NEOCORPORATIVISMO, FMI E O PRIMEIRO ANO DO GOVERNO LULA

 

Valter Duarte*

 

            Se governar fosse em tudo uma questão de ordem moral, até que se poderia esperar alguma coisa de novo de uma Presidência exercida pelo PT. Mas é de ordem política, e aí muda muito. Política implica força, violência, não importa que seja só para decidir, como Maquiavel e outros grandes pensadores deram a entender. Isso não parece ser bem compreendido pelo novo presidente, que se sabe onde está a sua força - nos trabalhadores e num grande contingente de idealistas - tem até medo de pensar nela, quanto mais de engrandecê-la, de organizá-la e de usá-la. Lula não se considera eleito para isso.

            A maneira como se conduz o combate à fome esclarece muito bem como o atual governo tende a se definir. Não se trata de preveni-la. Isto seria uma questão política. Trata-se de remediá-la, que até poderia ser uma válida providência emergencial, desde que se pensasse em atacar as suas causas, mas é apenas medida moralista, conservadora, por isso mesmo em condições de estar unindo tanto os seus produtores quanto as suas vítimas.

            Assim, com pouca intencionalidade política e sujeito à pressão dos comandantes externos de nossa história logo após o período de entreguismo de Fernando Henrique Cardoso, Lula abre passagem para as mesmas teorias e técnicas governamentais que assolaram o país nas últimas décadas. Não adiantaria pedir nada de novo a seus ministros e assessores. Cursaram as mesmas escolas de seus precedentes. Divergem apenas quanto à hora e à pertinência de se tomar essa ou aquela medida, nada mais. Não sabem nada de diferente; nem tentam saber; nem querem tentar. Desse modo, quando se fala em mudança, já se sabe que só pode ser a relativa à representação social dos fatos, não a dos fatos em si.

            Com efeito, é por aí a grande novidade, para o Brasil e para o mundo. É o mais alto ponto a que se chegou até agora no objetivo de se estabelecer para qualquer ampla e extremada conjuntura de desigualdades sociais capitalista uma forma de controle voltada para minimizar a força de seus antagonismos e para conservá-la. O imenso problema criado pelo crescimento da classe operária no século XIX na Europa, com todas as suas conseqüências posteriormente espalhadas pelo mundo, tem hoje na eleição e na posse de Lula, antigo torneiro mecânico e veterano político profissional, uma preciosa representação da solução atualmente mais escolhida para esse controle: o neocorporativismo. Por ironia, uma solução destinada a unir alguns dos extremos do capitalismo: os da produção, burgueses e operários, e os de suas doutrinas de comando, liberais e fascistas. Não podemos esquecer: a classe operária é o maior contingente humano das sociedades industrializadas desde pelo menos a segunda metade do século XIX, portanto, o seu maior problema, o seu maior objeto de políticas de controle social, maior ainda se acrescentarmos a ela os demais assalariados.

             Se nós lembrarmos das preocupações de Lenin em O Estado e a Revolução não teremos dificuldades de começarmos a entender do que se trata[1]. Rigoroso e inflexível na tese de que o Estado seria produto do caráter inconciliável da luta de classes e de este que só poderia desaparecer junto com elas desde que a classe operária cumprisse um papel revolucionário, dirigiu esse trabalho contra duas posições políticas: a dos anarquistas, que pretendiam a supressão imediata do Estado em caso de vitória revolucionária, e a dos partidos da chamada social-democracia, nos quais, entre as muitas correntes, tendia a dominá-los a orientada para a conciliação entre as classes.

            É para esta política de conciliação entre as classes que chamamos a atenção. Mas desde já esclarecemos que a posição de Lenin em relação a ela e ao papel histórico da classe operária não será referência para julgarmos a validade da orientação social-democrata seja diante do que for. Para nós, a posição de Lenin contra ela não é senão referência de sua existência e de sua influência no início do século XX, e também um meio de mostrarmos as suas relações conflitantes com pelo menos uma das muitas posições em relação à classe operária tomadas por aqueles que diziam estar do seu lado. Isto porque, na falta de uma política de controle de todo o contingente assalariado nas teorias e nas práticas liberais, tiveram esses comandantes do capitalismo que buscá-la entre aquelas que disputavam o comando desse contingente, e nada lhes mostrou ser mais adequado a esse fim do que a política de conciliação entre as classes de raízes social-democratas.

             Porém, ela não seria por si mesma suficiente para esse controle. A grande diversidade profissional dos assalariados obrigou a um outro tipo de política de controle para complementá-la. O capitalismo havia conseguido no final do século XVIII uma vitória arrasadora sobre as formas de organização coletiva de certas profissões existentes nas antigas corporações. Fora a vitória do comando monetário da produção, que pôde valer-se das novas e revolucionárias técnicas produtivas com suas novas formas de divisão de trabalho, sobre os segredos de ofício e, assim, sobre aquele corporativismo estritamente profissional.

             O problema para o capitalismo é que os trabalhadores assalariados procurariam outras formas de organização, como as mutuais e os sindicatos, e poderiam ser levados também para formas voltadas para além das cooperativas e dos limites das relações de trabalho, como seriam os partidos políticos e a Internacional. Era preciso, então, disputar com anarquistas, socialistas e comunistas a orientação ou o comando da participação operária nas questões sociais mais abrangentes. Para essa questão, porém, apesar de todo o seu desenvolvimento, o capitalismo ainda não se havia preparado com um mínimo sequer de teoria. Suas principais bases teóricas eram contra o absolutismo, centralizações políticas inflexíveis em geral ou qualquer forma de arbítrio no comando de poderes executivos. Por isso, elas tinham como temas delas decorrentes justamente aqueles que diziam respeito a representação política e a liberdade individual, especialmente a de ser proprietário privado de meios de produção e a de usar dinheiro para ganhar mais dinheiro. Essas bases não tratavam da possibilidade do explosivo crescimento das populações operárias, das suas grandes concentrações nos centros urbanos e, sobretudo, não tratavam da necessidade de se ter uma política de controle voltada para elas. Devido mesmo a seus principais temas, obrigava-se, por estratégia, a evitar ao máximo tratar de questões relativas à violência nas relações de trabalho e das questões relativas às condições de vida das massas trabalhadoras em geral.

            Na diversidade européia não houve uma solução única ou uma que fosse padrão para todas as outras. É possível destacar, todavia, um conflito entre a confiança nos ideais liberais, provavelmente associada ao ideal de “laissez-faire” e apoiada na discutível interpretação dada pelos homens práticos do capitalismo aos trabalhos clássicos da Economia[2], e as dúvidas levantadas a respeito da eficiência das instituições políticas liberais tanto em termos de aproveitamento das possibilidades burguesas quanto em termos de controle social sobre as massas operárias. Mas esse conflito não terá se mostrado totalmente insuperável. Apesar de todo discurso em contrário ao liberalismo, e com a pretensão de terem com o que substituí-lo na organização do capitalismo, Pareto, Mosca, Manoilesco e os intelectuais fascistas deixaram contribuições que, em tempos mais distantes da Segunda Guerra Mundial, momento máximo dessa oposição, começariam a ser aproveitadas, exatamente em termos de políticas de controle da classe operária. Eles tinham, de suas raízes, para desenvolver e contribuir, um ponto que o liberalismo podia ter em sentimento, em tendência, mas não em teoria ou em práticas bem definidas: o anticomunismo.

             Como surpresa histórica, porém, os desacertos da política externa das potências européias que representavam esses dois lados levaram a fazer do “grande inimigo”, da potência representante da revolução operária, a União Soviética, uma grande aliada, ora de um lado, com o tratado de não-agressão germano-soviético, ora de outro, quando esse tratado foi rompido pela Operação Barbarrossa. Com isso, a insistência e a resistência de Churchill contra o Eixo foram recompensadas. Ele conseguiu organizar, ao lado da aliança antinazifascista com Stalin, a liderança dos que não pretendiam repartir com os alemães, ou talvez a partir disso até ceder-lhes, as suas partes no comando mundial do capitalismo e, desse modo, abriu o caminho pelo qual salvaria o liberalismo, do qual a Inglaterra fora a origem e a glória. Não aceitou, mesmo em favor de seu anticomunismo, aliar-se aos alemães e pagar uma vitória contra a União Soviética com o fim dos valores em torno dos quais, e espalhando-os, seu país chegara no século XIX à liderança da maior ordem internacional da história.

            Sem dúvida, a União Soviética era um caso à parte. Podia até ser que fosse mais grave para o capitalismo. Contra ela, no entanto, não haveria outra invasão e sim uma guerra incruenta, que teria confrontos e provocações de todos os tipos em relação às condições de vida das populações dos dois lados e até corrida armamentista e corrida espacial: a Guerra Fria. Coisa típica da cultura política anglicana, herdeira da cultura judaico-cristã, na qual se dá preferência ao domínio por meios incruentos, especialmente por meio de valores, e, mais uma vez lembrando Maquiavel, na qual se deixa a violência para ser usada em último caso, só para decidir; o que não é próprio do procedimento germânico, o qual tem raízes em uma cultura política de imediato emprego e explicitação da força de quem a tem maior, do mais poderoso.

             Mas, antes mesmo que a guerra terminasse, fez-se necessário cuidar do planejamento e da organização do capitalismo em todos os níveis para os tempos subsequentes. Por isso, em 1944, começou nos Estados Unidos a Conferência de Breton Woods, com representantes de 45 países sob inquestionável liderança anglo-americana. Dizia respeito ao estabelecimento de uma ordem monetária internacional. Era uma clara indicação de que a Teoria Geral do Juro do Emprego e do Dinheiro de John Maynard Keynes, publicada em 1936, já exercia considerável e decisiva influência. E não importa que seu autor não tenha conseguido fazer valer as suas propostas naquela conferência e que as pretensões dos Estados Unidos tenham prevalecido. As suas idéias sobre dinheiro já orientavam também os que ali o venceram. Em rigor, da mesma maneira que Keynes dizia não ser neutro o dinheiro, conforme pregava o pensamento de economistas clássicos e neoclássicos, os americanos em Breton Woods praticamente disseram a Keynes que desse modo era uma não-neutralidade política. E tomaram o comando monetário da maior parte do mundo.

             Assim, para compor essa nova ordem, criaram na mesma conferência o Banco Mundial e o FMI, que equivalem a confissões de que o capitalismo produz inevitavelmente desigualdades; o que não lhe é contraditório, uma vez que foi em um quadro geral de desigualdades que se organizou para começar sua história e é a partir de quadros assim que está sempre a recomeçá-la. O problema é que, para que isso fosse reconhecido, não bem para ser divulgado e amplamente sabido, e sim apenas para orientar a sua organização e o seu planejamento, era preciso vencer a influência dos pensamentos clássico e neoclássico da Economia, nos quais a idéia de equilíbrio predominava, sem dúvida, com o significado de justiça social que trazia em si. Neste ponto, além da existência da União Soviética, da ameaçadora depressão dos anos 30, da rápida recuperação da Alemanha nazista naqueles anos e tudo aquilo que enfim tornava aconselhável o combate às desigualdades, havia na Teoria Geral de Keynes também indicações, embora muito discretas, de que elas eram inevitáveis e tinham de ser consideradas.

              Pôs-se, então, em prática a razão de ser do Banco Mundial: uma organização financeira para cuidar de empréstimos a prazos perdidos destinados a combater os inevitáveis e infindáveis males produzidos pelo capitalismo, e também alguns dos não produzidos por ele, de modo a mantê-los sob controle social, nos limites da ordem. E pôs-se também em prática a razão de ser do FMI: tratar, principalmente, das relações monetárias entre os países e manter a capacidade de endividamento daqueles que estivessem sempre sujeitos a tomar empréstimos internacionais para seus projetos; em geral, para o que se costuma chamar de projetos de desenvolvimento. Em rigor, ligada ao financiamento de programas de controle social incruentos, organizava-se uma nova ordem monetária internacional em substituição à que houvera no século XIX, que teve o padrão-ouro como referência, como primeira medida internacional das relações comerciais, e que veio a ser abandonada aos poucos após a Primeira Guerra Mundial.         

            Com efeito, de todos os filhos da violência, um é hoje o principal meio de comando no mundo: o dinheiro. Está organizado em sistemas com os quais se comandam e se regulam as relações sociais que vão da produção ao consumo, representando com aritmética as relações entre os seus elementos naquilo que é chamado de sistema de preços relativos. São as alterações num desses sistemas, no qual a própria unidade monetária que lhe serve de medida tem um preço, que são chamadas de inflação ou de deflação. Inevitáveis, ou uma ou outra, apenas não podem atingir índices que provoquem resultados sociais incontroláveis. Das duas, prefere-se a inflação, com certeza, desde que pequena, uma vez que mais favorável ao aumento das atividades burguesas, que são as atividades de comando no capitalismo.

             E apesar de todos os desvios de atenção causados pela Economia Política, não estão completamente obscuras a produção contemporânea de dinheiro pelos governos, a territorialidade que estes lhe passam e garantem, nem os outros componentes políticos que o constituem. Do mesmo modo, não está completamente obscura a transição pela qual as moedas passaram na Antigüidade: de objetos muitas vezes apenas de afirmação do poder e da liderança de reis para o seu explícito uso militar, quando passaram a ser objetos de pagamento de soldados em substituição aos saques que lhes eram permitidos nas vitórias. Para nós, é tudo questão de negar e esquecer que seria um objeto econômico e de tratá-lo como objeto político, como forma de representação do uso ou da possibilidade de uso de violência entre os homens. O problema é que pensar assim é perigoso para os comandantes da mais extensa ordem mundial atual. Com certeza, não se tende a permitir esse esclarecimento, uma vez que leva à conclusão de que o domínio monetário de um país sobre outro ou em uma ordem mundial jamais é econômico, pacífico, tal como é representado. É sempre um domínio político. E são imprevisíveis as conseqüências de se pensar deste modo.

             Um domínio monetário é um domínio político sem a necessidade de se explicitar a possibilidade de violência para conquistá-lo ou mantê-lo. Jamais se torna independente da violência e muitas vezes tem de ser conquistado ou mantido às suas custas. Em geral, isso ocorre quando um item de um sistema de preços relativos, e especialmente quando se trata de item de grande importância no abastecimento de uma cadeia produtiva monetariamente comandada, não está sob o controle do emissor da moeda. E de todos os itens que têm essa possibilidade, o petróleo é o que mais freqüentemente ameaça escapar do controle. O fato de o país emissor da moeda com a qual mais extensivamente se comanda no mundo, os Estados Unidos, não produzi-lo de modo a ser auto-suficiente faz com que tenha de promover constantes intervenções cruentas ou incruentas nos seus principais produtores mundiais, os países da OPEP. Caso não as promova, estará sujeito a sofrer alterações em seu sistema de preços relativos com uma conseqüente perda de poder de comando da sua moeda, o que pode se espalhar por todos os sistemas monetários a ele subordinados. E nos dias de hoje os problemas para se comandar o mundo com o sistema do dólar aumentaram. A Europa continental adotou uma moeda internacional para competir com a moeda americana e qualquer descuido ou perda de influência poderá implicar a necessidade de os americanos aceitarem repartir o comando monetário do mundo, o que não parece ser muito desejável nem por eles nem pelos seus parceiros ingleses.

             É considerando esse quadro, certamente resumido e incompleto, que desejamos começar a pensar o atual governo brasileiro: o de Lula, um pouco antes de completar um ano. Com certeza, não esquecemos a nossa história, principalmente a recente. Ela teve, entre outras coisas, o combate a Getúlio e a toda legislação de proteção social que deixou; a ditadura militar durante a qual começou o processo de reciclagem de valores para o qual esse combate foi destinado; a decisão de Geisel, imprevista e inconveniente para os condutores desse combate, de industrializar o Brasil com endividamento externo; o crescente processo inflacionário a que se chegou em decorrência desse endividamento; os sensacionalistas e fracassados planos criados para acabar com a inflação; a formação de um sistema de preços relativos em uma nova moeda com o qual se procurou a aproximação com a relatividade dos preços dos mesmos objetos em dólares, o Plano Real, a partir do qual tem sido possível manter uma inflação mínima; e, finalmente, em grande parte devido ao crescimento dos valores individualistas na sociedade brasileira, a obtenção de uma certa regularidade de comportamento eleitoral com predomínio do que se chama de voto conservador[3].

             Para vencer as eleições presidenciais de 2002, Lula, com a certeza de que tinha um eleitorado próprio, bem consolidado nas duas eleições anteriores que havia perdido para Fernando Henrique, mas por isso mesmo insuficiente, apresentou-se disposto a compor uma espécie de frente de oposição. Sem definição doutrinária ou programática que o diferenciasse dos demais candidatos, porém muito confiante na veemência de seu moralismo, pôde ultrapassar a barreira das muitas tendências que chamamos de esquerda, que de certo modo quase obrigavam a reservar somente para elas qualquer que fosse a chapa liderada pelo PT, e escolher para a sua chapa, como candidato à Vice-Presidência, um empresário do Partido Liberal, que dessa forma tornou-se um dos avalistas de sua candidatura. Em caso de vitória seguida de governo fora do roteiro traçado, daquele roteiro não dito mas seguido por Itamar Franco e por Fernando Henrique, o seu impeachment ou a sua renúncia levariam à Presidência não o combatido e expurgado Brizola, companheiro de chapa na eleição presidencial anterior, e sim um burguês mineiro bonachão e conservador.

             Como bom conciliador das classes antagônicas, Lula teve talvez o seu mais esclarecedor momento na campanha eleitoral, no horário gratuito, no dia em que exaltou o acordo feito lá na Alemanha entre a Volkswagen e líderes sindicais brasileiros para serem mantidos durante três ou quatro anos cerca de dois mil e quinhentos empregos. Foi quando, como autêntico neocorporativista, elogiou e exaltou aquele entendimento entre patrões e empregados. Esqueceu-se, ou nem se preocupou com isso, de que o acordo fora feito no exterior, à margem da legislação brasileira, com total subserviência de operários brasileiros ao capital estrangeiro. Se, como dissera um ano antes na Folha de São Paulo um de seus diretores, já se apresentava como o candidato Luiz Inácio “Cardoso” da Silva[4], a partir daquele programa, mostrou-se capaz de superar o próprio Fernando Henrique. Se este não teve a menor preocupação nacionalista em seu governo e entregou ao capital estrangeiro setores estratégicos da produção nacional, ele, Lula, foi além em seu desprezo pelo nacionalismo e deu uma bela indicação de que não se importava em entregar ao capital estrangeiro a própria classe operária brasileira. Se o neocorporativismo diz respeito à participação da classe operária por meio de partidos e sindicatos na administração do capitalismo, coisa que pela sua origem pessoal e pela de seu partido, Fernando Henrique não tinha como fazer, Lula acrescentou a ele, com a força de sua origem operária e a do nome de seu partido, a aprovação de mais uma colaboração entreguista do velho sociólogo: a da subordinação ilegal da classe operária de um país à burguesia de outro.

             Pouco antes do primeiro turno das eleições, veio o sinal de que tudo estava correndo de acordo com a vontade de nossos supervisores: o FMI concedeu um empréstimo acima das expectativas, cujo maior efeito teria de ser uma certa estabilização monetária para o governo seguinte operar, fosse qual fosse o presidente eleito. Com isso, foi possível livrar qualquer um que viesse a ser o presidente de ter de recorrer aos bancos especuladores. Como resultado praticamente imediato, cessou a subida do dólar em relação ao real. Logo em seguida, começou a queda da moeda americana em relação à nossa até o ponto em que devia estar caso nossos governos não estivessem sob o constante risco de serem presas da especulação bancária, especulação possível devida à sempre premente necessidade do país de ter dólares para pagar os compromissos da monstruosa e perpétua dívida externa em que a ditadura militar nos meteu.

            Foi esse empréstimo o que diminuiu em muito o risco de grandes alterações no nosso sistema de preços, o risco de uma inflação alta. Sem dúvida, um voto de confiança na nossa estabilidade política, no comportamento conservador de nossos políticos e de nosso eleitorado, apesar de todo o desastre social que nos acompanha. Todavia, ele veio acompanhado de uma série de regras de conduta em relação aos gastos monetários do governo. São regras que impõem que se governe pensando principalmente em superavit. As questões sociais, por mais graves que sejam, são postas em plano secundário. O cálculo monetário se torna prioritário, subordinando a ele toda e qualquer vida, que é sempre incalculável.

             Um governo tutelado pelo FMI deve procurar, acima de tudo, preservar a confiança na sua moeda, no seu meio de distribuição de comando. Mas fazer isso com sacrifícios sociais só é possível quando as razões técnicas podem ser postas acima das razões estritamente humanas devido a estas estarem longe de porem em risco a estabilidade política. E no caso do Brasil tem sido assim. À sombra da ditadura militar, houve uma longa e bem sucedida reciclagem em favor de valores individualistas. A sociedade brasileira tomou recentemente esse caminho de transformação e essa transformação se expande cada vez mais por ela. Por isso, o governo de Fernando Henrique tem a sua reta seqüência no governo de Lula como teria no de qualquer um dos outros candidatos, à parte o do PSTU e o do PCO. São governos que se seguem, como tantos na regularidade histórica de nosso país, muito mais obedientes ao que de fora se planeja para nós do que a qualquer vontade de encontrar nossos próprios valores e neles o nosso próprio destino.

             É preciso reconhecer: apesar de tudo o que possa inspirar um presidente de origem operária de uma agremiação chamada Partido dos Trabalhadores, na hora de decidir entre socorrer uma sociedade que tende a ter agravados cada vez mais os problemas relativos à condição humana de seu povo e a obediência ao comando monetário internacional e aos técnicos que administram a sua abrangente ordem, não temos mais do que um programa assistencialista, o do combate à fome, e uma política de aceitação incondicional das prescrições do FMI acompanhada de providências no sentido de prosseguir o devastador reformismo de caráter neoliberal do governo anterior. Mas como essa opção foi feita por um presidente de origem operária e pertencente a um partido de esquerda, ganha aplausos internacionais e elogios na imprensa de todo o mundo, que em grande parte ainda não entendeu nada do que se passa por aqui ou, se entendeu, está mais do que satisfeita por ver a solução neocorporativista ser adotada com tamanha autoridade em um dos mais populosos e endividados países do mundo. Eles não sabem que por aqui há algum tempo já se fala em falta de projeto de governo e em abandono de idéias petistas por parte de Lula e de seus ministros.

            Em rigor, Lula não governa, representa, não no sentido político, e sim no sentido sociológico. E o que ele representa neste sentido sociológico e não político, um governo de trabalhadores, pode até satisfazer o imaginário de muitos, mas não é absolutamente o que está ocorrendo no Brasil. Ele cumpre um papel e representa outro. É o que o faz estar em vias de consagração como ator político. Vamos destacar com outras palavras: para corresponder às expectativas de quem nos impõe diretrizes de governo, mostra-se na Presidência, tal qual se mostrou na campanha eleitoral, capaz de cumprir o papel prescrito mas não dito pelos comandantes da história do Brasil tão bem ou até melhor do que o cumpriu Fernando Henrique. Se alguma diferença há, ela está, enquanto isso realmente ocorre, na representação do fato, que não está ocorrendo de modo algum, de que, através dele e pelas palavras dele, a classe trabalhadora está no governo.

             Como era necessário, criou-se um objetivo para a seqüência do governo. É o tipo do objetivo com pretensões de neutralidade, capaz de resolver tudo para todos: o do crescimento. Diz-se que será espetacular. A redenção depois de duas décadas perdidas. Pouco importa. Pobre do povo que é vítima desse ideal. Sua realização nada mais é do que a intensificação da prática burguesa de usar dinheiro para ganhar mais dinheiro comandando trabalho assalariado em produção e em serviços. Tem em si o simplismo da consideração de que um bom volume de emprego, com quaisquer que sejam os poderes dos salários que com tal volume se possa oferecer, tenha condições de resolver a maior parte dos problemas sociais. E para esse simplismo tem a vantagem ideológica de terem os economistas desenvolvido metréticas próprias, artes de medida para representar resultados de produção e de consumo, nas quais não se leva em consideração outros ideais de qualidade de vida, pois se faz crer que esta seja uma questão apenas de se ter mais e mais objetos de consumo à disposição e uma boa demanda efetiva para consumi-los.

             Todavia, há obstáculos a esse crescimento que, dizem os seus idealizadores, precisam ser superados. Em grande parte, são restos da legislação de proteção social criada no tempo do Estado Novo. Por isso, ataca-se a CLT por não permitir flexibilizações de contratos de trabalho, por não permitir que possam ser negociados conforme cada caso e, sobretudo, conforme a disposição de quem oferece o emprego; ataca-se também a soma de encargos sociais com a qual qualquer firma que possa oferecer os empregos tem que arcar. Ataca-se ainda as já aviltadas condições de nossa previdência social, como se o seu rombo fosse devido à sua forma de ser e não aos muitos e imensos roubos e desvios de dinheiro que sofreu em sua história. O pior é que não são apenas ataques verbais; são ataques diretos à própria legislação protetora com os quais visam influir no Poder Legislativo de modo a este finalmente modificá-la.

            Partem, então, de muitos lados, protestos contra a atual reforma da previdência e a intenção, ainda não totalmente revelada, de extinção da CLT. Como estão dispersos os opositores, e com pouquíssima organização, esses ataques vão sendo ignorados ou depreciados com discursos em contrário mesmo incrivelmente incompetentes. É o caso da avaliação que Lula tem feito das posições adotadas pelo que chama de esquerda, e de um modo pelo qual procura passar a idéia de que dela ele não faz parte. Como ela tem defendido a manutenção do que resta de nossa legislação de proteção social, ele a acusa de conservadora, o que ele não seria exatamente por não ser de esquerda. Só que seu governo patrocina uma reforma que levará nossa previdência às condições anteriores a essa legislação, às condições do liberalismo, aproximadamente, do meio do século XIX às primeiras décadas do século XX, embora nos dias de hoje encontre a burguesia preparada para oferecer essa proteção para quem pode pagá-la. Não há dúvida: a posição de Lula é reacionária, como reacionário é o neoliberalismo, apesar de sua apresentação em discursos acadêmicos sofisticados.    

            Quanto à reforma agrária, que não é absolutamente uma reforma considerada necessária para o crescimento, continua uma promessa e ainda não se tomou uma providência sequer para realizá-la; nem mesmo foi formada uma simples comissão de estudiosos para elaborar um projeto e para viabilizá-lo. Em rigor, não se tomou nem a providência de esclarecer que sozinho o Poder Executivo não pode realizá-la. É reforma que não pode ser feita sem que se altere o caráter da propriedade privada, especialmente a de meios de produção naturais. E num país como o nosso, no qual a violência e a organização dos grandes proprietários rurais é bastante considerável, não se fará jamais essa alteração sem lhes impor uma força legítima e muito maior. Mas estamos muito longe disso. Se alguma preocupação há com alguma força que esteja no campo, é com a do MST, movimento para o qual ainda não encontraram uma solução incruenta para controle ou extinção, o que o mantém sob o risco de controle ou extinção violenta.

            Hoje, tanto Lula quanto os que dominam internamente o PT parecem mudados. Para muitos, não seria surpresa se dissessem algo parecido com o esqueçam o que escrevi de Fernando Henrique. Mas não estão mudados, não. Eles fazem parte daqueles que se valem dos discursos chamados de esquerda para obterem um lugar no início de suas carreiras de políticos profissionais e depois vão aderindo aos imperativos dos comandantes internos e externos e muitas vezes usam as burocracias partidárias para se livrarem daqueles que por acaso vierem a lhes cobrar coerência com os princípios que um dia defenderam. Tiveram em seu favor durante muitos anos as idéias, a luta e a reputação de militantes de esquerda, principalmente, que acreditaram que a simples adoção da palavra trabalhadores daria sempre ao PT tudo aquilo que imaginavam ser próprio e necessário do maior contingente populacional das sociedades contemporâneas, tanto em honestidade quanto em inspiração revolucionária e espírito de luta. E durante anos, diga-se que com muito moralismo, discursaram de acordo com eles. Firmada a reputação e contando com a fidelidade daqueles que mais contribuíram para ela, puderam dispor de uma base sólida e partir em busca de apoio eleitoral complementar do outro lado das linhas políticas para elegerem o presidente da república. Sem dúvida, concluíram tudo isso livrando-se da suspeita de socialismo ou de comunismo, coisas que contribuíram para cada vez mais para isolar e minimizar no Brasil. Agora, não querem voltar para os seus idealistas de esquerda. Pelo contrário, por terem apoio do outro lado devido ao bom comportamento, querem que eles os acompanhem na adesão a um programa que não tem nada a ver com o que eles pensam e sentem. 

             Esses idealistas ou vão se enquadrando ou vão sendo ameaçados de expulsão e até mesmo expulsos do PT, destino provavelmente reservado para a senadora Heloisa Helena. Não haverá contemplação, até porque nem se pode esperar uma coisa dessas de um partido cujo governo fez até os justos aposentados de 90 anos de idade pagarem por uns poucos pecadores que recebiam indevidamente por uns poucos mortos um total que nem levaria o país à falência nem poderia justificar o castigo dado aos sobreviventes. Tudo pelo superavit, como a manutenção da CPMF e da alíquota de 27,5% de uma das faixas do imposto de renda.

             Enfim, para voltar a lutar pelo comando da história do Brasil, como ocorreu muitas vezes na nossa e em outras histórias, esses idealistas serão obrigados a formar um novo partido para darem prioridade aos seus ideais. Unidos a dissidentes anteriores e aos que preservam ainda as organizações de esquerda mais antigas, descobrirão e lamentarão que a palavra trabalhadores foi furtada e monopolizada por um partido neocorporativista do mesmo modo que a palavra democracia foi furtada e monopolizada pelo liberalismo. Mas, da lição dos dias de hoje, compreenderão que a classe operária e os demais trabalhadores não têm nenhuma relação necessária com a história. Se tivessem, rejeitariam toda política de raízes sociais estranhas a eles e não precisariam de nenhum partido ou de nenhum manifesto para lhes falar da força da sua unidade. Como todos os que vivem em sociedades, os trabalhadores não chegam espontaneamente a nenhuma idéia, mesmo que ela diga respeito a eles como sujeitos da produção e da história. É um parecer sociológico de base, uma lição de cartilha, infelizmente, muito esquecida[5].

 

Notas

 

[1] Lenin, V. Ilitch, O Estado e a Revolução, tradução de Aristides Lobo, São Paulo, Ed. Hucitec, 1983.

[2] Ver a esse respeito: Keynes, John Maynard. O Fim do Laissez-faire. tradução de Miriam Moreira Leite. in: John Maynard Keynes: economia. Coleção “Grandes Cientistas Sociais”. São Paulo. Editora Ática. Volume 6, pgs 106-126.

[3] Ver os resultados e as conclusões das pesquisas de Violette Brustlein, Philipe Waniez, Cesar Romero Jacob e Dora Hees no Atlas das Eleições Municipais 2000.

[4] Ver coluna de Josias de Souza, diretor da sucursal de Brasília, Folha de São Paulo, 26 de agosto de 2001, página A 14.

[5] Durkheim, Emile, As Regras do Método Sociológico, tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz, 8ª edição, São Paulo, Cia. Editora Nacional, capítulo 1.

 

Resumo: O artigo trata da relação do governo Lula com o neocorporativismo, das suas relações com o comando monetário internacional, das suas relações de continuidade com o governo de Fernando Henrique Cardoso, e do que resta aos dissidentes idealistas do PT.

 

Palavras-Chave: neocorporativismo, liberalismo, trabalhadores, história.

 

* Mestre em Ciência Política, Doutor em Economia, Professor de Ciência Política da UERJ e da UFRJ.

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