ENTRE O SOCIALISMO E O PEFELÊ: UM DILEMA A SER SUPERADO
Mércio Gomes*
Nos meses que antecederam as convenções partidárias
que indicaram os candidatos a presidente para as eleições de 2002, o Partido
Popular Socialista – PPS – encenou um interessante debate quando pareceu que o
Partido da Frente Liberal–PFL – se oferecia para fazer uma aliança em torno da
candidatura de Ciro Gomes. Dois pontos de vista polares fizeram a arena do
debate. Por um lado, o filósofo Roberto Mangabeira Unger declarou que o PFL seria
bem-vindo não somente como carreador de votos, mas como fator ideológico que
poderia incrementar um programa de governo e conseqüentemente fazer parte de
uma administração federal com vistas a realizar transformações sociais em nosso
país. E deu sua razão principal: o PFL teria um enraizamento (de elite, por
suposto) no sentimento de nacionalidade que seria muito importante neste
momento para o Brasil (sob o risco de perda de solidez identitária), em
oposição à postura favoravelmente globalizante e venda-pátria do PSDB, mesmo a
despeito da propalada negatividade de sua forma coronelesca com que vem
conduzindo sua política desde sempre. Do outro lado, o jornalista Luiz Carlos
Azedo acedeu à possibilidade de receber apoio eleitoral do PFL, mas contestou o
argumento de que o PFL poderia vir a ser algo mais do que a velha direita
brasileira, antipopular, elitista, coronelista, golpista, mofenta, naquele
momento travestido de vítima traído por seu parceiro de oito anos, o PSDB, este
sim, um partido com ares de social-democrata europeu, de terceira via no mundo
globalizado, especialmente capitaneado por um presidente que prima pelo
espírito democrático, pelo respeito à nacionalidade e pela preocupação social.
É certo que o artigo que iniciou esse debate foi
lançado por Mangabeira Unger na Folha de
São Paulo, dia 26/03/2002, no calor das primeiras conversas veladas entre
alguns políticos dos dois partidos, o nosso e o PFL, sob a intermediação
entusiástica dos parceiros PDT e PTB. Os argumentos de Unger foram rebatidos
por Azedo em artigo publicado em O Globo,
dia 3/04/2002. Mangabeira Unger, como de seu feitio, não tomou notícia da
contraposição de Azedo, nem mesmo quanto à sugestão de que a sua visão
manifesta tanto uma falta de conhecimento histórico da realidade brasileira,
quanto uma justificativa canhestra e sofística, certamente oportunista, do
momento político-eleitoral que vivemos.
É certo ainda que a conversa interpartidária
continuou a rolar, a despeito de resistências manifestas de grande parte dos
membros e dos principais líderes do PPS. E, ao final, ao longo da campanha
presidencial o PFL comportou-se estrategicamente dividido, uma parte mais
próxima de Ciro Gomes, quando este estava bem nas pesquisas eleitorais, e mais
distanciada quando caiu nas pesquisas; outra parte apostando na possibilidade
de ascensão de José Serra, como de fato aconteceu, e o apoiando no segundo
turno das eleições.
A finalidade da presente reflexão é inserir no
debate político mais amplo uma perspectiva mais antropológica de modo que dê
conta e realize uma síntese dialética das duas posições polares, sem prejuízo
da legitimidade de cada uma.
Embora o presente autor não se sinta intérprete da
posição de Mangabeira Unger, tendo, aliás, já analisado o papel desse autor de
um modo bastante claro em artigo que consta das páginas do site do PPS/RJ,
forçoso se faz afirmar que o argumento de Mangabeira Unger crítico ao PSDB e
acolhedor ao PFL não parte de um posicionamento teórico necessariamente
oportunista, nem certamente sofístico. O filósofo, aqui, se portando mais como
Mangabeira do que Unger, ao contrário do que sugere Azedo, faz uso de um
argumento mais culturalista do que político para conceber o PFL como uma
maneira de fazer política mais leal ao Brasil do que o PSDB.
Não há dúvida de que Mangabeira sabe a história do
PFL, um partido formado no fim da ditadura militar para no último instante
escapar dela, constituído por políticos originários tanto da antiga UDN quanto
do PSD, muitos que apoiaram estridentemente o golpe de 64, outros que
oportunisticamente aderiram com sua consolidação. E há os mais jovens que se
reportam só vagamente a esses sentimentos políticos. Sabe também que o PFL é um
partido que rejeita posições populares, muito menos socialistas, prima por um
discurso pela ordem constituída (se esta lhe for favorável) e que o liberal que
compõe sua sigla, do ponto de vista do relacionamento social e político, parece
mais uma ironia, servindo tão somente para ilustrar sua preferência pelo
capitalismo laissez-faire, segundo seus ideólogos ligados ao sistema
financeiro brasileiro-internacional. (Note-se desde já que a defesa do
liberalismo é contraditória com a prática do patrimonialismo, mas na verdade
essa atitude é que conecta organicamente o “liberal” de hoje com o velho “liberal”
da Monarquia).
Entretanto, sabe também Mangabeira que no PFL, como
nos demais partidos brasileiros, tem gente de um largo espectro do arco-íris
político e de pertencimento social, e que sua composição resulta, em larga
medida, muito mais de arranjos regionais e estaduais do que propriamente de
convicção ideológica. Por sua vez, essa composição tende a agregar uma
quantidade maior de políticos (do que os demais partidos, exceto talvez o PPB,
cujos membros ideólogos se mantêm convictos das políticas exercidas durante o
regime militar ditatorial), cujas práticas enfatizam o controle
patrimonialístico do Estado e a manutenção do sistema de classes prevalente no
Brasil desde sempre. Em outras palavras, para recordar expressões caras a
percucientes intelectuais e políticos brasileiros, o PFL é o representante
paradigmático do aproveitador das benesses do Estado, do coronelismo, do
clientelismo político, do voto do cabresto, de uma fase histórica que antecede
o desenvolvimento industrial do capitalismo, o dono dos grotões eleitorais, e
assim por diante.
Por esse motivo – do ponto de vista de uma
interpretação exclusivamente política mais do que razoável – é que o PPS, na
interpretação de Azedo e também em análise feita pela colunista Dora Kramer,
não pode se deixar iludir pela questão eleitoral, pois os custos de uma tal
aliança e o preço de uma conseqüente vitória seriam maiores do que os ganhos a
serem realizados.
Acontece, outrossim, que a visão tradicionalmente
negativa sobre o PFL requer alguns reparos. A primeira é a de que a
participação eleitoral do PFL não diminuiu após as medidas mais tecnológicas
para coibir fraudes eleitorais e as mais modernizantes para cativar a
subimaginação ou o inconsciente dos eleitores. Pode-se dizer que o PFL não faz
política pelo modo de discurso racional que beneficie uma coletividade
orgânica, mas o seu modo aplicado nos grotões mineiros ou nordestinos, entre
agricultores no centro-oeste e sul do país, ou ainda em capitais como o Rio de
Janeiro e Salvador, demonstra que há um sentimento de identificação com seu
discurso ou prática que toca pessoas de diferentes situações sociais.
Demagogia, ilusionismo? Quem joga a primeira pedra? Do ponto de vista cultural,
essa identificação é real e não parece ser simplesmente conjuntural. Pode-se
sempre dizer que o eleitorado do PFL é menor do que sua efetiva participação no
Congresso Nacional devido às distorções de representatividade existentes no
sistema político brasileiro, mas não se pode negar que o espectro dos eleitores
atinge substancialmente aqueles que os partidos de esquerda gostariam de
alcançar pelo argumento político racional ou de esquerda. Assim, há uma
legitimidade eleitoral no PFL que deveria tocar, como um desafio a ser
entendido, todos os partidos de esquerda brasileira. Essa carência que o PFL
repõe é muitas vezes interpretada como a atitude de autoritarismo que uma parte
substancial do povo brasileiro supostamente quer sofrer para se entender no
mundo, e não como uma carência muito maior que seria a busca de aceitação e
participação no mundo cultural brasileiro dominante e de luta por uma
transcendência social. Tal característica da maioria do povo brasileiro deve
tomar a forma de um desafio para a esquerda brasileira, sobretudo agora que tem
em mãos a missão, outorgada popular e democraticamente a Lula, de dirigir o
Brasil.
Por sua vez, a liderança mais ostensiva do PFL, com
seu jeitão de coronel, provoca sentimentos de rejeição da parte da esquerda
brasileira. Os modos aparentemente mais refinados do PSDB dão a impressão de
que seu papel no desenvolvimento social e cultural do país é mais condizente
com a modernidade. Este argumento é contestado por Mangabeira que sugere o
contrário, sem mesmo problematizar o conceito de modernidade. Com efeito, para
Mangabeira, a participação política dos coronéis do PFL na política recente
brasileira seria menos perniciosa para a integridade cultural e econômica do
país do que a elegância mundana, americanófila, privatizante, submetida aos
desígnios do capitalismo neoliberal, dos líderes peessedebistas, especialmente
seu chefe máximo. Sem dúvida, a reação negativa de tantos membros dedicados do
PPS ao argumento de Mangabeira surge tão espontânea exatamente porque durante
um bom tempo se pensou que o chefe do PSDB e o processo de globalização eram
sinais de uma nova fase do capitalismo que abriria não tanto uma caixinha de
Pandora, mas um caminho de superação dos problemas brasileiros mais graves,
tais como o chamado custo Brasil, o corporativismo cultural e político, o
denegrido populismo varguista, o patrimonialismo quase-feudal e o estatismo
desenvolvimentista, enfim, os próprios coronéis retrógrados do Brasil. No bojo
dessa mudança surgiria um capitalismo urbanista e racionalista, um sindicalismo
aberto e autônomo, uma produtividade digna de um país moderno, uma classe média
consciente de seu papel subsidiário de produção de mais-valia, uma política
dedicada aos interesses gerais da nação, enfim, por que não, uma indisfarçada
superação da luta de classes.
Na verdade, muitas coisas contrárias aconteceram
nesse período peessedebista, a menor das quais não é a magnitude da dívida
externa que nos pôs refém dos Estados Unidos (FMI, vá lá), nem tampouco a
descrença do povo brasileiro quanto à sua capacidade de dar a volta por cima
dessa situação. PSDB, PFL, PPB, PMDB e até PTB são responsáveis ativos por esse
momento nacional negativo, vários dos partidos de esquerda são responsáveis
passivos. Mas o líder ideológico e prático não pode deixar de ser o PSDB.
Afirmar que a política do chefe máximo do PSDB foi uma eterna concessão ao PFL
é querer ungir-lhe de um sentimento de pureza que não condiz com sua esperteza
política e seu relacionamento negativo com a cultura do povo brasileiro.
Tudo isso posto, nem o PPS nem os demais partidos
de esquerda estão a salvo de uma cobrança da maioria do povo brasileiro quanto
à sua demanda por participação na vida brasileira. Nossos partidos não
conseguem ainda formular uma teoria que inclua o povo, o povão, seu modo de ser
e pensar, na arena político-cultural que nos constitui. Quando o tenta fazer,
busca elementos empíricos externos, tais como a Itália de Mussolini ou a França
de Louis Bonaparte, nas palavras calorosas de Gramsci e Marx, respectivamente.
A única real e proveitosa tentativa de compreender o povo brasileiro por parte
de alguém de porte comunista se deve ainda a Caio Prado Jr., em sua obra-prima
sobre a formação econômica brasileira, publicada há 60 anos atrás. A palavra
populismo assusta e irrita toda a esquerda brasileira mais do que qualquer outra,
eis que a esquerda engoliu a crítica direitista e intelectualmente deixou
escapar de suas percepção política do mundo as concepções do movimento narodnik
-- o movimento populista russo que terminou dando origem à formação de uma
identidade entre intelectuais e povo na Rússia czarista. Quando uma nova
identidade desse tipo for estabelecida entre nós, o Brasil surgirá (como já deu
sinais disso em períodos como 1956-68) diferente do que o entendemos agora, nós
que vivemos do lado de cá do portentoso e indecente muro sócio-cultural que
impede a entrada da maioria do povo na participação e decisão sobre suas vidas.
Eis, portanto, a maior tarefa política que temos à
frente: abrir os caminhos para a participação do povo no seu destino maior, em
sua efetiva e consolidada integração à nação brasileira. O muro da desigualdade
social, construído desde 1500, impede a entrada do povo na sociedade dominante
brasileira. Muro de preconceito cultural, de incompreensão intelectual, de
barreira socioeconômica de classe. Destruir esse muro é obra para mais de uma
geração e necessita inicialmente de uma autoconsciência social e política de
sua existência e dos elementos que a integram. Brechas existem nesse muro, por
onde passam aqui e ali um ou outro segmento do povo e é incorporado e aceito
como um semelhante, com iguais direitos a participação social e política. Os
demais continuam sua saga de agüentar as agruras da opressão e submissão. É
preciso abrir rombos nesse muro para que enfim ele venha a ser destruído algum
dia. Tais rombos a serem abertos não advirão, primordialmente, como pensam os
economistas e tecnocratas que dominam o discurso político brasileiro, da ordem
econômica, e sim da ordem da vivência e da convivência, isto é, da ordem
cultural.
Estamos nós - a esquerda brasileira - aptos a esta
tarefa, ou precisamos arregimentar esforços de outras partes? É evidente que a
tarefa está acima de nós. Nossa grandeza será dar um passo à frente, ter
confiança em nossa visão e em nossa determinação, não temer aliados e agregados,
mas sim saber utilizar o melhor que eles podem dar para nossa jornada. Eis
porque nosso dilema não é aquele que encabeça essa reflexão, e sim este outro
de termos ou não termos coragem e força para nos engajarmos em uma nova visão
do Brasil e um novo encaminhamento político.
O dilema que sofreu o PPS em relação à participação
do PFL na campanha eleitoral a presidente talvez esteja se repetindo agora na
formação do governo Lula. O PT sofre de dilemas e indecisões profundas ao
sentir a presença de indesejáveis liberais do PL, peemedebistas inconfiáveis e
oportunistas, enfim, até aliados de esquerda contra quem o PT sempre se opôs.
Lula e seus conselheiros terão que tomar decisões sobre essas alianças e sobre
a ação desses partidos em seu governo. Se o fizerem exclusivamente pela
perspectiva política, deixando de lado a perspectiva cultural, certamente irão
entrar em confrontos ideológicos intransponíveis. Há à frente um caminho a
percorrer nos próximos quatro anos. Nos primeiros meses esse caminho tem que
ser pavimentado pela visão clara de sua tarefa. Lula não poderá perder a visão
conjunta, político-cultural, para manter a prospectiva do futuro do Brasil.
De nossa parte, do sentimento brasileiro de
esquerda, certamente não podemos vacilar em dúvidas. Certamente devemos ter a
segurança de que entre nós, independente de partido ou de governo, vai se
formando um novo fulcro criativo para levar o processo de ampliação da cultura
brasileira adiante. É preciso que olhemos para nós mesmos e tomemos consciência
de que nossa identidade maior reside no respeito ao nosso passado, mas também
na busca de transcendência. Os desafios do atual período de mudanças no
capitalismo mundial e na forma com que ele penetrou no Brasil exigem de nós a
clareza de que o seu enraizamento na cultura brasileira poderá vir a ser mais
pernicioso do que o devaneio da modernidade globalizante. Eis porque alianças e
coalizões são legítimas e progressistas, quando os objetivos forem para a
consolidação da cultura brasileira.
Resumo: Este artigo busca aprofundar o debate sobre
o papel desempenhado pelo PFL nas alianças políticas das últimas eleições,
tendo como pano de fundo considerações de Mangabeira Unger e Luiz Carlos Azedo.
Palavras-chave: Partidos políticos, coronelismo e
alianças políticas.
* Mércio Gomes é antropólogo, professor da
Universidade Federal Fluminense, autor dos livros O Índio na História (Vozes,
2002), The Indians and Brazil (UPF, 2000), Darcy Ribeiro (Ícone, 2000).