PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS E INTERPRETAÇÃO
CONSTITUCIONAL
(Análise meta-jurídica dos fundamentos
axiológicos do ordenamento constitucional)
Augusto Zimmermann*
1 – Considerações iniciais
Os princípios
constitucionais não são apenas relevantes à questão da mera legalidade formal,
mas igualmente referentes à criação de uma concepção mais propriamente axiológica
do direito, em termos da objetivação de certos valores sócio-políticos subsistentes
quando da formalização jurídica do direito constitucional pelo poder constituinte.
Não obstante à existência de valores legitimadores de um constitucionalismo
moderno e democrático, nós apontaríamos, do mesmo modo, para a necessidade
de uma certa avaliação sociológica dos princípios constitucionais, no tocante
à intrínseca conexão destes com os chamados elementos
meta-juridicos da nação.
Por
isso, nós almejamos estabelecer uma concepção teórica muito mais ampla do
que a meramente jurídica, por intermédio da qual os princípios fundamentais
esculpidos numa constituição escrita representariam determinados valores transcendentais
ao ordenamento jurídico-positivo do Estado. Em outras palavras, nós podemos
compreender que estes princípios se apresentariam como elementos meta-jurídicos
e reguladores do direito positivo, mas que não precisam estar diretamente
configurados pela constituição escrita, muito embora essencialmente compreendidos
como axiológicos em relação ao alcance da “eticidade mínima” (Savigny) desta
mesma constituição.
Para
resumir, todo e qualquer ordenamento constitucional revela, implícita e explicitamente,
a existência de determinados princípios observáveis como fundamentais, e que,
em virtude deste fato, devem ser compreendidos como fatores modelantes de
uma certa concepção valorativa do constitucionalismo. Por meio destes princípios,
constituições escritas são reconhecidas como uma espécie de moralidade
jurídica.[i] E, além disso, tais princípios
podem ser observados como regulatórios da criação de normas legislativas e,
em sentido amplo, do processo geral de criação do direito positivo.[ii]
Estes princípios não precisariam de sequer estar expressamente relacionados
ao texto constitucional, mas devem se apresentar como ponderação moral do
ordenamento jurídico, em termos de se configurar em requisitos de eticidade
básica relacionados à legitimação sócio-política da constituição.
2 - A dimensão valorativa dos princípios constitucionais
Inicialmente,
nós devemos considerar a existência de necessária distinção entre princípios
constitucionais e princípios meramente legais. Em tal caso, princípios legais
são os dedutíveis do sistema legal com um todo, conquanto os princípios constitucionais
se relacionariam mais particularmente com o direito constitucional e, mais
especificamente, ficam voltados à sistematização de questões fundamentais
do Estado. Por conta disso, os princípios constitucionais demandariam reflexão
jurídica mais complexa, no tocante à interpretação constitucional. A influência
destes princípios, ademais, se deve à peculiar circunstância destes se refletirem
em procedimentos de interpretação da Lei Fundamental e, deste modo, estando
responsáveis pela estabilização do texto constitucional. Na realidade, tais
princípios representam um subgrupo em relação ao conjunto geral de elementos
axiológicos do direito, pois que se prestariam à revelação de valores fundamentais
dedutíveis da própria constituição escrita. Na medida em que orientam as regras
jurídicas materiais, princípios constitucionais configuram-se em atrativos
valores jurídicos voltados para a fixação de um padrão de eticidade para esta
constituição.[iii]
Se princípios
constitucionais são valores intrínsecos a todo e qualquer ordenamento constitucional,
provendo um sentido valorativo para o mesmo, modernas democracias devem enfrentar
problemas preliminares relativos aos direitos fundamentais. Nestes termos,
alguns princípios se relacionariam com o Estado de Direito; em virtude desta
expressão denotar um tipo de legalidade demandada por sociedades abertas e
democráticas. Por conseguinte, o constitucionalismo democrático necessita
de definir um esquema jurídico politicamente protetor dos direitos da pessoa
humana. E, assim sendo, a constituição escrita adquire um caráter de unidade
moral do discurso político, no sentido de que, conforme atestaria Richard
Kay, a polis de per si passa a adquirir
um standard moral que não pode ser considerado independente daquele possuído
pelos membros da comunidade política.[iv]
Tendo-se
por conta os fatores acima expostos, constituições democráticas objetivariam
a limitação de potencialidades opressivas do poder político, estabelecendo-se
certos princípios gerais que são impositivos em relação à autoridade governamental,
e que, portanto, ficam devidamente localizados acima daquela.[v] A perspectiva do constitucionalismo
escrito envolveria específicos argumentos relacionados à absoluta conexão
entre a concepção liberal de legalidade e o desenvolvimento de uma hierarquia
normativa restritiva em termos de contenção jurídica da volição governamental.
No mais, o poder constituinte originário conferiria um padrão legal de legitimidade
necessária para o controle político do poder. Aliás, um constitucionalismo
democrático demandaria que o poder constituído estivesse exercido em conformidade
com certos princípios, para que as autoridades constituídas exerçam poder
de acordo com as expectativas básicas reveladas pela Lei Fundamental. Isso
objetaria a arbitrariedade política, desenvolvendo-se um Estado democrático
que também é de Direito.
Nos
Estados Unidos, por exemplo, certos princípios como os da separação de poderes
(horizontal e vertical) e o do autogoverno, compõem aquilo que se convencionou
denominar de dimensão básica do constitucionalismo
material. Relativamente à especial proteção de princípios constitucionais,
que poderão ou não estar encontrados no corpo da Lei Fundamental, verifica-se
o reconhecimento de valores explícitos ou implícitos em relação ao conteúdo
formal da constituição. Por isso, se as cortes judiciais daquele país também
produzem um determinado tipo de jurisdição constitucional, denominado de controle
incidental de constitucionalidade, a Suprema Corte dos Estados Unidos tem
a capacidade de recusar a aplicação de normas infraconstitucionais razoavelmente
consideradas como incompatíveis com os princípios gerais daquela Constituição.
Trata-se, por conseguinte, do exercício de função adjudicatória através da
qual legislação e atos jurídicos emanados por autoridades constituídas, federais
ou estaduais, podem ser considerados como nulos em virtude do pressuposto
básico da supremacia de valores e regras constitucionais.
Dentre
as constituições escritas, o problema básico de identificação dos princípios
constitucionais torna-se menos tormentoso de ser equacionado, quando comparamos
esta problemática com a existente em países desprovidos de constituição escrita.
No constitucionalismo escrito, um documento fundamental e ao mesmo tempo básico
manifesta uma especifica seleção de regras e princípios constitucionais. Nestes
casos, observa-se uma mais nítida diferenciação entre regras e princípios,
sendo que os últimos estão muitas vezes revelados no próprio texto da constituição.
Em nosso
país, a Constituição Federal revela a natureza tridimensional do pacto federativo,
consubstanciando todo um complexo sistema de distribuição, e mesmo de limitação,
vertical de poderes políticos autônomos. Nestes casos, as cortes judiciárias
ficam encarregadas de prover algum tipo de controle de constitucionalidade
das normas jurídicas. Em outros países, poderá até mesmo existir um tribunal
especificamente encarregado de proferir decisões abstratas de natureza constitucional,
como é o caso do Bunderverfassungsgericht na Alemanha. Este tribunal constitucional
federal, diga-se de passagem, foi criado com a missão básica de proteger não
apenas o pacto federativo germânico, mas também a generalidade dos princípios
fundamentais, explícitos ou não, porém deduzíveis da Lei Fundamental de 1949.
Dentre os explicitamente contidos no texto constitucional alemão, podemos
mencionar os princípios da dignidade humana, da subsidiaridade estatal, e
do Estado Social de Direito.
Em nosso
caso, a Constituição Federal de 1988 revelou-nos expressamente os princípios
constitucionais da República: a perpetuidade do pacto federativo; a concepção
de Estado democrático de Direito; o princípio republicano da soberania popular;
a postulação da dignidade da pessoa humana; a defesa da livre-iniciativa;
e, last but not least, o princípio
do pluralismo político. Contudo, a manifestação expressa de princípios constitucionais,
como já vimos, não se configura em privilégio nosso. Na França, por exemplo,
os princípios constitucionais também estão expressamente revelados: a soberania
nacional e a defesa dos direitos humanos, assim como definida pela Declaração
Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.
Na realidade,
alguns juristas, em particular os juristas anglo-saxões, alegariam que os
princípios constitucionais não podem ser exatamente efetivados por força de
enunciação pela constituição escrita, mas alicerçados dentro de uma determinada
atmosfera social e de tradição jurídica que se permitiria até mesmo à revogação
tácita de aspirações mais utópicas, ou irrealistas, do legislador constituinte.
Neste caso, T.R.S. Allan veio a ponderar que todo e qualquer princípio constitucional
não possui validade prática alguma, salvo se conectado a uma dimensão valorativa
pela qual este mesmo princípio pode verdadeiramente vir a ser efetivado em
sociedade. Dentro de tal ótica, um determinado princípio constitucional deve
ser primeiramente observado de acordo com a sua força intrínseca, mas que
é fato tendente a uma certa variação em relação aos fatos e circunstâncias
sociais, políticas, e até mesmo econômicas da nação.[vi]
Por
outro lado, a observação de T.R.S. Allan baseia-se em interpretação de princípios
constitucionais ingleses, motivo pelo qual ficaria associada à perspectiva
jurisprudencial da common law. Ainda
assim, as lições deste importante jurista britânico servem como uma advertência
sobre os perigos da positivação de princípios incompatíveis com os valores
básicos de uma sociedade, para a qual, afinal de contas, tais princípios pretendem
se concretizar. Em muitos países, princípios constitucionais estão positivados
sob uma realidade social bastante instável, bem como fundados em certo momento
de ruptura institucional com um passado recente que se pretenderia definitivamente
revogar. Este tipo de rompimento com o passado foi exatamente o que ocorreu
na Alemanha, motivo pelo qual a sua Lei Fundamental de 1949 consagra princípios
rompedores com a ideologia nacional-socialista.
T.R.S.
Allan, portanto, expressa-se em nome de uma realidade sui generis, que é a do Reino Unido, aonde poderemos encontrar um
largo espaço para as discussões sociológicas, e mesmo filosóficas, sobre a
teoria constitucional. Isso ocorre, basicamente, porque os juristas britânicos
não estão limitados às especificidades formais, e mesmo principiológicas,
de uma constituição escrita. Assim sendo, eles podem discutir os temas do
constitucionalismo histórico em termos mais abstratos, tais como estabelecendo
análises a respeito do valor simbólico do
rule of law, bem como o significado do conceito de soberania parlamentar.
Quanto ao último, Sir Ivor Jennings compreendeu que a sua dimensão axiológica
se observaria não apenas exclusivamente em termos de um ‘direito fundamental’
do Parlamento soberano, mas também em relação ao restante das previsões constitucionais
derivadas tanto de processo legislativo quanto da própria produção jurisprudencial
no Reino Unido.[vii]
Obviamente, uma parte considerável dos princípios constitucionais britânicos
é tão antiga que se apresentaria até mesmo como irrevogável pelo Parlamento.
São aparentemente irrevogáveis, neste sentido, aqueles princípios provenientes
da Magna Charta de 1215 (julgamento por tribunal de júri popular, irretroatividade
da pena, devido processo legal, representação legislativa, não taxação sem
representação, etc.). Afinal, em momentos de crise constitucional o povo britânico
vem reconhecendo, com bastante veemência por sinal, todos os seus mais importantes
princípios e direitos constitucionais. Aliás, um certo rei inglês já perdeu
a sua cabeça por conta disso. Daí nos lembrarmos das palavras de Sir Edward
Creasy: “Se a letra da constituição
já é de per si merecedora de toda a nossa admiração, o seu verdadeiro espírito
nos é merecedor de admiração ainda maior”.[viii]
3 - Princípios constitucionais e interpretação constitucional
Podemos
analogamente avaliar que os princípios fundamentais são como luzes irradiantes para a interpretação
constitucional. Afinal, eles provêm o interprete com elementos axiológicos
para uma razoável interpretação e, assim sendo, desenvolvem uma lógica sistêmica
ao ordenamento constitucional. Indiferentemente ao grau de abstração revelada
pelo ordenamento constitucional, cada princípio oferece uma capacidade de
enquadramento valorativo de normas jurídicas do ordenamento constitucional,
servindo a adequação de regras (ou normas jurídicas) aos casos concretos.
Deste modo, a interpretação constitucional encontra-se operacionalizada por
princípios que então procedem à justificação valorativa das regras do direito
positivo.[ix]
Por
isso, os princípios constitucionais agiriam como ‘agentes catalisadores’ do
ordenamento constitucional, definindo estratégias razoáveis de interpretação.
Pois que cada princípio emanaria uma dose de legitimação à constituição, fazendo-se
desta última muito mais do que um simples aglomerado de regras jurídicas desconexas
umas com as outras. Antes de tudo, a desconsideração dos princípios constitucionais
destruiria à própria integridade do corpo constitucional, em função da imperativa
necessidade de reconhecimento de uma certa conexão elementar entre princípios
e a própria normatividade do texto constitucional.
Os princípios
constitucionais, portanto, demandam análise direcionada à legitimidade de
regras, ou normas jurídicas. Estes princípios não se identificam apenas com
um único caso concreto, mas com uma percepção mais genérica do ordenamento
jurídico. Como podemos deduzir, os princípios desfrutam de posição hierárquica
superior em relação às normas jurídicas, haja à vista representarem guiding-forces,
ou valores coordenativos, da totalidade do ordenamento jurídico-constitucional.
Neste ponto, se juízes procedem a julgamentos em conformidade com elementos
principiológicos da constituição, igualmente o cidadão comum possui o mesmo
direito de evocar os princípios constitucionais.
No referente
à relação entre princípios constitucionais e prestação jurisdicional, devemos
considerar que as cortes judiciais estão obrigadas a reconhecer a superioridade
dos princípios constitucionais. Ainda que sob a alegação de princípio implícito,
os juízes não podem abdicar de julgar os casos concretos trazidos diante de
seus tribunais.[x]
Além da simples justificação de princípios, cortes de justiça necessitam de
harmonizar os princípios entendidos como fundamentais, no que não se configura
em tarefa fácil, contudo essencial à compreensão do texto constitucional como
muito além de simples repertório de regras isoladas.
Se diferenciarmos
os princípios constitucionais de simples regras (ou normas) jurídicas, então
concluiremos que estes últimos estão a prescrever um relacionamento do tipo
‘tudo-ou-nada’ em relação ao caso concreto. As regras agem para a adequação
da realidade material com o sentido formal da previsão jurídica. Em outras
palavras, elas objetivam a abstração legal de um determinado fato submetido
à regra formalmente prescrita. Em caso de princípios, estes se aplicariam
às circunstâncias previstas por uma miríade de situações jurídicas, suscitando
uma abordagem valorativa no tocante a aplicação das regras jurídicas. Com
isso, Ronald Dworkin considera haver uma distinção lógica entre regras jurídicas
e princípios legais, particularmente no tocante ao fato de que os princípios
se apresentariam em razão argüitiva maior; ou seja, em correlação com a existência
de elementos axiológicos conferentes de uma certa dimensão de ‘peso’ (weight)
e importância para a interpretação. No caso de normas, se os fatos estão estipulados
por uma norma especifica, então a regra nela contida tornar-se-ia válida.
Isso ocorre quando o caso concreto encontra a sua resposta mediante a própria
verificação intrínseca da regra jurídica.[xi]
Para
concluir, deve-se considerar que a perspectiva básica dos princípios constitucionais
não pode ser confundida com a previsão constitucional de normas programáticas.
Normas programáticas, e a nossa Constituição está repleta deste tipo de normas,
apresentam-se como aspiração política
do legislador constituinte. Aliás, constituições do tipo dirigente são as
que concebem um maior número de normas programáticas, demandantes de legislação
complementar por parte dos poderes constituídos. Em contraste com os princípios
constitucionais, dispositivos programáticos possuem um objetivo político mais
específico, mas não fundamental. As normas programáticas definem alguma forma
de comando legal para o poder constituído, requerendo-se deste a concretização
de previsões não auto-aplicáveis no texto constitucional.
4 - A problemática dos conflitos entre os princípios
constitucionais
Tendo-se
em conta o simples fato de que constituições escritas requerem algum tipo
de configuração lógica, podemos considerar que o ordenamento constitucional
necessita de estar dotado de algum tipo de razoabilidade prática. Obviamente,
isso demandaria a necessária harmonização não apenas de regras jurídico-constitucionais,
mas, para ainda mais adiante, o estabelecimento de mútua convivência entre
os princípios da constituição.
Como
haveríamos de esperar, os próprios princípios constitucionais poderão, em
determinado caso concreto, entrar em conflito. Isso, contudo, não significa
necessariamente a prevalência de um certo princípio sobre o outro, ou, do
mesmo modo, que alguns deles venham a ser considerados como inconstitucionais.
Neste sentido, Otto Bachof chegou a defender que certas previsões do legislador
constituinte originário poderiam ser interpretadas como inconstitucionais,
se por algum acaso estas entrassem em contradição com os valores transcendentais,
ou materialmente constitucionais, da constituição.[xii] Contudo, até mesmo
na própria Alemanha, terra do jurista Bachoff, doutrina e jurisprudência majoritária
adotam uma interpretação mais positivista das normas constitucionais, de modo
a não se admitir a inconstitucionalidade de normas apenas formalmente constitucionais.
O que se permite, tendo-se em vista os horrores do comunismo e do nazi-fascismo,
e a Alemanha especificamente padeceu sob ambos os regimes totalitários, é
o reconhecimento de que todas as normas jurídicas devem receber interpretação
orientada à máxima proteção dos direitos individuais.
Em termos
práticos, John Rawls defendeu a projeção de uma suposta ordem léxica de interpretação
constitucional, por meio da qual nós haveríamos de obter uma mais apropriada
esfera interpretativa da constituição. Trata-se, em simples termos, de se
afirmar uma hierarquia de princípios na constituição, de maneira que um princípio
básico se faz primeiramente presente em relação ao procedimento de interpretação
do princípio subseqüente, correlacionado e inferior ao primeiro. Isso, aliás,
poderia ser enquadrado como uma condição básica para a aplicação daquele princípio
subseqüente, tendo-se em vista a solução mais adequada do caso concreto. Haveria
ainda, de acordo com John Ralws, uma seqüência lógica, ou ordenada, de princípios
que se prestaria à ponderação razoável de valores, segundo a qual um princípio
maior adquire peso absoluto em relação ao seu princípio menor, que se encontra
derivado daquele anteriormente revelado.[xiii]
Ocorre
que princípios são muitas vezes diferidos de normas em virtude da chamada
‘dimensão de peso’ (dimension of weight).
Os valores contidos em princípios ficariam aptos a alcançar uma interpretação
razoável para os casos concretos, mas necessitando de serem previamente ponderados.
Qualquer tipo de colisão entre os princípios constitucionais, neste sentido,
demandaria a complexa avaliação sobre os valores intrinsecamente existentes
nestes mesmos princípios, de modo a ficarem estabelecidos os limites específicos
da validade jurídica, segundo a qual o processo interpretativo procederá a
um certo ajustamento de princípios.
Por meio deste tipo de ajustamento, o intérprete da constituição não haverá
necessariamente de se recusar a reconhecer um determinado princípio qualquer,
mas revelar uma capacidade de adaptação em relação às diversas possibilidades
interpretativas do caso concreto.
Na realidade,
a própria lógica sistêmica da constituição deveria ser ponderada pelo intérprete,
na medida em que os princípios são recebedores de mandatos de otimização que se correlacionam
à valoração intrínseca dos mesmos.[xiv]
Isso demonstra uma certa existência pluralista dos métodos de interpretação
constitucional, aonde a adoção de determinados princípios dependerá de circunstâncias
não apenas formais, mas também materiais uma vez que relacionadas ao ‘mundo
da vida’.
Por
outro lado, a aplicação de vários princípios ao caso concreto também implica
suscitar um problema de intensidade,
que é resultante de conflitos entre princípios a serem resolvidos mediante
a abordagem pragmática do intérprete constitucional. Neste particular, Konrad
Hesse sustentaria que os princípios constitucionais demandariam muito mais
do que uma simples interpretação lógica, mas também uma interpretação que,
ao menos em termos mais propriamente deontológicos, ficaria orientada à própria
concretização de aspirações sociais pela constituição escrita.[xv] Konrad Hesse concordaria
com a visão de Peter Häberle, mediante a qual o ordenamento constitucional
de sociedades democráticas deveria procurar estabelecer uma dimensão amplamente
pluralista da interpretação constitucional, de maneira que os princípios não
venham a obstruir um processo gradativo de mutação constitucional.
Hesse
e Härbele concordariam com a suposição básica de que constituições escritas
não deveriam possuir um texto excessivamente analítico, porque toda a Lei
Fundamental deve ser ‘democraticamente aberta’ ao desenvolvimento da interpretação
constitucional. No mais, constituições muito analíticas, como as do Brasil,
Portugal e Espanha, poderiam ‘congelar’ a realidade constitucional, obstruindo-se
todo um importante processo criativo, e mesmo adaptativo, de interpretação
constitucional. Conforme observa Daniel Sarmento a respeito do conceito de
constituição aberta apresentada por Häberle, a Lei Fundamental de uma sociedade
democrática e pluralista não deve[ria]
engessar a sociedade, mas antes fomentar o embate entre idéias e projetos
divergentes, convertendo-se com isso em agente catalisador do ideal democrático
e pluralista.[xvi]
Na realidade,
o processo interpretativo de uma constituição se desenvolve particularmente
em relação aos chamados hard cases,
que são aqueles ‘casos difíceis’ de difícil solução aonde os princípios constitucionais
entrariam em conflito. Tais casos são, por conta disso, de alta complexidade,
porém tendentes ao aprimoramento do sistema constitucional. Os casos difíceis
são paradigmáticos no fomentar de debates constitucionais, através deles vindo-se
a muito raramente a existir uma única resposta em relação ao caso concreto.[xvii]
Em tais casos, o magistrado encontra-se numa difícil situação de haver de
considerar toda uma variedade de fatores, motivo pela qual este determinado
conflito jurídico poderá suscitar até mesmo o redirecionamento da realidade
constitucional.[xviii]
5 - Considerações finais
Como
vimos, os princípios constitucionais representam elementos valorativos, ou
axiológicos, do ordenamento constitucional. Tais princípios não precisam estar
diretamente revelados na constituição escrita, muito embora devam ficar identificados
com algum tipo de aspiração nacional.[xix] Se estes princípios
expressam valores constitucionais, eles carregam consigo mesmos toda uma sorte
de expectativas sociais, fazendo-se a revelação do constitucionalismo histórico.[xx]
Os princípios
podem não estar revelados pela Constituição escrita, mas devem ao menos estar
implícitos na mesma, assegurando a complementação da sistemática apresentada
pelo ordenamento constitucional. Em certos momentos, os princípios constitucionais
arriscam-se a produzir delicados conflitos de interpretação, demandando uma
razoável ponderação de valores. Nestes casos, determinado princípio constitucional
poderá assumir prevalência em relação a um outro de igual natureza axiológica,
muito embora a ponderação de princípios dependa não apenas da realidade concretamente
apresentada, mas também do próprio grau de razoabilidade no approaching
interpretativo.
Para
concluir, os princípios constitucionais não são relevantes apenas à questão
do direito positivo, mas também no sentido da concepção sociológica de valores
subsistentes ao ordenamento jurídico-constitucional. Não obstante a existência
de determinados elementos legitimadores do constitucionalismo democrático,
que se encontrariam logicamente correlacionados à questão do Estado de Direito
e da democracia representativa, haveríamos de igualmente reconhecer uma certa
relativização destes princípios, dependentes de especifico ambiente nacional.
Isso não significa, por outro lado, que abdiquemos de defender um determinado
tipo de interpretação mais compromissado com a natureza garantiste do constitucionalismo democrático, que então se encontraria
primeiramente voltado à fundamental garantia dos direitos inalienáveis da
pessoa humana.
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[i] Cf.: Fuller, Lon;
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[ii] Kelsen, Hans;
General Theory of Law and State, p.124.
[iii] Em sentido similar,
Larry Alexander and Emily Serwin fazem a seguinte observacao: Legal principles must fit with existing legal
materials – the rules – but they must be the most morally atractive principles
that fit and thus must draw from morality as well (The Rules of Rules,
Durham: Duke University Press, pp.178-179).
[iv] “American Constitutionalism”,
in Constitutionalism: Philosophical
Foundations, p.19.
[v] Cf. Hayek. Friederich
A. von; The Constitution of Liberty,
p178.
[vi] Trevor S. Allan
avalia a questao da seguinte maneira: A
principle has the attribute of ‘weight’: it argues in favour of a judgment
on particular facts, but need not demand a certain result. It may be overridden
or counterbalanced by conflicting principles, or displaced by operation
of a legal rule. Above all, its weight (or ‘force’) will vary according
to all the circunstances of a particular case (Law, Liberty and Justice,
p.93).
[vii] The Law and the Constitution, p.65.
[viii] The Rise and Progress of the English Constitution, p.5. No original: If letter
of the Constitution deserves admiration, still more does its spirit.
[ix] Cf.: Sarmento, Daniel; A Ponderacao de Interesses na Constituicao Federal, p.43.
[x] Stephen Donaghe
identifica a questao nos seguintes termos: Once
its clear that there is something
implied the Court must decide exactly what is implied,
for it cannot simply wash its hands of casas that comes before it (The Clamour of
Silent Constitutional Principles, p.171).
[xi] Ronald Dworkin
assim explicita-nos a questao sobre as condicoes de aplicabilidade de normas
juridicas: If the facts a rule stipulates
are given, then either the rule is valid, in which case the answer it supplies
must be accepted, or it is not, in which case it contributes nothing to
the decision (Taking Rights Seriously, p.24).
[xii] Cf.: Bachoff, Otto; Normas Constitucionais Inconstitucionais?
[xiii] Palavras de John
Rawls: This is an order which requires
us to satisfy the first principle in the ordering before we can move on
the second, the second before we consider the third, and so on. A principle
does not come into play until those previous to it are either fully met
or do not apply. A serial ordering avoids, then, having to balance principles
at all; those earlier in the ordering have an absolute weight, so to speak,
which the respect to later ones, and hold without expation (A Theory
of Justice, p.48).
[xiv] Cf.: Alexy, Robert; Teoria de los Derechos Fundamentales, p.86.
[xv] Cf.: Hesse, Konrad; Escritos de Derecho Constitutional.
[xvi] “Os Princípios Constitucionais e a Ponderação de
Bens”. Texto do livro Teoria dos Direitos
Fundamentais, p.65.
[xvii] Levando-se em consideração a dificuldade de resolução dos casos difíceis, Ronald Dworkin lançou mão até mesmo de um argumento contra-fático, segundo o qual um suposto ”Juiz-Hércules” estaria dotado de habilidades especiais para a solução ideal destes casos. Sobre a questão, Cláudio Pereira de Souza Neto, em importante livro sobre a matéria, faz as seguintes ponderações: Dada a magnitude da tarefa, – de se julgar os casos difíceis – Dworkin lançará mão de uma construção contra-fática que invoca um juiz Hércules, um juiz onisciente, dotado de habilidades ideais para conhecer todos os princípios e operar a ligação entre eles, possuindo uma visão completa do conjunto do direito vigente. È a figura de um juiz ideal que permite a Dworkin sustentar a tese de que, mesmo para os casos difíceis, existe apenas uma resposta (decisão) correta. – Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática, p.235.
[xviii] Cf.: Rubenfeld,
Jed; ‘Legitimacy and Interpretation’. Texto do livro Constitutionalism: Philosophical Foundations, p.226.
[xix] Cf.: Peixinho, Manoel Messias; A Interpretacao da Constituicao e os Princípios Fundamentais, pp.112-113.
[xx] Cf.: Rothemburg, Claudius; Princípios Constitucionais, p.65.
Abstract:
In this present
article, we have produced an analysis concerning to the so-called fundamental
principles of constitutional law. It is presented in accordance to a renewed
perspective, which we should consider as connected with matters on legal
philosophy, political theory and sociology of law. Furthermore, these principles
are observed not only in relation to the necessity of legal interpretation,
but also as a matter associated to the morality of law (Lon Fuller). What
is more, there are some important distinctions, such as the following ones:
the positivation of constitutional principles and the meta-legal reality
of fundamental principles; written principles and implied principles; legal
rules and principles of law; social values and legal principles; material
constitutional law and formal constitutional law.
Keywords: constitutional
law; legal philosophy; sociology of law; constitutional principles; legal
interpretation.
Resumo:
Neste artigo, nós analisamos os princípios constitucionais
fundamentais dentro de uma ótica renovada, a que julgo ser ao mesmo tempo
jus-filosófica, de teoria política e sociológica do Direito. Os princípios
constitucionais, deste modo, estão abordados não apenas segundo o enfoque
tradicionalista da interpretação constitucional, mas tendo-se igualmente
em vista aquilo que Lon Fuller denominaria de moralidade do Direito. Mas há também outras distinções importantes,
tais como as existentes entre: positivação de princípios constitucionais
e realidade meta-jurídica destes princípios; princípios explícitos e princípios
implícitos; normas (ou regras) jurídicas e princípios de direito; valores
sociais e princípios constitucionais; normas materialmente constitucionais
e normas formalmente constitucionais.
Palavras-chave: direito constitucional; sociologia
juridica; filosofia do direito; princípios constitucionais fundamentais;
interpretação constitucional.
* AUGUSTO ZIMMERMANN é pesquisador do PhD em Direito por Monash University – Faculty of Law (Austrália). Além disso, é Bacharel em Direito e Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Advogado, foi professor do Mestrado em Direito do NPPG/Bennett e do curso de graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá. Dentre outras funções, ocupou cargos como o de Diretor de Assuntos Políticos do PNBE-Rio (Pensamento Nacional das Bases Empresariais), Diretor da APG-PUC (Associação de Pós-Graduandos da PUC-Rio) e assessor jurídico da Câmara Comunitária de São Cristóvão. Atualmente é membro dos conselhos editorias da Editora Lumen Juris e da Revista Achegas de Ciência Política. Por fim, já publicou diversos trabalhos no Brasil e no exterior, e é autor dos livros “Teoria Geral do Federalismo Democrático” e “Curso de Direito Constitucional”, publicados pela Editora Lumen Juris.