Ricardo
Augusto dos Santos*
Aluízio
Alves Filho me surpreende com o livro As Metamorfoses do Jeca Tatu. Estou tentando passar para a tela o
prazer de ler este texto. Faço somente algumas observações.
Uma
pergunta se impõe: por que o tema da representação do Jeca Tatu e, por
conseguinte, da identidade nacional vem ganhando um lugar de destaque nas
ciências sociais? Talvez porque venha cada vez mais ocupando um lugar político
em nossa sociedade. Recentemente, os jornais de grande circulação gastaram
papel discutindo a presença do tradutor nas viagens internacionais do
Presidente Luis Inácio da Silva. O Presidente domina apenas a língua
portuguesa. Houve até uma charge ironizando a dificuldade do próprio dirigente
norte-americano George Bush no domínio da língua inglesa. Satirizava dizendo
que ambos não falavam inglês. Pois não é que o nosso Jecatatuzinho, após sua transformação de homem parasita e incapaz
em prospero empreendedor, teve entre suas mudanças justamente a aprendizagem da
língua inglesa! Fala o Jeca: “—Quero falar a língua... para ir aos Estados
Unidos ver como é lá a coisa. O seu professor dizia: — O Jeca só fala inglês
agora. Não diz porco; é pig!”
Parece
que estamos sempre definindo a identidade de ser brasileiro. Uma identidade
muitas vezes criada a ferro e a muita pancada. Mas também com idéias e canções
aveludadas. Neste livro, Aluízio Alves ultrapassou a mera análise da figura do
Jeca na obra de Lobato. Este sociólogo apaixonado e competente procurou nas
metamorfoses do Jeca as raízes mais profundas das representações que
influenciam as relações sociais de nossa sociedade.
Afinal,
onde estará nossa verdadeira identidade social? Inúmeros intelectuais
responderam a esta questão, dentre eles, Monteiro Lobato. Onde residiria a
verdadeira identidade cultural do país naqueles tempos da Republica Velha? Nas
cidades reformadas segundo os padrões da cultura européia? Ou nos seus
subúrbios? Ou nos sertões abandonados? Nos “Jecas” ou nos “Dândis”?
Somos
uma nação? Nas primeiras décadas do século XX, indagações semelhantes
demonstravam uma característica bastante relevante do pensamento social e
político brasileiro da época. Momento fundamental, pois trazia à tona a questão
nacional. O horizonte intelectual daquela conjuntura possuía fronteiras
fortemente delimitadas. Havia uma sensação de inferioridade frente às nações
que viviam a era industrial. Não
éramos uma nação! Como imaginar uma Nação Brasileira olhando para a
miséria, a doença e o analfabetismo? Uma possibilidade consistia em, esquecendo
das adversidades, assumir um ufanismo romântico. Outra atitude procurou ver o
país do prisma de suas doenças e problemas. Porém, naquele período, a pergunta
que incomodava era: Seria possível
construir uma nação a partir deste Caldeirão de Raças?
Entre o
início do século XX e os últimos anos da década de 1930, diferentes grupos
sociais e intelectuais voltaram-se para a questão da identidade nacional.
Atribuindo-se uma missão patriótica e científica, diversos cientistas e
intelectuais empenharam-se em criar um saber sobre o país. Construíram
discursos sobre um conjunto de representações sociais que pretendiam orientar
os indivíduos em direção a um mundo moderno e civilizado. Para realizar esta
tarefa, estes homens foram bacharéis, poetas, literatos, médicos e educadores.
E pensaram e veicularam suas idéias a respeito de raça, amor, sexualidade,
doenças, economia, identidade nacional e nação.
Havia
uma expectativa de mudanças sociais e culturais que mobilizava diversos
segmentos urbanos, identificados e preocupados em viabilizar as condições para
a emergência de uma nova nação. Partindo de uma visão “cosmopolita” do que
constituiria um modo de viver e compreender a sociedade, estes segmentos
sociais não se omitiram em expressar e lutar por suas crenças. Uma das questões
centrais para estes grupos foi o debate sobre a identidade nacional e a forma
de mudar as condições de vida dos brasileiros. Observamos entre intelectuais,
artistas e segmentos urbanos das “camadas médias”, incluindo as burocráticas,
que havia um consenso sobre as ameaças que pairavam sobre o Brasil e, como
decorrência, foram formuladas explicações e projetos de mudança.
Como
conciliar os miseráveis, analfabetos e doentes com os cafés, cinemas e as
grandes avenidas? São perguntas que os escritores, cientistas, médicos e
políticos respondiam e que formavam a literatura e a ciência daquela
conjuntura. Perguntas que Aluízio ajuda a responder. Com rara acuidade. Sua
pesquisa é exaustiva. Sua narrativa sobre a formação do sombrio personagem é,
arrisco dizer, definitiva. Em tempos tão conservadores, de analistas frios e
distantes da realidade a ignorarem modos de vidas e culturas, a leitura do seu
“Jeca” é um sopro de vida nas ciências acadêmicas, que andam tão conservadoras.
Sua análise é apaixonada e competente.
Recentemente,
o discurso de alguns cientistas (economistas, sociólogos e etc) vem me causando
um leve desconforto, porque quando analisam a grave crise por que passa o país,
o fazem com um monumental desprezo pela vida das pessoas. Parece que estão em
algum frio e asséptico laboratório ou numa longínqua e exótica ilha dos mares
distantes, descrevendo costumes e atitudes. Leitores de Achegas... Entreguem-se
às páginas de As Metamorfoses do Jeca Tatu, com prazer, alegria e paixão
pela vida. Suspeito que os conservadores da ordem, não fazem assim.
* Ricardo
Augusto dos Santos é Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz e Mestre em Memória
Social e Documento/UNIRIO.