Paulo Prado, café e modernismo
Carlos Eduardo Ornelas
BERRIEL. Tietê, Tejo, Sena: A Obra de Paulo Prado.
Campinas: Editora Papirus, 2000, 248 páginas.
Em outubro de 1943, perguntava-se Gilberto Freyre (1900-1987): “Que
poderei acrescentar aos necrológios que os jornais vêm publicando sobre Paulo
Prado?” Não apenas “um ou outro traço de recordação pessoal” como enuncia,
mas, na verdade, uma imagem aparentemente enigmática sobre o autor de Retrato do Brasil (1928): “Paulo Prado
foi realmente um dos casos mais curiosos do Dr. Jekyll e Mr. Hide que já houve
no Brasil”. A duplicidade da personalidade do autor paulista? “seu nome associado
ao mesmo tempo ao “movimento modernista” e ao Departamento Nacional do Café”
(FREYRE, 1981: 92). O desafio de desvelar esta imagem foi aceito por Carlos
Eduardo Ornelas Berriel e constitui o motivo, como aquilo que põe em movimento,
do seu Tietê, Tejo, Sena: A Obra de
Paulo Prado.
Com este livro Paulo Prado
é retirado da espécie de limbo a que estava relegado quer como intérprete
do Brasil, quer como agitador cultural. Tietê,
Tejo, Sena singra, por assim dizer, a obra e trajetória intelectual de
Paulo Prado fazendo emergir do seu interior as dimensões intelectuais, estéticas,
sociais e políticas das suas teses revelando-lhes a feição como expressão
particular de um tempo histórico e de uma classe social: a oligarquia paulista
do café nos anos de 1920-30. Nesse movimento, vai expondo algumas das fissuras,
ambigüidades e contradições constitutivas mais características do modernismo.
Pois, como sugere Berriel seguindo a indicação de Mário de Andrade (1893-1945),
“sem ser artista ou poeta, sem ser o propositor central dos padrões renovadores
de expressão – embora fosse conhecedor e opinasse a respeito – Paulo Prado
foi justamente quem deu expressão social ao Modernismo, o que significa dizer
que deu o sentido de movimento às experiências
até então isoladas dos modernistas”
(BERRIEL, 2000: 86).
A
tese central do livro diz respeito ao problema da “dimensão de continuidade”
que o modernismo comporta, mas que freqüentemente tem sido negligenciado em
favor do “ato de ruptura” que os autores e as obras que pretenderam aparecer
como representantes da época – e que em grande medida valem ainda hoje como
tais - praticaram. Continuidade que, como chama a atenção Berriel, reside
não tanto nos aspectos propriamente literários ou plásticos, mas principalmente
nos “aspectos programáticos que unem visão social e intencionalidade estética
decorrente” (IDEM, 2000: 11). Assim, Berriel coloca em questão a idéia de
que ruptura estética não implica necessariamente na de transformação social
como muitos modernistas e estudiosos do modernismo entendiam. E, enfatiza
o autor, se “o desejo de unir ruptura estética com transformação social tocou
os segmentos de maior generosidade do Modernismo, não o fez da mesma forma
para outros setores – sem que, entretanto, estes percam sua força de representatividade
com relação ao movimento” (Ibidem).
Sem intenção de ser exaustivo, apontarei três pontos que
me parecem fundamentais para o autor demonstrar sua tese. Cumpre esclarecer
desde já que os aspectos gerais que serão apontados não estão de modo algum
destacados um do outro, mas, seja dito a favor de Tietê, Tejo, Sena, articulados na sua própria estrutura narrativa
que, na verdade, segue a linha de raciocínio e de exposição do próprio autor
analisado. Assim, sua narrativa oferece ao leitor um retrato particularmente
vivo de Paulo Prado, das suas idéias, do seu tempo histórico e das sociedades
paulista e brasileira por ele vislumbradas.
O primeiro ponto que gostaria
de destacar é o deslocamento operado em Tietê,
Tejo, Sena da questão das influências intelectuais mais ou menos manifestas
nas idéias de um autor do terreno da mera alegação para o da demonstração
efetiva. Tomando um conjunto de teses como referência e recriando-as segundo
sua perspectiva particular, Paulo Prado constituiu-se, como mostra Berriel,
num elo de ligação fundamental entre os modernistas e a geração anterior de
Eduardo Prado (1860-1901). A matéria-prima dessa relação foi extraída, a despeito
do bovarismo francófilo corrente, por um lado, de um conjunto de teses originalmente
desenvolvidas pelos intelectuais que integram a chamada Geração de 70 da literatura
portuguesa, particularmente por J. P. Oliveira Martins (1845-1894); e, por
outro, no plano interno, não apenas das idéias do célebre tio Eduardo, como
do debate historicista de Capistrano de Abreu (1853-1927) com a historiografia
tradicional do Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro.
O segundo
ponto diz respeito ao resgate de vários episódios culturais como prelúdios
da Semana de 22 nos quais Paulo Prado também teve atuação decisiva: a “Exposição
de Pintura e Esculturas Francesas”, no hall
do Teatro Municipal de São Paulo, e a montagem da peça “O Contratador de diamantes”
de Afonso Arinos (1868-1916). Ambos os eventos são de 1919 e, enquanto o primeiro
constituiu para Berriel um momento exemplar da “modernização da consciência
artística e cultural”, o segundo o foi em termos da valorização de um passado
histórico de grandeza dos clãs paulistanos, de valorização do Brasil e criação
de uma mitologia da identidade nacional. É desse modo que esses eventos condensam
a “grande extroversão das idéias modernas no campo das artes, chamada de Semana
de 22, acompanhada do empenho de valorização da cultura tradicional popular
e da busca de matrizes arquetípicas da vida histórica e da sensibilidade nacional”
(IDEM, 2000: 72).
O terceiro ponto refere-se à Semana de Arte Moderna de 1922
propriamente dita. Aqui o núcleo da análise de Berriel está na articulação,
e não apenas na contraposição, de uma das questões políticas fundamentais
dos anos 20, isto é, a questão da unidade nacional, com a questão cultural
da ruptura estética. Articulação que se evidenciaria na adoção da idéia de
“Renascença” como paradigma da Semana, pois segundo a sugestão de Paulo Prado
no artigo “Brecheret” publicado em 1924 na Revista
do Brasil, então sob sua direção, ela teria inaugurado entre nós o sentimento
de inquietação e independência que é característico da nova feição do espírito
humano” (IDEM, 2000: 98).
A linha de raciocínio e de exposição de Paulo Prado, como nos
mostra Berriel, conduz a questão da unidade nacional enquanto o “problema
magno” da formação brasileira. Sabendo-se que para Paulo Prado os “males do
país” seriam dados sobretudo pela sua condição de origem racial, a unidade
nacional acaba por assumir conteúdos sociais específicos na sua obra: “é produto
da falta de vitalidade desta sub-raça que é o brasileiro” (IDEM, 2000: 211).
Comenta Berriel:
foi a mescla da escuma
turva das civilizações européias, com o índio lascivo acumpliciado pelo deserto,
e com o negro envenenado pela escravidão, e ele próprio expressão acabada
da corrupção dos costumes - esta mescla torpe, enfim, a origem de todos os
males da vida nacional. Ora, o que Paulo Prado quererá dizer com a frase “quando
tudo está errado, o melhor corretivo é o apagamento de tudo que foi mal feito”?
A conclusão evidente é que ele pensava na alteração, por vias de exceção,
da fonte destes males. Administrar as raças. Eugenia? Extermínio? Apartheid?
A ausência de concreta resolução destas indicações também possui o seu interesse.
Incapacidade de ir ao cabo de suas próprias indicações? Esta incapacidade
poderia estar além da dimensão individual, pessoal, de Paulo Prado: dever-se-ia
à própria incompletude da burguesia brasileira, da qual ele seria a ponta
mais avançada, mais reveladora, mais argumentada desta classe - mas guardando
as características básicas da mesma: a incapacidade de ir ao fim de suas inclinações
resolutivas (IDEM, 2000: 214-5).
O próprio convite para
se pensar o modernismo paulista como uma “nova Renascença” estava diretamente
associado à função social precisa que, segundo Paulo Prado, a Semana havia
cumprido na vida nacional: não apenas ter rompido com os ”males espirituais
do passado” - na verdade com a hegemonia
cultural do Rio de Janeiro - mas, principalmente, por representar a “base
cultural de uma nova fase da vida brasileira”. Diz Berriel:
O conceito de Renascença
será empregado por Paulo Prado com sentido que excede a função retórica. Foi
este movimento e esta época a ruptura radical com uma forma de vida e com
uma mentalidade historicamente datadas, ruptura esta gerada pela emergência
de uma nova forma de vida social e de uma nova mentalidade. Tomar como paradigma
esta grande fratura histórica é interesse e referência construídos intencionalmente
por Paulo Prado: seu ponto de chegada é a afirmação de que a Semana cumpre
este mesmo papel para a vida brasileira (IDEM, 2000: 97).
Ora, os conteúdos sociais dessa “Renascença” para Paulo Prado,
sempre segundo Berriel, estariam ligados naturalmente ao passado paulista,
ele próprio fruto da colonização do “português heróico da Renascença” com
o “índio perfeitamente adaptado ao meio, o mameluco”. Afirmação apologética
da sua própria classe, as particularidades que compunham o “tipo paulista”
resistiam, no entanto, apenas na aristocracia rural que, segundo Paulo Prado,
através da economia do café, havia regenerado São Paulo: “o café reencontraria
o homem da Renascença - e neste reencontro sua autonomia e particular modernidade”
(IDEM, 2000: 148).
Somente de São Paulo, então, em flagrante contraste com o restante
do Brasil - cuja configuração racial seria formada pelas três “raças tristes”:
negro escravo, índio lascivo e português da decadência pós-1580 – poderia
se esperar um futuro autônomo e moderno, justamente, é claro, porque “afeito
ao veio tradicional de desenvolvimento deste complexo histórico: o bandeirante,
o café, o paulista” (IDEM, 2000: 101). Assim, tomando as distintas composições
raciais de São Paulo, por um lado, e do restante do Brasil, por outro, como
base histórica e ontológica da diferença irreconciliável entre as duas partes,
Paulo Prado chega a tese da necessária separação política entre São Paulo
e o Brasil. Aqui se coloca, segundo Berriel, o “ponto laboriosamente planejado”
por Paulo Prado: a sugestão de que o modernismo paulista,
enquanto Renascença, apresenta (para Paulo Prado) um “caráter intrinsecamente
separatista” (IDEM, 2000: 204).
Esta
talvez seja a questão destinada a suscitar mais polêmica em Tietê, Tejo, Sena. E embora desenvolvido com perícia em relação à
lógica interna da obra de Paulo Prado, isto é, em relação às categorias através
das quais ele opera e fundamenta sua interpretação do Brasil, creio que o
argumento ganharia mais em contundência se explicitasse a tese paulopradiana
em função do contexto político de crescente tensão entre regional e nacional
que caracteriza a crise do pacto oligárquico da Primeira República.
Estamos
assim face a questão central do livro: as implicações do caráter oligárquico
na interpretação do Brasil do modernista Paulo Prado. Num contexto intelectual
ainda marcado pela relativa confusão entre método e objeto, Tietê, Tejo, Sena penetra com sensibilidade
admirável no método de interpretação histórica adotado por Paulo Prado de
modo a retirar dele, em seu emprego arbitrário, a própria concepção sobre
o papel social do intelectual que o fundamenta. É nesse sentido que Berriel
pode mostrar a inclinação abertamente programática para a vida brasileira
do método de interpretação histórica de Paulo Prado sem assimilá-lo mecanicamente,
como uma redução ordeira, à dimensão de classe do seu pensamento.
O autor argumenta que, embora haja na obra de
Paulo Prado a presença de um corpo de idéias geradas no interior de uma família
– talvez de modo único entre os autores brasileiros - que ajuda em parte a
configurar sua dimensão oligárquica e aristocratizante, o fundamental é perceber
que a “originalidade não reside nesta condição básica de classe, mas sim nos
dois elementos pressupostos: o primeiro, por ser um pensamento organizado
com certo rigor ideológico, com coerência interna, e em segundo pelo fato
deste pensamento ter continuidade, desdobrar-se e ter efetiva função social”
(IDEM, 2000: 18). Nesse sentido Berriel contribui, sobretudo, para o esclarecimento
da apropriação oligárquica das idéias modernas como mecanismo social fundamental
de uma sociedade conservadora formada sob a escravidão, o que acaba por transformá-las
no seu contrário. Pois através de Paulo Prado, a noção de “modernidade” assume,
no limite, o papel de argumento de poder e de manutenção do status
quo:
Paulo Prado
não necessitava, enquanto método, do Impressionismo, já que as águas de que
bebia eram mais do Tejo do que do Sena. Mas há um fator de prestígio não desprezível
em jogo, e ser moderno para Paulo Prado - já o sabemos - é decisivo: somente
os paulistas o eram. Esta situação enquadra e, em grande parte, define Paulo
Prado: usa os recursos de prestígio - arte moderna é prestígio e legitimidade
- mas age com relação a ela como o Brasil age com relação às idéias liberais:
não as perde de vista, mas não as pratica; ou só as pratica após deformá-las,
como ocorreu com o Impressionismo (...) a arte moderna no Brasil se torna
prerrogativa paulista, e sua realização uma “missão étnica e protetora”. Paulo
Prado não aceita as idéias liberais, mas aceita a arte moderna após convertê-la
em elogio da superioridade racial paulista. Age arbitrariamente com relação
ao Impressionismo (assim como agiu com relação ao Romantismo), arranjando
a vida literária e artística de modo a que sirvam a seu propósito. A referência
à Geração de 70 - fator real de anacronismo - é necessidade de sua base ideológica,
de seu ponto de partida histórico-social: dela depende o elogio do latifúndio
(IDEM, 2000: 159-160).
Não
sendo de modo algum modestas, estas não são, contudo, todas as contribuições
do autor. Há em Tietê, Tejo, Sena sobretudo uma sólida
formulação teórico-metodológica com contribuições não apenas para o campo
da teoria literária, de um lado, ou para a sociologia – e o pensamento social
brasileiro em particular -, de outro, mas também para os emergentes estudos
de história intelectual. Quanto ao método, sua contribuição está sobretudo
na demonstração de que a tensão entre as tradicionais abordagens “interna”
- centrada exclusivamente na obra - e “externa” - cuja ênfase volta-se mais
para aquilo que de diferentes perspectivas se entende como sendo o “contexto”
de uma obra e/ou para a trajetória biográfica ou intelectual dos seus autores
-, não se deva encaminhar inevitavelmente para algum tipo de resolução, posto
que, na verdade, tal tensão é constitutiva da própria matéria que cabe ao
analista ordenar.
Carlos
Eduardo Berriel revela, em suma, elementos senão de todo insuspeitos, certamente
até então insuficientemente explorados do complexo processo de renovação cultural
do país nos anos de 1920 como parte fundamental do debate político sobre o
sentido que a sociedade brasileira tomava em meio às transformações mais amplas
daquele momento. Assim, com Tietê, Tejo, Sena, os interessados pelos novos temas e linguagens
que os anos 20 trouxeram estamos desafiados a repensar a relação conciliatória
entre idéias e estéticas modernas com a autoridade tradicional que elas pareciam
buscar romper. Abusando das metáforas pode-se dizer então que Tietê, Tejo, Sena afigura-se, num certo
sentido, um “caminho do mar” que se lança - de modo original e desafiador
- nas águas nada calmas, diga-se de passagem, que caracterizam o programa
crítico de se “especificar um mecanismo social, na forma em que ele se torna
elemento interno e ativo da cultura” (SCHWARZ, 1977: 24). E este desafio,
admiravelmente assumido por Tietê, Tejo,
Sena, constitui ainda hoje um dos legados mais radicais e fecundos do
ideário modernista.
BIBLIOGRAFIA
BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Dimensões de Macunaíma:
filosofia, gênero e época. Tese de Mestrado. Departamento de Teoria Literária/IEL/UNICAMP,
1987.
_____________________________. Tietê, Tejo, Sena: A Obra de Paulo Prado. Campinas: Papirus, 2000.
FREYRE, Gilberto. Pessoas, coisas e animais. Organização de Edson Nery da Fonseca. Porto
Alegre e Rio de Janeiro: Globo, 1982.
SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
*
Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), Professor recém-doutor do Departamento
de Sociologia da UFRJ e autor de Aprendizado
do Brasil: a nação em busca dos seus portadores sociais (2002).