar é um verbo composto de dois termos
latinos: pro e vocare. Pro significa: para adiante; e vocare é um verbo latino cujo
significado é chamar, convocar, exigir, requerer. [7] Por provocar, então, se compreende a atitude
do homem moderno de, ao relacionar-se com a natureza, pedir contas, exigir que
ela se apresente segundo seus interesses.
Neste tipo de relação, a natureza deve sempre liberar suas forças, deve
liberar suas energias para que o homem dela tire proveito. Esta característica do homem relacionar-se
com o real, como um inquisidor e explorador do mesmo, Heidegger denomina de arrazoamento ou composição[8] (Gestell). Na definição do próprio Heidegger: “Com –
posição é a força da reunião daquele “pôr” que im – põe ao homem des – cobrir o
real, como disponibilidade, segundo o modo da dis – posição.” [9] isto faz com que o homem veja, pela técnica,
o real como um manancial inesgotável de energias sempre disponíveis para os
seus interesses. Por sua vez, o real
também mostra-se provocando o homem, desafiando-o para que este sinta-se
incitado a dominá-lo e explorá-lo. Para
que dominação e a exploração se efetivem, o homem lança mão de planejamentos e cálculos. Estes visam, sobretudo, assegurar ao homem a
total disponibilidade do real.
Do que foi dito, parece haver uma íntima conexão entre
técnica e ciência. A primeira tem como
essência o arrazoamento: o modo provocativo que ocorre na relação homem – real,
onde o real deve liberar sua energia inesgotável ao homem, segundo o projeto de
ordenação e controle da natureza. Já a
ciência tem como essência o projeto matemático da natureza, que visa o
asseguramento do real através dos métodos objetificantes (da realidade) criados
pelo sujeito humano, que passa a ser o fundamento dos entes (subiectum) e criador dos critérios de
legitimação da verdade. O que une
técnica e ciência nada mais é do que a atitude moderna do homem que o faz
reduzir o real aos seus esquemas de controle e ordenação do mesmo. É a vontade de dominação – VONTADE DE PODER,
segundo Heidegger – que fundamenta tanto a técnica quanto a ciência
moderna. A conseqüência disto é que
desconsidera-se tudo aquilo que não se enquadra nos meios de controle criados
pelo sujeito – dominador. Com a
necessidade de se reduzir tudo à normatização, o “tecno–cientificismo” permite
a desconsideração e agressão de tudo que nele não se enquadre. Por isso, é legítimo, segundo esta
perspectiva, a descaracterização das manifestações culturais que não se adequem
à visão tecno–científica do real. Por
exemplo, deve-se desconsiderar as religiões, a arte, os mitos etc, pois estas
manifestações culturais não se enquadram no modelo assegurador, normatizador e
explorador advindo da racionalidade tecnocientífica.
2 – Crítica ao ideal tecno–crático
Devemos saber o que se entende por CRACIA, presente no termo tecnocracia,
assim como a democracia, burocracia etc. Este vem de um termo grego crátos.
Geralmente o traduzirmos por governo. Mas crátos
diz mais que isto: diz poder, capacidade de controle, potência para
ordenação. Assim, a partir das
considerações anteriores, temos o conceito de tecnocracia que diz: norteamento
ou asseguramento da relação homem – real tão somente através da perspectiva do
controle, ordenação e exploração (da energia do real). Isto quer dizer que a tecnocracia é muito
mais do que o simples estar subjugado às máquinas. Mais que isto: a tecnocracia é um modo humano de ser que encara o
real tão – somente através do ideal de controle, normatização, cálculo,
dominação. Portanto, a tecnocracia
coordena o modo de compreensão humana da totalidade do real, onde este se
apresenta como manancial de energia pronta para ser explorado pela vontade de
dominação humana.
As conseqüências do ideal tecnocrático são nefastas. Vejamos duas delas assinaladas por
Heidegger, na obra Introdução à Metafísica. São elas: devastação da terra e massificação dos homens. [10] Estas conseqüências por nós assinaladas são
apenas sintomas do modo de ser
tecnocrático do homem. Vejamo-las.
Desde a descoberta do sujeito humano no início da
modernidade, o homem passou a considerar-se senhor
da terra. Aliás, é bom mencionar
que tanto Descartes quanto Francis Bacon diziam que a finalidade da ciência era
dar poder ao homem, para que ele pudesse
dominar melhor a natureza (saber é poder). O próprio Descartes acreditava que a natureza deveria ser
inquirida ao ponto de revelar ao homem os seus segredos mais ocultos. A conseqüência desta forma de compreensão do
real, desde a gênese da Revolução Industrial do século XVIII (Inglaterra), foi
a instauração de sucessivos saques à natureza, como meios favoráveis ao
desenvolvimento do ideal de progresso que, necessariamente, estava vinculado
com o desenvolvimento industrial, científico e tecnológico.
As indústrias, a partir do século XVIII, passaram a ser um
dos principais sintomas do projeto tecnocrático moderno. Elas passaram a garantir o sucesso do
enquadramento (e ordenamento) do real à vontade de dominação humana. Elas passam a legitimar e a efetivar o modo
de ser humano tecnificado. Para
alimentar esta máquina industrial e, concomitantemente, o ideal tecnocrático, o
homem europeu, “inventor” deste tipo de compreensão do real, passa a sentir
necessidade de romper com os limites de seu continente e passa a buscar matéria
– prima no Oriente e na América. Assim,
encontra-se o agente motivador de toda agressão à natureza: desmatamentos,
exploração do ouro, diamantes, café, cana – de – açúcar etc. Esta agressão é um meio necessário para que
o ideal de vida tecnocrático continue a sobreviver. A visão tecnocrática do mundo possui de tal forma o homem, que
ele busca mecanismos que promovam a retroalimentação desta forma de compreensão
da realidade. Assim, toda descoberta
científica passa a ser um meio favorável ao desenvolvimento do “olhar” técnico
do mundo, por exemplo. Por isso, a
devastação da Terra torna-se necessária: ela é fonte de manutenção do modo
técnico de compreender a totalidade do real.
A compreensão técnica do mundo, como dissemos, domina,
ordena e extrai as energias dos entes pertencentes ao real. Ora, o homem é um dos entes pertencentes ao
real. Portanto, até ele será tomado
como “realidade explorável”, como uma das matérias primas mais importantes para
a manutenção da tecnocracia. O homem
passará a ser não só matéria – prima, como também consumidor dos produtos
advindo das indústrias e das empresas.
É ele a peça mais importante no andamento da visão técnica do mundo. Ao produzir e consumir, o homem permeia toda amplitude do âmbito do controle da
técnica e, assim, mantém o funcionamento de todo sistema organizacional
tecnocrático.
Na perspectiva da tecnocracia, os homens aparecem como uma
massa uniforme e desconfigurada. Nesta
ótica, o homem não é um ser singularizado, ele é como a massa é. Ele tem os
mesmos gestos, opiniões, hábitos de leitura que os outros; ele tem o mesmo
padrão de comportamento social (seja ético ou não); ele tem a mesma utopia que
os outros têm. Isto se vê claramente na
mass media contemporânea. Ela é, certamente, o maior instrumento de
massificação e normatização do homem, hoje.
Na massificação, o homem é adestrado, enquadrando-se na máquina tecnocrática
e sendo um agente perpetuador de seu funcionamento. Com isso, rompe-se o esquema moderno bipolar: sujeito e objeto. Com o desenvolvimento da tecnocracia, o real não é mais um
conjunto de objetos que se opõem aos métodos construídos pelo sujeito. Mais que isto: o homem se torna um objeto
nas “mãos” da compreensão tecnocrática do mundo. O homem, neste sentido, já não detém o controle de nada, como
ocorria quando ele era considerado sujeito e o real objeto. Agora, é o modo tecnocrático de ser que
controla o homem, utilizando-o como um alimento favorável à sua
retroalimentação. [11]
Com a elucidação (sintética) destes dois sintomas da
tecnocracia, devastação da terra e massificação dos homens, já temos elementos
suficientes para elaborarmos uma pequena crítica acerca do ideal tecnocrático
em questão. Todo ideal tecnocrático,
como vimos, assenta-se sobre o modo humano de ser que vista tão – somente
controlar o real e extorquir dele sua energia.
Esta visão tem como pressuposto a descoberta do homem enquanto substrato
do real, centro da realidade. Na
descoberta do sujeito humano, como vimos na análise da essência da ciência, o
homem tem a possibilidade de reduzir tudo à sua vontade de dominação, controle
e exploração. É a descoberta do sujeito
que possibilita a gênese do olhar tecnocrático do real e, concomitantemente, o
desenvolvimento dos “sintomas” (mecanismos)
que geram sua retroalimentação.
Na descoberta do sujeito humano (subiectum)
enquanto fundamento do real, há, simultaneamente, a gênese de uma perspectiva preconceituosa: a realidade passa a ser
considerada como tudo aquilo que os métodos
matematizados permitem que ela seja.
Só o que se adequa a tais métodos, é real e verdadeiro. É justamente isto que permite o
desenvolvimento e desdobramento de toda tecnocracia: a identificação do real com aquilo que o sujeito diz que ele (o
real) deve ser. Não permitindo que nada fuja ao controle
objetivamente do sujeito, a tecno–ciência retirará todo mistério da realidade
e, portanto, procurará enquadrar tudo ao seu conceito de realidade. Por isso, buscará mecanismos que viabilizem
o asseguramento do real, possibilitando a exploração do mesmo. Mas será que o fundamento em que se assenta
toda a tecnocracia é, de fato, indubitável?
Certamente não. Dizer que o real
é tudo aquilo que o sujeito diz – através de sua vontade asseguradora e dos
métodos - que deve ser, é puro pré-conceito.
O fundamento em que a tecnocracia se assenta é reducionista e injustificável. Deste fundamento surgem os sintomas que visam tão – somente
alimentá-lo. Todo capitalismo, produção
industrial, desenvolvimento dos meios de comunicação etc, são meios de
perpetuação do regime tecnocrático, que reduz o real à vontade de controle e
asseguramento do sujeito humano. É
deste modo de compreensão da realidade que os sintomas mencionados surgem. Com eles surgem grandes males
contemporâneos: desrespeito à diversidade cultural, política, econômica,
sexual, etc. Só vale o que se adequa às normas e o que pode ser
controlado. Do fundamento da
tecnocracia (redução do real mencionada), surge a automatização da
técnica. Esta se torna “senhor” do homem e de todos os matizes
da cultura. Todo comportamento humano
(religioso, político, etc.) passa a expressar a vontade de controle
(asseguramento) e a intolerância com o que não se adequa a tal visão de mundo. Neste sentido, o homem passa a ser escravo
do senhorio que ele mesmo, outrora, tinha reivindicado para si mesmo (sujeito
moderno). Mais: o homem torna-se um robô nas mãos de um modo
de existência cujo fundamento é injustificável e preconceituoso.
3 – Conclusão
Nossa análise mostrou a tecnocracia como uma agressão ao
homem em sua realização. De fato, a
tecnocracia apresenta-se, no sentido por nós exposto, como agente de alienação
e frustração do homem. Regido pela
tecnocracia o homem nunca atinge o fim último da existência que, como disse
Aristóteles, é a felicidade (eudaimonía). O homem passa a ser um “burro de carga” cuja
única função é trabalhar, qual escravo no período da colonização, para a
manutenção do ideal tecnocrático de organização da existência humana e da
totalidade do real. Qual Sísifo em
confronto com a pedra, o homem tecnicizado está condenado a sempre funcionar
como uma importante peça na engrenagem da máquina tecnocrática. Mas será que a tecno–ciência se reduz a este
aspecto demoníaco?
A perspectiva utilizada por nós para analisar o fenômeno da
tecnocracia foi de cunho ontológico.
Buscamos identificar o ser da tecnocracia, através da análise ontológica
dos fenômenos da técnica e da ciência.
Estes se apresentaram como modos reducionistas de compreensão do
real. Por isso, o importante em nossa
análise é o modo reducionista presente no fundamento da técnica, da ciência e,
conseqüentemente, da tecnocracia. A
redução da vida ao horizonte técnico – científico é o que, de fato, é demoníaco. Logo, os produtos da técnica e da ciência, quando desvinculados
do modo de ser do homem que gera à vida o reducionismo mencionado, não possuem
mal algum. O que fará dos resultados da
técnica e da ciência realidades favoráveis à dignificação e realização do homem
é a superação da tecnocracia que, como vimos, é um modo reducionista do homem
existir que agride o real e escraviza o próprio homem. Portanto, faz-se mister o surgimento de uma
nova compreensão do real que possibilite o homem lidar com os produtos da tecno
– ciência, com a natureza e consigo mesmo de forma não reducionista, não
inquisidora, mas realizadora e dignificadora de seu ser.
[1] Heidegger, M. “Ciência e pensamento do sentido”. IN: Ensaios e conferência. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 39
[2] Idem, p. 40
[3] Heidegger, M. Seminários de Zollikon. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 143
[4] Cf: Heidegger, M. Caminhos da floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1998, pp. 95-120
[5] Boutot, Alain Introdução à filosofia de Heidegger. Portugal: Publicações Europa – América, 1991, p. 91
[6] Heidegger, M. Ciência e pensamento do sentido, op cit p.49
[7] Cf. Michelazzo, José Carlos. “Heidegger e a questão da técnica”. In: Fenomenologia e análise do existir São Paulo: UNESP, 2000, p. 98, nota 4
[8] Estas são as traduções sugeridas por Ernildo Stein e Emmanuel Carneiro Leão, respectivamente.
[9] Heidegger, M. A questão da técnica. In: Escritos e conferências op cit p. 27
[10] Cf. Heidegger, M. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999 p. 71-77
[11] Cf. Michelazzo, op cit p.
105-107
Bibliografia:
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2000
BOUTOT, Alain. Introdução à filosofia de Heidegger. Portugal: Publicações Europa – América,
1991.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
________________ Introdução
à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1999.
________________ Caminhos
da floresta. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbekian, 1998.
_________________ Seminários de Zollikon. Petrópolis: Vozes, 2001
MICHELAZZO, José Carlos Heidegger e a questão da técnica. In: Fenomenologia e Análise do Existir. São Paulo: UNESP, 2000.
Resumo:
O artigo tem por objetivo
construir, através de uma elaboração filosófica, uma crítica ao ideal
tecnocrático, que norteia a compreensão humana do real, desde a gênese da
modernidade, com o surgimento da ciência, da técnica e do conceito de sujeito
humano. Este ideal manifesta - se como fonte de alienação do homem em sua
relação consigo, com os outros e com a natureza, pois ele (ideal) provém de um
modo de ser do homem que desrespeita a totalidade do real, ao reduzi-la aos
seus interesses de controle, dominação e exploração.
Palavras-chaves: Tecnocracia,
ciência e sujeito humano.
(*) Alexandre Marques Cabral é mestrando em Filosofia pela UFRJ/IFCS e professor de Filosofia da Faculdade Redemptoris Mater de Teologia, em Macaé/RJ. (Instituto Católico conveniado com a Universidade Santa Úrsula).