UM
TOCQUEVILLE AVANT LA LETTRE:
Hipólito
da Costa como founding father do americanismo
Paulo Roberto
de Almeida
O francês Alexis de Tocqueville é geralmente considerado
como um dos founding fathers da moderna ciência política, assim como
dessa vertente especial das ciências sociais (que usualmente adota o método
comparativo, mesmo se de forma inconsciente), voltada para o estudo das
formações nacionais, no seu caso o “americanismo”. Com efeito, seu De la
démocratie en Amérique tornou-se um clássico praticamente desde a
publicação de sua primeira parte, poucos anos depois de sua viagem exploratória
ao novo mundo, em 1831-32, a ponto de suscitar as maiores expectativas quanto à
divulgação da segunda parte, vários anos depois. Esse trabalho sobre os fundamentos
sociais da igualdade na jovem nação americana granjeou-lhe uma reputação de
primeira grandeza, não apenas em sua França natal (onde ele logo galgou os
degraus da Academia), mas igualmente nos países anglo-saxônicos.
Poucos sabem, no entanto, que uma geração antes de
Tocqueville, Hipólito José da Costa, muito antes de se estabelecer na
Inglaterra, fugindo da Inquisição portuguesa, e de ali editar seu Correio
Braziliense, viajou pela costa leste dos Estados Unidos, tendo deixado um
pouco conhecido Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799,
encontrado inédito na Biblioteca de Évora por Alceu Amoroso Lima e publicado
pela Academia Brasileira de Letras em 1955. Não se tratou, propriamente, de um
estudo de especialista, uma vez que o jovem (24 anos) português nascido na
Colônia do Sacramento, criado no território do Rio Grande do Sul e formado em
Coimbra, viajou a serviço do cortesão dom Rodrigo de Souza Coutinho, Conde
de Linhares, futuro ministro dos negócios estrangeiros, tendo produzido um
relatório específico e detalhado sobre suas observações agrícolas, industriais
e botânicas nos Estados Unidos.
Tratou-se, contudo, da primeira obra sobre os Estados
Unidos escrita do ponto de vista de um observador do Brasil, preocupado em
trazer para a colônia lusitana da América as espécies vegetais e animais e
aqueles melhoramentos técnicos que julgava poder contribuírem para o
engrandecimento de sua pátria de fato. Não destinado à publicação, mas
sumamente adaptado ao formato do ensaismo bem informado, seu Diário
poderia ser comparado, sem nenhum deslustro, a uma espécie de Baedecker
de alto vôo, um ensaio intelectual que ainda hoje surpreende pela pertinência e
acuidade das observações sociológicas, bem como pela atualidade dos seus
julgamentos certeiros, a começar pelos hábitos e características da população,
pela proliferação de sua “indústria religiosa” e por uma certa “rusticidade” de
sua classe dirigente.
Recém formado em direito por Coimbra em meados de
1798, Hipólito José da Costa recebe do conde de Linhares, menos de três meses
depois, o encargo de fazer no território da América do Norte (Estados Unidos e
México) o que se poderia designar, na moderna linguagem dos negócios, de
comissão de prospecção econômica. Grande estadista português da transição para o
século XIX, dom Rodrigo de Souza Coutinho ostentava uma concepção
essencialmente econômica da administração pública, preocupando-se com a
agricultura, o comércio, a gestão financeira e as novas práticas industriais.
Foi provavelmente Linhares quem inculcou em Hipólito o gosto pelas questões
econômicas, inclinação que ele manteve durante toda a sua vida, aliás revelada
de maneira cabal nas páginas do seu “armazém literário”. Com efeito, a rubrica
“commercio” (geralmente acompanhada das “artes”) vinha logo após a importante
seção inaugural dedicada à política. Tão pronunciada era a tendência de
Hipólito pelo estudo das questões econômicas que, em 1819, já no auge de sua
carreira jornalística, ele protestava solenemente contra a velha proibição dos
estudos de economia política na Universidade de Coimbra (“Os estudos de
Economia Política são proibidos na Universidade de Coimbra e não sabemos que
haja no Reino escolas em que se aprendam”; cf. Correio Braziliense,
janeiro de 1819, vol. XXII, p. 84, citado por Mecenas Dourado, Hipólito da
Costa e o “Correio Brasiliense”, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército
Editora, 1957, tomo I, p. 44).
Na verdade, a missão nos Estados Unidos comportava
um caráter sobretudo técnico, mais do que de prospecção de mercados ou de incentivo
ao comércio. Tratava-se de levantar os recursos naturais e apreciar os
conhecimentos científicos que a jovem nação independente da América do Norte
mobilizava em sua marcha ascensional para o progresso econômico. Em outros
termos, o encargo comportava também aspectos que hoje em dia poderiam ser
equiparados à “espionagem industrial ou tecnológica”, numa etapa histórica na
qual os direitos de propriedade intelectual não desfrutavam da mesma proteção
absoluta como na atualidade. O futuro “pai da imprensa” brasileira estava
amplamente habilitado para fazê-lo, uma vez que, ademais dos conhecimentos
práticos aprendidos em sua vida de fazenda no Rio Grande, ele tinha sido
formado em outras matérias que simplesmente filosofia e direito. Os estudos de
filosofia em Coimbra comportavam, precisamente, o ensino de botânica,
agricultura, zoologia, mineralogia, física, química e mineralogia, artes e
disciplinas nas quais também se destacava o futuro “pai da independência”, José
Bonifácio, freqüentador das academias européias.
Quando Hipólito partiu para os Estados Unidos e o
México, no final de 1798, ele era, portanto, nada mais do que um recém formado,
alguém que de certa forma completou seu “mestrado” numa missão de trabalho,
mais do que na forma de estudos suplementares, virtualmente inexistentes aliás.
As instruções de Linhares eram no sentido de se obter informações as mais
detalhadas possíveis sobre todos os progressos havidos na América do Norte nos
terrenos das artes práticas, das culturas agrícolas e dos ofícios ligados ao
fabrico e manufatura de bens em geral, complementando a missão pelo encargo de
recolher as espécimes e variedades de plantas e cultivos que se pudessem
aproveitar em Portugal e na colônia brasileira. Nos Estados Unidos atenção
especial deveria ser dada ao cultivo do tabaco, então concentrado em Maryland e
na Virgínia, ao passo que no México, ademais de observar as minas de ouro e
prata, a instrução essencial era a de lograr subtrair o inseto e a planta da
cochinilha, iludindo a vigilância rigorosa das alfândegas espanholas. De tudo,
Hipólito deveria mandar relatórios circunstanciados, o que ele obviamente fez
de maneira rigorosa, ao despachar notícias teóricas e comentários práticos
sobre tudo o que viu e ouviu em sua longa estada naquelas partes, nos anos
finais do século XVIII.
Nos Estados Unidos, Hipólito teve de, algumas
vezes, fazer-se de diplomata, mesmo sem autorização para tanto ou diploma
legal, por motivo da ausência do representante português, ministro Cipriano
Ribeiro Freire. Mais importante do que esse exercício episódico de diplomacia,
de fato mais bem em encargos consulares, foi a provável adesão de Hipólito,
nessa estada, à maçonaria, possivelmente mais relevante na determinação de seu
futuro destino político do que a missão de “espionagem industrial” pela qual
iniciava sua vida profissional. Em todo caso, sua prospecção técnico-científica
na América do Norte poderia ser também aproximada de uma missão de diplomacia
econômica, não no sentido negocial, mas no de uma “embaixada” voltada para a
informação a mais ampla possível sobre as capacidades naturais e os atributos
humanos de uma potência amiga, como forma de habilitar a sua pátria (e a sua
terra de formação) a competirem em melhores condições no grande jogo econômico
das indústrias e do comércio que Linhares adivinha formavam a base da potência
das nações.
Nessa missão Hipólito conheceu artesãos, cientistas
e agricultores, ademais do futuro, Thomas Jefferson, e do então presidente dos
Estados Unidos, John Adams, cuja informalidade e falta de protocolo
surpreenderam um pouco o súdito de uma monarquia absoluta, rigorosa com o
cerimonial. Seu “diário de viagem” não é uma simples coleção de observações
naturalistas e agrícolas, pois que Hipólito tece considerações extensas sobre
as religiões dos americanos e, mais importante, sobre questões econômicas e
monetárias. Não deixou de notar a preferência dos americanos pelo comércio,
mais que pela agricultura, e o seu gosto acentuado pela especulação, sendo o
dinheiro um valor absoluto naquela sociedade. Já naquela época, os bancos
emprestavam facilmente, acima das posses reais, animando os empreendimentos e
facilitando as especulações mercantis, muito embora no interior do país a falta
de dinheiro condenasse os produtores muitas vezes ao escambo. Ele observou,
também, as tendências a falências abruptas e a uma mobilidade excepcional nos
negócios, traços que ainda hoje marcam a modalidade peculiar do capitalismo
americano. Como se vê, nada de muito novo em termos de funcionamento do sistema
econômico, particularmente no que toca a “infectious greed” (apud e copyright
Alan Greenspan) que não parece ter contaminado apenas recentemente os
executivos das empresas americanos.
Os Estados Unidos do final
do século XVIII estavam obviamente longe de se constituírem em uma sociedade
industrial e, de fato, eles se tornaram a primeira potência econômica do
planeta apenas no final do século XIX, quando ultrapassaram o volume da
produção industrial combinada da Grã-Bretanha e da Alemanha. Naquela conjuntura,
os fluxos de comércio, as inovações técnicas e as finanças internacionais ainda
eram dominados pelos países mais avançados da Europa, mas o “modo inventivo”
americano já exibia todas as características sociais e financeiras que
converteriam o país de uma sociedade agrária em potência industrial. Ainda que
não descritas com tal estilo “sociológico” em seu diário de viagem, essas
características empíricas da sociedade americana – mais do que qualquer teoria
econômica ou doutrina comercial, das quais os EUA continuariam, aliás, sendo
importadores líquidos pelo resto do século XIX – devem ter impressionado a
mente do jovem Hipólito, determinando muito de suas reflexões pragmáticas
posteriores sobre os problemas econômicos, comerciais e monetários
“brazilienses”.
Lido à distância de mais de
dois séculos, não tanto pela sua forma, mas pelo conteúdo efetivo, o Diário
de Viagem de Hipólito sustenta muito bem a comparação com o bem mais
cuidadosamente elaborado ensaio de Tocqueville, este sim feito para expor aos
franceses os contornos sociais e políticos do imenso laboratório humano e
societal que então constituía a América do Norte. Justamente por não pretender,
primariamente, à divulgação, as anotações e observações de Hipólito adquirem um
caráter de ensaísmo sociológico avant la lettre, possuindo todos os
requisitos literários para figurar como obra fundadora do americanismo
brasileiro, e quiçá universal. Seu diário é uma mina de boas trouvailles
e de desconcertantes antecipações da sociedade americana, numa espécie de
“planejamento utópico do futuro” (a expressão pertence ao filósofo da história
Reinhart Koselleck) que confirma, também por antecipação, a densidade analítica
e o gênio de “escrevinhador” do futuro jornalista (aliás único) do Correio
Braziliense.
Recomendação
de leitura:
Hipólito
José Costa, Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799. Rio de
Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1955. O livro possui uma segunda
edição (Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1974), mas mereceria, de todo modo, ser traduzido para o
inglês e publicado nos Estados Unidos. Como a Embaixada do Brasil criou,
juntamente com as editoras das universidades de Duke e Carolina do Norte, uma
coleção Brasiliana, destinada a facilitar a tradução e a publicação de títulos
brasileiros naquele país, trata-se de uma mais que bem-vinda sugestão para
inclusão nesse empreendimento editorial conjunto.
Resumo:
Palavras-chave:
Imprensa, pioneirismo, americanismo.
* O autor
é