A
POLÍTICA ECONÔMICA NO GOVERNO LULA: PRIMEIRAS SINALIZAÇÕES
Romulo do Couto Alves*
I –
Introdução
A eleição de 2002 representou um novo
marco em termos políticos brasileiros: a vitória esmagadora de um partido de
esquerda, levando, pela primeira vez, como presidente do País, um autêntico
representante dos segmentos mais pobres da população. Na verdade, longe apenas
deste simbologismo, esta guinada representa, para uma parcela majoritária da
população brasileira, a expectativa de uma mudança significativa em termos de
ruptura da orientação política claramente neoliberal, que foi implementada a
partir do governo Fernando Collor e continuada no governo Fernando Henrique
Cardoso (FHC).
Ou seja, o novo governo, do Partido dos
Trabalhadores (PT), passou a representar um sopro de esperança muito grande
para a população no tocante à mudança no modelo neoliberal, com a retomada de
uma política desenvolvimentista, voltada para o social, em que a prioridade
deixasse de ser o “mercado”.
Foi com base nesta esperança que se aguardava que as primeiras sinalizações da política econômica dessem uma mostra de clara boa vontade neste campo. Contudo, passados um pouco mais de sessenta dias da posse do novo governo, esta questão não parece muito explícita. Longe de se querer aqui já crucificar o novo Governo ou de trabalhar uma postura oportunista sobre diferença entre o discurso e a prática do PT, e enquadrando-me entre aqueles que sempre torceu bastante por este momento, vale registrar algumas inquietações que podemos retirar do direcionamento dado até agora à política econômica, principalmente no tocante à recuperação de algumas idéias de baixa aceitação e credibilidade, que nem mesmo o governo FHC, com todo o seu peso no Congresso e sua “capacidade de persuasão”, conseguiu emplacar.
Ademais, a pressa com que se quer fazer algumas reformas, como a tributária e a da previdência, para citar os exemplos mais notórios, não é compatível com um governo de um partido de larga tradição democrática e propensão ao debate. Nestes casos, é muito importante que os vários segmentos da sociedade sejam ouvidos para que uma proposta consistente e viável seja construída. De outra forma pode-se cair na tentação fácil de dizer que o problema da previdência é somente de caixa, esquecendo-se de questões estruturais (a começar a própria separação entre previdência e assistência, o que leva a números bastante distintos sobre o déficit) ou de que a legislação do trabalho precisa ser flexibilizada para que novos empregos possam ser criados (entendendo-se esta flexibilização por uma forte supressão de direitos adquiridos ao longo da história pelos trabalhadores).
Passaremos, então, a discutir aqueles pontos que consideramos mais significativos e que hoje estão sujeitos a um distanciamento significativo das propostas sustentadas pelo PT antes de assumir a presidência do país. Vale ressaltar que reconhecemos a importância de outras questões, como a da vulnerabilidade externa, mas que carecem de um maior espaço para a discussão. Destarte, serão deixadas de lado neste momento, como também a discussão sobre alternativas (que serão levemente abordadas ao longo deste artigo), passíveis de discussão em outro trabalho de maior fôlego.
I – A visão técnica da Ciência Econômica
O primeiro ponto a ser destacado diz respeito ao abandono de um discurso em que se retomava a vertente da Economia Política, bastante cara aos economistas que formam os quadros do PT.
A partir principalmente da década de 1980, podemos observar a retomada de um discurso puramente técnico na economia, ou seja, a visão de que determinadas medidas seriam tomadas por representarem alternativas puramente técnicas a serem executadas, sem que houvesse espaço para discussão de alternativas, visão esta completamente adaptada à lógica liberal, de monocausalidade para definição de diagnósticos e de adoção de uma política para enfrentar o problema a ser discutido.
A própria postura do Ministro da Fazenda, Antônio Palocci, evidencia esta questão, ao não empreender um maior diálogo com vários setores do Partido e nem procurar discutir alternativas em termos de política econômica. Deve-se ressaltar que esta postura diverge até mesmo daquela adotadas por outros ministérios, como, por exemplo, o do Trabalho e o da Previdência, que, apesar de levantarem algumas questões estranhas às propostas básicas do PT na área, têm aberto espaço para a discussão.
Outro aspecto em que também podemos observar este ponto diz respeito à manutenção de alguns quadros técnicos no Banco Central ou pela chegada de novos quadros, principalmente no Ministério da Fazenda, que não apresentam nenhuma ligação com a proposta do PT e que valorizam a manutenção da política econômica que vigorava no governo anterior.
Vale registrar também um outro ponto que está associado à falta de uma visão da economia como uma opção em termos de política. Trata-se da idéia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social[i], onde vários setores da sociedade estão representados. Embora a princípio pareça uma idéia extremamente democrática, ainda que este conselho seja apenas para lançar idéias, destaca-se a desigualdade na proporção em que os diversos segmentos da sociedade estão representados, em que os grupos comprometidos efetivamente com mudanças do modelo neoliberal estão claramente em desvantagem. Ademais, isto pode ser um caminho para novamente trazer o debate para um campo “puramente técnico”, deixando-se de lado, novamente, o viés político.
II – A
panacéia do superávit primário[ii]
Um dos pontos mais surpreendentes em
termos de continuidade na política econômica do Governo Lula é a ênfase
desmesurada no superávit primário como condição fundamental para que a economia
alcance o “equilíbrio” e possa crescer de maneira estável.
Isto ficou mais claro a partir do
anúncio do aumento da meta de superávit primário por parte do Governo (Jornal
do Brasil: 2003, A7 e A8), de 3,75% do PIB para 4,25% do PIB[iii].
O argumento básico para defesa desta tese é a estabilização da relação
dívida/PIB, o que sinalizaria para o “mercado” e o Fundo Monetário Internacional
(FMI) a política do governo de garantir a “solvência do país e a estabilidade
da economia”. Esta decisão “acalmaria o mercado”, o que daria condições, mais à
frente, de queda do câmbio, risco Brasil e da taxa de juros[iv].
Em relação aos argumentos utilizados
pelo governo anterior, de FHC, vemos pouca ou nenhuma diferença. Novamente o
superávit primário aparece como condição fundamental para que se possa ganhar
confiança e no futuro vir a crescer. Embora não encontremos verificação
empírica deste tipo de argumento, o mesmo ganhou bastante espaço nos últimos
anos, com várias pessoas repetindo-o sem terem noção efetivamente do que o
mesmo possa representar.
Não podemos esquecer que a manutenção
de superávits primários cria condições de transferência de recursos de uma
parcela significativa da população para uma outra, de número bem menor, os
rentistas, aqueles que detêm títulos do governo. Isto porque o superávit
primário exclui os juros nominais (ver nota 2), o que implica que esta rubrica
não será afetada por cortes que fatalmente são feitos nos chamados gastos
primários (despesas de custeio e investimento) para se alcançar a nova meta.
Esta visão embute implicitamente uma
opção em termos de quem passa a ser privilegiado na “hora do aperto”. Com o
nível atual da carga tributária no Brasil (cerca de 35% do PIB) e o acúmulo de
demandas sociais reprimidas em termos de serviços e produtos oferecidos pelo
Estado (educação, saúde saneamento etc.), podemos perceber o ônus político e
social da manutenção deste tipo de postura. E, conforme já mencionado, a
esperança de mudança neste tipo de política, de corte neoliberal, foi um dos
principais fatores para a vitória do novo governo. Ademais, nada garante que
este esforço fiscal possa dar resultados em termos de estabilização da relação
dívida/PIB. Basta olharmos para a situação dos títulos públicos, indexados a
elementos, juros e correção monetária e cambial, que independem da política
fiscal. Ou seja, o esforço pode não levar aos resultados esperados [v].
III – A
tese do Banco Central Independente (BCI)
Este é outro ponto polêmico, que
novamente é trazido à tona pelo Ministro da Fazenda, Antônio Palocci, e talvez
um dos mais preocupantes. Independência é sempre algo extremamente subjetivo,
passível de ser questionado, dado ser uma qualidade. Daí, que podemos discutir
até que ponto um indivíduo ou uma instituição é independente ou não.
Segundo Costa (2000), a discussão sobre
o Banco Central Independente (BCI) encerra duas questões, a independência “orgânica,
referente às condições tanto de nomeação dos dirigentes quanto de exercício de
suas funções, e a operacional, que diz respeito à liberdade de ação na
definição de suas atribuições e objetivos em matéria de política econômica”.
Em relação ao primeiro ponto, costuma-se colocar como vantagem o fato de
os dirigentes do Banco Central não sofrerem a influência do Executivo na hora
de executar a política “necessária” a uma determinada conjuntura, ou seja, um
Banco Central a salvo de qualquer interesse político. A segunda estaria
relacionada à possibilidade do Banco Central ter liberdade de objetivos e/ou de
instrumentos na execução da política econômica.
Além da fragilidade dos argumentos de defesa desta tese, do BCI,
oriundas de observações empíricas e carecendo de uma base teórica mais
profunda, são feitas distorções sobre a função básica de um Banco Central, que
serve para garantir a liquidez em última instância para a economia (basta ver
para qual finalidade foram criados). Ademais, além da já mencionada
questionável idéia da possibilidade de se alcançar a independência, discute-se
muito hoje que, na verdade, o que se percebe é pouco controle e transparência
sobre as operações que o Banco Central executa na economia brasileira[vi].
Outro ponto diz respeito ao fato de que uma tese como esta estaria
tirando do governo a possibilidade de utilizar os diversos instrumentos de
política macroeconômica, que tem à disposição, de forma articulada, de maneira
a conseguir êxito nos objetivos maiores de um projeto de desenvolvimento para o
país, promovendo o crescimento, a retomada do emprego e a redução das
desigualdades sociais.
Defender esta tese é ver o problema por somente um ângulo e advogar a
idéia equivocada de que tudo se resolveria a partir do momento que tivéssemos
“cidadãos acima de qualquer credo político” para dirigir o Banco Central e a
política monetária, bem como perder o controle, que já não é significativo,
sobre o sistema financeiro. Ademais, a defesa desta tese é um passo para se
começar a dar “independência” a todos os órgãos que fazem política econômica,
ou seja, teríamos um órgão independente para política fiscal, cambial etc. Pode
ser que uma parcela mínima da população esteja sonhando com este tipo de visão!
É a idéia de que tudo que vem do Estado é errado.
IV – A
manutenção da política de juros altos
Em fevereiro o governo voltou a subir
os juros, com a meta da taxa Selic alcançando a marca de 26,5% aa. (Banco
Central, 2003), em mais um ponto percentual, depois do aumento de dezembro,
ainda no governo FHC (em três pontos percentuais) e de janeiro (em meio ponto
percentual). Ademais, também, na mesma reunião, foi elevada a alíquota do
recolhimento compulsório dos depósitos à vista, passando de 45% para 60%.
Este tipo de procedimento, em termos de
política monetária, revela, de forma muito explícita, a continuidade da linha
que vigorava no FHC de manter uma política restritiva frente a preocupações
relacionadas ao aumento da inflação.
A base da argumentação relativa a esta
linha está em que, perante a variação positiva dos preços internos, somente
haveria uma única saída: a manutenção de juros elevados, ou até mesmo sua
elevação, como foi o caso, de forma a levar à economia a uma recessão e, com
isto, jogar os preços para baixo. Podemos perceber este aspecto pelas palavras
do próprio Ministro da Fazenda, de que “os juros são um remédio amargo, porém é
preciso combater a doença chamada inflação” (Jornal do Brasil; 2003, A10), ou
“pior do que os juros altos é a inflação” (Jornal do Brasil; 2003, A10).
Claro está que não existe em pauta
qualquer alternativa em relação a este tipo de estratégia, tão criticado e
estranho ao PT. O próprio Ministro
descarta esta hipótese ao afirmar que “não passa pela cabeça do Governo adotar
um “Plano B” para a política econômica” (Jornal do Brasil; 2003, A10). Ou
ainda:
“Não passa pelo governo, nem por parte do presidente Lula, nem por parte
da equipe econômica, outra política. Estamos seguros de que estamos no caminho
certo ... destacando que o plano é do
presidente Lula, que foi escolhido pelo povo, e mudá-lo como alívio atual nos
mercados seria insanidade” (Jornal do Brasil; 2003, A10).
Vale destacar que a grande
vitória conquistada pelo PT nas eleições de 2002 deveu-se bastante ao fato da
população enxergar neste partido uma alternativa à política econômica
terrorista praticada no governo FHC. A menção ao “mercado”, este “ser” que
todos falam, mas que não sabem efetivamente o que é, nos faz lembrar do governo
anterior, em que se fazia política econômica pensando neste mercado, esquecendo-se
da grande parcela da população.
Além disto, este “remédio”
pode não curar efetivamente o doente e até mesmo piorá-lo. Observamos a
utilização deste tipo de política no governo FHC e, embora possa ter o efeito
de segurar a inflação por um tempo, não impede que a mesma retorne, haja vista
que não se trabalha com as efetivas causas do problema. Ademais, isto leva a
que o país fique em uma eterna situação de stop-and-go, sem que tenha
condições de crescer efetivamente, dado que este crescimento é sempre
interrompido.
V – Conclusão
Conforme mencionado, longe
de tentar fazer o papel de algoz prematuro, o objetivo aqui é colocar em
discussão alguns pontos definidos como principais pelo autor, considerados com
uma sinalização insuficiente para uma proposta de mudança por parte do governo
petista.
Reconhece-se que mudanças
não são feitas da noite para o dia. As mudanças devem vir de forma gradual até
mesmo pelo fato da herança pesada deixada pelo governo anterior, de FHC.
Contudo, algumas
sinalizações são fundamentais para percebermos que agora se respira em um novo
ambiente. E isto não parece muito explícito na condução da política econômica
do novo governo. A retomada de algumas idéias infelizes, como a tese do Banco
Central Independente, a continuidade de uma política macro lastreada nos juros
altos e na obtenção do superávit primário, com metas acima daquelas verificadas
no governo FHC, de forte corte neoliberal, causam uma certa frustração nas
expectativas de mudanças que vigoravam quando da eleição de Lula para a
presidência.
O que se quer ver é
discussão sobre a retomada de uma política de desenvolvimento, com a
recuperação do nível de emprego e retomada dos investimentos produtivos, com
sensível melhora nas desigualdades sociais. Para isto, precisamos sinalizar que
a política econômica não vai se pautar por dar continuidade ao quadro em que o
país é refém do “mercado”, tanto nacional como internacional. O caminho é
longo, mas é necessário começar a caminhada.
[i] Vale registrar que houve divergências com o Congresso sobre o papel deste Conselho, ou seja, até que ponto iria sua área de atuação.
[ii] Superávit primário representa a diferença entre as receitas e despesas do Setor Público, excluindo-se a parcela de juros nominais (juros reais e correções monetária e cambial).
[iii] Para um PIB estimado em R$ 1,6 trilhão, a nova meta corresponderia a uma “economia” de R$ 68 bilhões. Ver Jornal do Brasil, 2003.
[iv] Interessante destacar que a nova medida agradou em cheio ao “mercado” e ao próprio FMI, como era de se esperar. Manifestações como de Delfim Netto e Maílson da Nóbrega foram de apoio às medidas, destacando a necessidade de recuperar a confiança da comunidade externa no país. Ver Jornal do Brasil (2003).
[v] Basta observarmos o corrente da dívida pública no período recente, afetada pelas variações do câmbio ou da lata dos juros.
[vi] Haja vista as operações para salvar instituições financeiras sob o pretexto de risco sistêmico.
Bibliografia
BANCO
CENTRAL, Notas da 81ª Reunião do Comitê
de Política Monetária do Banco Central do Brasil (COPOM), Brasília, 18 e 19 de fevereiro de 2003.
COSTA,
F. N. Estatizar o Banco Central. São Paulo: Folha de São Paulo, 2000.
Jornal do Brasil, 08/02/2003A, ps. A7 e A8.
Jornal
do Brasil, 07/03/2003B, p. A10
Resumo:
Este artigo destina-se alguns pontos da política econômica do governo do
Partido dos Trabalhadores que dão idéia de uma certa continuidade em relação à
política implementada no governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso, de
forte corte neoliberal.
Palavras-chave:
Governo Lula; política econômica; superávit primário; Banco Central
Independente; taxa de juros.
*
Mestrando em Administração pelo Instituto Metodista Bennett. Especialista em
Análise de Conjuntura Econômica pelo IE/UFRJ. Professor da Faculdade de Economia
do Instituto Metodista Bennett. Área de Trabalho: Economia do Trabalho;
Economia Brasileira e Política Econômica.