Marcos Marques de Oliveira *
1 - Introdução
Este artigo [1] tem o objetivo de analisar o
significado político do chamado trabalho "voluntário" e sua categoria
conexa, o "terceiro setor", no processo de privatização das políticas
públicas, especialmente as da área educacional. Por identificarmos a base
teórico-epistemológica deste projeto político no ideário da “Terceira Via”, é
que tomamos como objeto a obra do sociólogo inglês Anthony Giddens, que grande
influência vem exercendo não só em governos neo-social-democratas, como também
em partidos e movimentos políticos supostamente críticos ao neoliberalismo. A
hipótese da qual partimos é de que a nova forma de relação entre o Estado e a
sociedade civil, postulada pelos adeptos desse ideário, produz efeitos nefastos
no cotidiano das classes populares, devido a promoção
da mercantilização dos direitos sociais, que se instrumentaliza com o
redimensionamento do aparelho estatal e com as reformas que colocam em cheque
os mecanismos universalistas de intervenção e financiamento do bem-estar
social. No que tange à política educacional brasileira, acreditamos que a não
reversão da tendência de transferir as responsabilidades estatais para outras
instâncias pode ampliar ainda mais o abismo das oportunidades educacionais
entre as classes que compõem a nossa sociedade. Para o cumprimento dos
objetivos propostos, inicio com uma brevíssima exposição da vida e obra de
Giddens, na pista indicada por Karl Marx de que, ainda que “ideológica”, a
ciência burguesa ilumina elementos da realidade. No caso específico do autor em
questão, acredito que o entendimento de sua obra pode nos informar sobre como
os programas políticos são influenciados por intelectuais, assim como os
conceitos sociológicos se aproximam ou se afastam da vida cotidiana.
2 - Giddens: vida e obra
Anthony Giddens nasce em 1938, no subúrbio londrino
de Edmonton. Passa lá e em Palmers Green a sua infância, locais que ele
denomina “terra devastada”, a qual a melhor lembrança é a torcida pelo time de
futebol Tottenhan. Filho de um metroviário e de uma “do lar”, tem um irmão mais
moço que, assim como ele, tinha um sonho: “fugir das origens”. Hoje, o irmão do
sociólogo famoso é um reconhecido diretor de comerciais nos EUA (Giddens e
Pierson, 2000). Giddens tem uma vida escolar regular no ginásio local, onde
“protesta” contra os conteúdos pedagógicos com a leitura de obras de filosofia,
psicologia e antropologia. Termina o secundário e entra para a universidade
“por acaso”. Escolhe a Universidade de Hull, a que lhe parecia de mais fácil
acesso. Apesar da nota baixa, consegue ser aprovado na entrevista e vai cursar
filosofia. No entanto, influenciado pelo professor Peter Worsley, acaba optando
pela sociologia. Da turma, porém, é o único a não ingressar na “sociedade
socialista” do professor.
Hull, no norte da Inglaterra, é uma cidade
pesqueira próxima a outras cidades operárias, como Yorkshire, uma comunidade
mineira, a forma mais visível de uma “revolução industrial” que Giddens diz ter
visto. Ao fim do curso, ele vai para a Escola de Economia de Londres, devido a
uma nova sugestão do Prof. Worsley. O seu objetivo era
se tornar servidor público. Na nova casa, faz o mestrado com
uma dissertação, em suas próprias palavras, “engraçada”: Esporte e sociedade na Inglaterra
contemporânea. Logo após, torna-se professor de sociologia da Universidade
de Leicester. É admitido após uma entrevista sobre a sua dissertação de
mestrado, que se transforma num intenso bate-papo sobre a “sociologia do
esporte”. Entre os entrevistadores, o então desconhecido Norbert Elias (o
“quase-Weber”), que ensinou a Giddens como compensar pouco talento com muito
trabalho. Ali, inicia o seu projeto acadêmico, conjugando questões
metodológicas e de teoria social, para tentar compreender uma definição do
senso comum sobre a sociologia: vista como o “estudo das pessoas que não
precisam ser estudadas”. Denomina-o de sociologia da “relação reflexiva”, cujo
objeto é a ação social humana.
Entre 1968 e 1969, vai para a América do Norte. De
Vancouver segue para a Califórnia, onde mantém contato com o “radicalismo
populista” de T. Bottomore, símbolo da esquerda americana: idéias radicais e
vida burguesa. Enfrenta o clímax da contra-cultura, a qual considera uma
espécie de cristianismo primitivo ou de barbarismo na queda de Roma. Do
desbunde, seleciona como interessante os movimentos de emancipação (mulheres,
ambientais, de direitos humanos, etc.), assim como o predomínio de uma visão
marxista anticomunista. É nesse período que lança seu primeiro livro: Capitalismo e Moderna Teoria Social (Giddens,
1994). Volta à Europa para ingressar em Cambridge. Na Faculdade de Economia, dá
uma nova dimensão ao seu projeto acadêmico, que se posta como uma
“reinterpretação da história do pensamento social”, com os seguintes fins: a)
reconstrução da lógica e do método sociológico; b) análise das modernas
instituições sociais. O primeiro passo é aprender alemão para ler Marx, Weber,
Hursserl e Heidegger nos textos originais.
Em 1984, ocorre um grande salto em sua carreira com
a editora Polity Press, cujo objetivo
era fazer uma ponte entre o pensamento anglo-saxão e o “europeu”. Em 1987,
inaugura a cátedra de sociologia em Cambridge e, em 1988, a faculdade de
ciências sociais – a primeira a ser criada em 50 anos naquela instituição.
Depois de inúmeros livros, Giddens volta à Escola de Economia de Londres como
reitor, no mesmo ano em que o Partido Trabalhista, após 20 anos, vence as
eleições. Ele se junta a Tony Blair na reestruturação do “novo trabalhismo”
inglês, que tenta se desvencilhar de antigas idéias welferianas para ter uma
influência concreta e prática na atual modernidade. A Escola de Economia tem
neste projeto um papel muito importante. Giddens lembra que ela foi o berço, na
década de 40, das idéias e políticas fundamentais do Estado de Bem-estar
Social, assim como da “contra-revolução” liberal (tendo em Hayek, um de seus
professores, o principal articulador). Nessa nova fase, a universidade deveria
ser a fonte da Terceira Via, do novo caminho posto entre a social-democracia e
o neoliberalismo, cujas características básicas apontamos a seguir.
3 - As bases da 3ª Via
A base epistemológica deste projeto político é a
sua Teoria da Estruturação, que a
partir das lições dos clássicos da sociologia, rejeita a visão linear do
progresso histórico presente no marxismo e tenta captar a relação dialética
entre solidariedade social (de inspiração durkheimiana) e ação humana (de
inspiração weberiana). Sobre a forma de se pensar o social em termos classistas,
o autor afirma: “A idéia do conflito de classes como mola da história
certamente deve ser rejeitada. Dizer que esse conflito é a força motriz da
mudança histórica não convence” (Giddens e Pierson, 2000, p. 52). Ele não nega
as diferenças classistas produzidas pelo sistema capital, admitindo até que a
globalização tenha ampliado as desigualdades sociais. Mas o que ocorreu foram
“novos processos de exclusão”, com a formação de uma classe cosmopolita global.
Isto é: o aumento da “mobilidade do capital” frente ao trabalho fez com que o
Estado perdesse funcionalidade e os posicionamentos políticos se tornaram
desvinculados das diferenças de classe. Giddens, em conseqüência, se diz
descrente de uma ação política internacional apoiada nas classes dominadas, já
que as forças básicas da economia não resultam de atividades de uma classe
dirigente capitalista específica. “Ninguém controla os mercados financeiros”
(idem, 53).
O fato de vivermos uma “forma mais pura” de
capitalismo não significa que exista uma dialética da história condutora de uma
transição para algum tipo de socialismo mundial. E mesmo que houvesse algum processo evolutivo, “o socialismo está morto como modelo de
organização econômica capaz” de superar as limitações do capitalismo
(idem, 54). O que é possível? Promover um arranjo político que consiga
desenvolver uma sociedade global cosmopolita, baseada em
princípios ecologicamente aceitáveis, em que se produz uma geração de
riquezas com controle das desigualdades. Uma política de manutenção do “espírito
ético do capitalismo”. Neste projeto, os agentes são: Estados,
grupos de Estados, empresas, organizações internacionais, indivíduos e
grupos comunitários – todos conscientes da necessidade de uma regeneração da
relação entre o global e o local, para se evitar o colapso do Planeta. Na
concepção de Giddens, assume-se que o mercado gera desigualdades, mas, por não
haver determinismo de qualquer espécie, o próprio capitalismo tem condições de
amenizá-las. Mas isto só poderá ocorrer se houver uma renovação na relação
Estado/sociedade civil. O que, por sua vez, demanda um novo Estado.
4 - Por uma nova relação Estado/sociedade civil
Do ponto de vista giddeniano, a recuperação da
legitimidade do poder estatal depende de sua capacidade de descentralização,
transparência e abertura. Se possível, aprender com a prática empresarial,
instituindo os seguintes mecanismos: controle de metas, auditorias, estruturas
flexíveis e mais participação (democracia direta). O Estado, porém, para “ser
melhor que as empresas”, deve buscar a neutralidade:
não ter inimigos. Ou seja, deve ser cosmopolita em sua forma
e essência, articulando tanto o global e o local, quanto os interesses
divergentes internos a uma sociedade. Como? Pela promoção da sociedade
civil, através de uma teoria política que aumente a solidariedade social e
diminua as diferenças econômicas. A parceria entre governo e sociedade civil é
base, portanto, desta renovação da social-democracia de caráter comunitarista.
Os agentes dessa renovação estão no chamado “terceiro setor”, as associações
voluntárias, que se caracterizam pela flexibilidade de suas ações e pela
capacidade de autogoverno – fontes, portanto, de um novo sentimento de
pertencimento e de bases dos valores pós-materialistas.
É com base nesses pressupostos que Giddens, sem
fazer uma “crítica das críticas”, não deixa de colocar a 3ª Via como a “única”
forma de realizar as promessas da social-democracia: justiça e solidariedade
social. Isto porque, argumenta ele, ela é a única capaz de lidar, “de maneira
sofisticada”, com as questões da desigualdade e do corporativismo. Afirma ainda
que sua principal virtude é a de não ser um programa de um único partido ou
país: é um programa completo de modernização política. E moderno aqui significa
admitir a eficiência do mercado na criação de riqueza e o fato do capital
privado ser essencial para o investimento social – isso sem questionar a origem
deste capital. Moderno aqui, portanto, significa admitir que o Estado pode
criar desigualdades – isso sem questionar as estruturas de poder do capital
sobre a ação estatal que produzem estas desigualdades.
Desta forma, Giddens substitui a “mão invisível” de
Adam Smith pelo conceito de “currículo oculto”, que seria a capacidade de um
mercado bem regulado produzir paz social. Apesar de imposto pela força, o
capitalismo torna-se um sistema estável de relações sociais pela capacidade de
fazer com que os consumidores possam escolher livremente os mais variados
produtos. O mercado, acredita o autor, favorece
atitudes responsáveis porque demanda cálculo e raciocínio – e não decisões
burocráticas. Mas para não engendrar um comercialismo, é preciso ajuste e
controle externo, que fornecerão os princípios éticos garantidos pela lei. Para
frear os efeitos perversos da “energia empresarial”, que tende a criar
monopólios, invoca-se o chamado “investimento em capital humano”, a ser nutrido
pela ação conjunta do Estado, da família e das comunidades. O ideário da
Terceira Via comporta, portanto, um viés keynesiano — ainda que restrito à
intervenção colaborativa.
E o principal instrumento desta intervenção
colaborativa, como já identificado, são os grupos que compõe o Terceiro Setor, a parte “mais dinâmica” da sociedade civil. Junto com o
governo e a economia, este se torna um importante centro de poder decisório, um
relevante ator para a constituição de um novo contrato social, em que os
direitos são encadeados com responsabilidades sociais. Através destas agências
é que o Estado pode promover o investimento em capital humano e, assim, se
tornar um “Estado de investimento social”, no qual predomina uma nova economia
mista. Sua função é a de promover a maximização da “igualdade de
oportunidades”, que vai substituir os antigos mecanismos de welfare, que criou
novas formas de exclusão. A ressurreição das instituições públicas depende,
ainda, de uma visão pluralista da estrutura social, substituta da noção monista
presente no estatismo ineficiente e hierarquizado. O que se quer é um Estado
Forte, não um Estado Grande.
A democratização da democracia deve levar em conta,
para tanto, a preocupação sobre os problemas cotidianos, o que só pode ocorrer
com a devolução do poder ao local. O comunitarismo surge como remédio eficaz
para a desintegração social advinda do predomínio do mercado e sua ideologia
individualista. Seu fim é a restauração das virtudes cívicas e a sustentação
dos fundamentos morais da sociedade. O “eu” ancorado na comunidade pressupõe a
defesa da visão familiar, a revalorização das etnias, religiões e nacionalismos
(desde que “sem” Estados). É esta a essência do “cidadão reflexivo” giddeniano,
produto paradoxal do que se chama globalização. E na globalização que Giddens
vê, as pequenas e médias empresas são as organizações que congregam os
reflexivos cidadãos da economia digital, portadores dos germes de dinamismo
capazes de lidar com os riscos da pós-modernidade.
Mais incerteza é sinônimo de mais oportunidades, de lucro e inovação. E para
inovar é preciso investir em conhecimento, principalmente nos chamados setores
dinâmicos (finanças, computação, telecomunicações, biotecnologia e
comunicação).
A base de tudo, entretanto, é a educação. Diz
Giddens (2001, p. 78): “A principal força no
desenvolvimento de capital humano obviamente deve ser a educação. É o principal
investimento público que pode estimular a eficiência econômica e a coesão
cívica”. Não uma educação estática, baseada na formação
para a vida adulta. Mas educação para adquirir competências a serem
desenvolvidas ao longo da vida. Para cumprir essa e outras funções sociais, o
Estado é importante. Mas ele deve atuar mais como fomentador do que como
fornecedor dos serviços. É aí que as agências do Terceiro Setor ganham um papel
específico.
Antes consideradas como refugo para cessão de
dinheiro excedente e equipamentos obsoletos, as chamadas organizações
não-governamentais (ONGs) sem fins lucrativos não se
portam mais como filantropas frias e distantes, mas como incubadoras de novas
oportunidades de inovação das relações sociais. Os motivos: a) combinam
eficácia nos negócios com estímulo social; b) são uma alternativa para as
desvantagens do mercado, associadas à maximização do lucro, e do governo,
burocrata e inoperante; c) dão conta do binômio liberal
flexibilidade-eficiência e do seu oposto socialista equidade-previsibilidade. O
welfare positivo, portanto, admite o risco da desregulação do mercado de
trabalho porque esta é a única forma de gerar riqueza. A Terceira Via, nesse
sentido, posta-se como um arsenal teórico-psicológico
que tem como diretriz a idéia de “capital humano”, substitutivo da noção de
direitos sociais absolutos, que pressupõe o fornecimento direto do sustento
econômico pelo Estado. Com a noção de capital humano, temos um projeto político-pedagógico atemporal que tem
como objetivo a constituição de um novo sujeito, agente da “portabilidade de
capacidade”, pronto para um novo contrato social baseado na autonomia e no
desenvolvimento pessoal.
Giddens faz uma ressalva interessante: os mais
ricos são os mais “associativos”. Os mais pobres não estão integrados, longe de
qualquer envolvimento cívico. É isso que justifica a necessidade dos
empreendimentos econômico-sociais, que liderados por jovens líderes
empresariais, podem, conjuntamente com os órgãos governamentais, introduzir nas
comunidades carentes o chamado “planejamento participativo”. Fundamental para
isso é a atividade empresarial-social, principalmente através da educação, pela
qual se pode promover o que chama de “redistribuição das possibilidades”. O “welfare positivo”, com base neste “novo
sujeito social” e na nova relação Estado / sociedade civil, traz as seguintes
promessas: substituição da carência pela autonomia, da doença pela saúde ativa,
da ignorância pela educação permanente, da sordidez pelo bem-estar e da
ociosidade pela iniciativa.
5 - Empreendedorismo social
Em A terceira
via e seus críticos, Giddens
(2001) lembra que o welfare
foi criado para sustar a ameaça socialista. Num mundo em que não há mais esta
ameaça, a Terceira Via surge como a mais sofisticada forma de se frear o ímpeto
neoliberal, já que é a única teoria política que conjuga proteção, assistência
e liberdade. É, assim, um instrumento de superação dos efeitos perversos do “welfare burocrático”. Assim como fez no
livro antecedente (Giddens, 2000), ele reforça as distinções entre a
"velha esquerda" e os neoliberais para precisar melhor a nova
alternativa.
Localiza sua base nas propostas dos novos
democratas americanos e dos neo-trabalhistas ingleses:
uma ação política para um mundo em mudança, no qual as “grandes instituições”
não asseguram mais o “contrato social”. Afirma o autor: “O advento de novos
mercados globais e a economia do conhecimento, aliados ao fim da Guerra Fria,
afetaram a capacidade dos governos nacionais de administrar a vida econômica e
proporcionar um leque sempre crescente de benefícios sociais” (Giddens, 2001,
12). As pedras fundamentais desse “novo progressismo” são: oportunidades
iguais, responsabilidade social e mobilização de cidadãos e comunidades. Política pública aqui é sinônimo de incentivo à criação de
riqueza e não mais de redistribuição pela burocracia de Estado. Resumo do
programa: disciplina fiscal, reforma do sistema de saúde, investimento em
educação (e treinamento), obras sociais, renovação urbana e posição firme
contra o crime.
Entretanto, na visão de Jeff Faux, por sua
amplitude, a Terceira Via apresenta-se como “uma substância intelectual
amorfa”. Ela falha em todos os seus propósitos: a) na análise que faz da velha
esquerda; b) na perspectiva de se tornar uma base para a reconstrução
social-democrata; c) no esforço em se constituir em estratégia plausível para
lidar com as questões do pós-guerra Fria. O que ela tem de melhor é o seu
caráter de tática eleitoral, apoiada em velhas teses conservadoras que
contribuíram para o declínio da legitimidade da ação governamental e o
fortalecimento do setor corporativo multinacional. Ao tentar expandir
oportunidades sem tocar na questão da distribuição desigual de riqueza e poder,
a Terceira Via não passa de um compromisso político entre esquerda e direita,
com predominância da última. Para Stuart Hall, a única coisa que ela tem de
radical é a sua afirmação ao centro. Aceita o mundo como tal, corroborando com
uma saída para o conflito fora do conflito. Como? Naturaliza a globalização,
absorve a crença da auto-regulação do mercado e aceita a substituição do
cidadão pelo consumidor.
No que diz respeito diretamente ao papel do
Terceiro Setor neste processo, vale considerar que, por ter como base o
trabalho voluntário e as doações dos que podem dispor de dinheiro e tempo
livre, o empresariamento social, praticado principalmente pela ONGs, desobriga o Estado do financiamento dos recursos que
deveriam garantir os direitos do cidadão, agora reduzidos a um mínimo
pré-contratual. Ou, no máximo, temos um retorno ao contrato liberal individualista,
moldado na idéia do contrato de direito civil entre indivíduos, um instrumento
vigente nos períodos iniciais da acumulação de capital. Com isso, temos a
destituição da idéia de contrato social entre agregações coletivas de
interesses sociais divergentes e o confisco dos direitos de cidadania, processo
que nos ameaça como a sombra de um Estado hobbesiano.
E é justamente para amenizar os efeitos perversos
deste “novo contrato leonino” que a indústria da mídia cumpre o seu papel de
fabricar novelas de esperança e amizade com o intuito de assegurar o efetivo
processo de privatização das políticas sociais (saúde, segurança, habitação e
educação). Na verdade, o que se pode ver nas entrelinhas da exaltação ao
Terceiro Setor é que o seu “sucesso” é um novo recurso de Estado, cujos
interesses expressos é a aceitação da desigualdade como natural e, até mesmo,
desejável. Isto porque as ONGS não são vistas como meios de resolução de alguns
problemas sociais; meios que deveriam se exaurir ou quando fossem conquistados
seus micro-objetivos ou quando não houvesse mais condições estruturais de
produção da desigualdade. São tidas como uma nova indústria, um novo “setor” de
produção que cria suas próprias condições de perpetuação e sobrevivência.
Torna-se não um meio, mas um fim em si mesmo. Um novo campo de
empreendedorismo, o lugar do “empresário social”, aquele que lucra com a
desgraça alheia a partir de sua perspicácia individual em descobrir novas e
eternas necessidades humanas.
A exaltação ao Terceiro Setor, a meu ver, promove a
despolitização da sociedade civil através da desmobilização e fragmentação da
classe trabalhadora, processos tidos também como “naturais”. Aparece, portanto,
como um importante instrumento para a constituição de uma
relação Estado / sociedade civil dominada pelas forças do mercado.
6 - Conclusão
Nosso objetivo aqui foi fortalecer a hipótese de
que os efeitos do trabalho voluntário e do associativismo solidário no sistema
educacional merecem a atenção dos que se preocupam com o ensino público brasileiro.
Como já defendi em outros momentos (Oliveira, 2003a e 2003b), é preciso
investigar a fundo os pressupostos e as promessas que fundamentam o debate
sobre o papel do chamado Terceiro Setor na atual etapa de acumulação de
capital, que coincide com a suposta derrocada do ideário neoliberal e o
fortalecimento de um novo ideal societário baseado em atores sociais que, em
tese, conjugam virtudes e benefícios dos setores público e privado, sem
carregar seus vícios (a ineficiência, no primeiro caso, e o interesse
de lucro, no segundo).
Originalmente denominados de organizações
não-governamentais (ONGs), tais atores vêm, nos
últimos anos, assumindo a execução de inúmeras políticas públicas. Sob intensa
profissionalização, as atualmente chamadas organizações sociais (OSs) vêm abarcando grande parte de recursos governamentais e
privados com a tarefa de promover ações sociais antes de responsabilidade
estatal. Como defende Montaño (2002), as apologias sobre o papel do Terceiro
Setor no trato das questões sociais é sintoma da hegemonia do ideário
neoliberal, e não o seu contrário. São, desta forma, discursos que justificam,
estimulam e escamoteiam a retirada das políticas estatais de universalização
compulsória de acesso e financiamento dos direitos sociais (principalmente
educação, saúde e segurança) em prol da proliferação de agentes privados que
executam políticas sociais mitigadas. Abre-se, assim, um vasto campo para um
novo processo de acumulação de capital com a mercantilização dos direitos
sociais, vistos agora não mais como obrigação do Estado para com seus cidadãos,
mas como dever individual de execução ou recebimento (dependendo de qual lugar
se ocupa na estrutura de classes).
Um outro sociólogo, o brasileiro Florestan
Fernandes, já afirmava, em 1960, que sob o disfarce de motivos ideológicos, de
fins altruísticos e de realizações econômicas são organizados movimentos
sociais que arrastam em seu bojo pessoas que poderiam ser qualificadas de
“inocentes” (com relação à consciência dos fins reais dos movimentos de que
participam ou ao qual aderem), já que é extremamente difícil para grande parte
da população, devido às condições modernas de existência social, descobrir o
real sentido dos respectivos movimentos (Oliveira, 2003a). Os prejuízos morais
e materiais que sofrem só são percebidos tardiamente. O exemplo que o sociólogo
cita é justamente o “modelo” preferido dos ideólogos do neoliberalismo, o
norte-americano, onde vários “movimentos sociais” com fins altruísticos
aparentes são organizados para levantar fundos e mobilizar as energias humanas
requeridas pela luta contra determinado efeito indesejável, mas que no fundo
acabam por satisfazer necessidades egoísticas dos manipuladores profissionais.
No I Congresso Nacional de Educação (I CONED),
realizado no ano de 1996, um outro pensador do sistema educacional brasileiro,
Demerval Saviani (apud Silva, 1998), fez o seguinte alerta:
A situação
tende a se agravar atingindo limites intoleráveis num contexto como o de hoje
em que o Estado busca demitir-se de suas responsabilidades transferindo-as para
outras instâncias. Com efeito, a orientação neoliberal adotada pelo governo
Collor e agora pelo de Fernando Henrique Cardoso vem se caracterizando por
políticas claudicantes: combinam um discurso que reconhece a importância da
educação com a redução dos investimentos na área e apelos à iniciativa privada
e organizações não-governamentais, como se a responsabilidade do Estado em
matéria de educação pudesse ser transferida para uma etérea “boa vontade
pública”.
Frente à política social do atual governo, que
parece não diferir dos anteriores, registro, por fim, a afirmação feita pelo Prof. Gaudêncio Frigotto, no 2º Seminário Nacional de
Educação do CEFET-Campos, em agosto de 2003, de que a educação pública para uma
sociedade democrática, ainda que possa contar com a contribuição de “amigos” e
“voluntários”, não pode prescindir, em nenhuma hipótese, do profissionalismo
dos “servidores” do público, capacitados e apoiados por um Estado comprometido
com o desenvolvimento de uma democracia substantiva e popular.
Notas
[1]
Síntese da comunicação “Terceiro setor, voluntariado e educação: os caminhos
giddenianos para a privatização do público”, feita no III Seminário Nacional da
Faculdade de Educação da UFF, realizado de 3 a 5 de
Setembro de 2003, sob o tema “Educação e Poder: Tensões de um país em mudança”.
Referências Bibliográficas
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Anthony. Capitalismo e moderna teoria
social. Lisboa: Editorial Presença, 1994. (4ª Edição)
_________.
Giddens rejeita a brasilização. Mais!, Folha de S. Paulo, 23 de Maio de 1999.
_________. A terceira via: reflexões sobre o impasse
político atual e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Record,
2000.
_________. A terceira via e seus críticos. Rio de
Janeiro: Record, 2001.
GIDDENS, Anthony e
PIERSON, Christopher. Conversas com Anthony Giddens: o sentido da
modernidade. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2000.
MONTAÑO, Carlos. O terceiro setor e questão social - crítica
ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002.
OLIVEIRA, Marcos Marques de. A
mercantilização dos direitos e os novos dilemas da educação brasileira (p.
92-99). ANDES, Revista Universidade e
Sociedade, v. 13, n. 30, Jun. 2003a.
________. Demissões nas
redações: os carrascos “voluntários” da mídia. Observatório da Imprensa, 24 jun. 2003b. (www.observatóriodaimprensa.com.br).
SILVA, Otávio Luiz Machado. A educação na Assembléia Nacional
Constituinte sob a ótica de Florestan Fernandes: um esdtudo da participação
popular nos quadros da democracia da Nova República. UFOP/ICHS, Relatório
de Projeto de Pesquisa junto à Pró-Reitoria de Pós-graduação. Ouro Preto, abril
de 1998.
Resumo:
O propósito
é analisar o significado político do chamado trabalho "voluntário" e
sua categoria conexa, o "terceiro setor", no processo de privatização
das políticas públicas, centralmente na área da educação. Para realizar tal tarefa tomamos como
principal referência teórica a obra do sociólogo
inglês Anthony Giddens, que vem exercendo considerável influência em governos
neo-social-democratas e em partidos e movimentos políticos supostamente
críticos do neoliberalismo.
Palavras-chave:
terceiro setor, voluntariado, terceira via, ONGs.
* Marcos Marques de Oliveira é jornalista, cientista
político e doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade
Federal Fluminense, onde participa como pesquisador do Coletivo de Estudos
de Política Educacional. Autor de “Os empresários da educação e o sindicalismo
patronal” (Edusf, 2002) e “O desenvolvimento da ação sindical do ensino privado
brasileiro” (Preal/FGV-RJ, 2001).