JOAQUIM
PEDRO DE ANDRADE, MACUNAÍMA E A INDÚSTRIA CULTURAL
Ana Lucia
Lucas Martins*
Joaquim Pedro de Andrade pertenceu a
uma geração de cineastas que constituiu o chamado movimento do Cinema Novo
cujas produções iniciam-se no final dos anos 50. O Cinema Novo vai realizar
filmes autorais buscando elementos temáticos e estilísticos próprios e se
constitui como um movimento de crítica à produção cinematográfica até então
vigente no Brasil, completamente dependente dos padrões estéticos
norte-americanos. A construção de um cinema que se queria expressão de valores
nacionais constitui uma filmografia que se associa à reflexão mais geral sobre
a cultura.
A
produção do Cinema Novo foi vasta e diversificada. Na sua primeira fase entre
1958/59 – 1964(1) os filmes produzidos por jovens diretores caracterizaram-se
pela reação à padronização estilística e temática da indústria californiana
afirmando-se como um cinema crítico. Segundo Glauber Rocha em a Estética da Fome:
“O
Cinema Novo descreveu, poetizou, discursou, exercitou os temas da fome: personagens
comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer,
personagens matando para comer, personagens feios, sujos, descarnados, morando
em casas sujas, feias, escuras” (ROCHA; 1965:67).
Ainda segundo o cineasta teria sido na
representação deste “miserabilismo” que se encontrava
a grandeza do Cinema Novo, conseguindo “comunicar” ao mundo a “miséria” do
país, não mais vista como elemento “exótico”, mas a miséria como “um sintoma
trágico”.
Pode-se pensar que a
proposta do Cinema Novo encontra ressonância nas idéias de Walter Benjamim de
articular reflexão crítica e divertimento.
“No
cinema, o público não separa a crítica da fruição. Mais do que qualquer outra
parte, o elemento decisivo aqui é que as reações individuais ficam determinadas
desde o começo pela virtualidade imediata do seu caráter coletivo”
(BENJAMIM apud ORTIZ; 1985:55).
A idéia de uma função social do cinema,
o cinema como instrumento político, parece ter sido levado aos limites com a
experiência do Cinema Novo.
Os diagnósticos realizados sobre
a produção da primeira fase dos filmes do Cinema Novo revelavam, no entanto,
questões polêmicas. Em primeiro lugar, o prestígio cultural alcançado com os
filmes não escondia as dificuldades de capitalização econômica que se aguça a
partir de do golpe de 1964. O governo militar adotara uma política de estreito
controle da produção cinematográfica, tendo uma sistemática atividade de
censura. O Cinema Novo torna-se alvo de uma disputa do sentido da representação
de imagens do Brasil. O agravamento do
“problema econômico” deixava mais em evidência uma segunda questão, a da comunicação
com um público mais amplo. Os filmes do
Cinema Novo comunicavam-se com um público de classe média intelectualizada,
estudantes universitários em maioria. Se os filmes alcançaram legitimidade em
instâncias de consagração, como festivais nacionais e internacionais, falhara o
Cinema Novo do ponto de vista da bilheteria, ou como se dizia na época da
“comunicação com o povo”.
A falta de diálogo com um público mais amplo vai ser tematizada
por Joaquim Pedro de Andrade numa outra perspectiva; a das conseqüências
políticas desta falta de diálogo num momento em que a censura alcança as
produções do Cinema Novo. Em depoimento
a Alex Viany em Crítica
e Autocrítica o cineasta avalia o problema à luz da “política de autor”:
“(...) no que se refere ao movimento
cinematográfico brasileiro, em matéria de política, eu acho que ninguém pode
ter a consciência tranqüila (...). Não basta que um cineasta indique estar numa
posição progressista em relação aos fenômenos que ocorrem no Brasil (...) Para
que um filme seja instrumento político efetivo, é preciso primeiro que se
comunique com o público visado (...) Isto não ocorreu até agora em qualquer dos
filmes feitos a partir de uma posição política revolucionária (...) A meu ver , um dos fatores
dessa defasagem de nossos filmes em relação ao público brasileiro e, portanto,
em relação também à realidade brasileira, decorre dos problemas de autoria” (VIANY; 1968).
Se as experiências iniciais do Cinema
Novo expõem a questão da arte como instrumento de transformação, a crise que
alcança o movimento põe em cena os paradoxos dessa experiência num contexto de
adequação à indústria cultural que ao final dos anos 60 mostrava-se em
crescimento. É neste contexto que
Joaquim Pedro de Andrade realiza o filme
Macunaíma que me parece ser exemplar para lidar com a problemática que
envolve indústria cultural, mercado de bens simbólicos, cultura e divertimento.
2. Cores de Macunaíma, o filme
As difíceis e perigosas relações entre
produto cultural e consumo era explicitada por Joaquim Pedro de Andrade no
período de finalização do filme de longa-metragem Macunaíma, em 1969. Em
entrevistas e depoimentos (2) o cineasta afirma uma posição crítica frente às
realizações do Cinema Novo; o pouco diálogo dos filmes com o grande público.
Para Joaquim Pedro o compromisso do artista, naquele momento em que se debatia
a crise do cinema nacional, deveria ser o de "assumir o lado moderno do cinema que é justamente a possibilidade de se
comunicar com a massa" e esta posição implicaria ao mesmo tempo levar
em conta "todos os valores
culturais, sociais e políticos que possam ser transmitidos por esta forma de
comunicação". Tudo isto demandava em correr riscos. Esta interação da obra do
artista com a comunicação de massa é, como alertava Joaquim Pedro de
Andrade, um caminho perigoso em que se poderia prostituir a proposta original
para assegurar audiência. No entanto, o
cineasta via este caminho como fundamental e Macunaíma foi a "exploração crítica" desta
possibilidade. Joaquim Pedro havia
percebido o sinal de mudança dos tempos e, segundo um crítico da época,
realizou com Macunaíma um filme:
"Não
para sua contemplação pessoal e sim para sensibilizar a imaginação e as
sensibilidades populares contribuindo para um enraizamento
definitivo do cinema como uma necessidade do país, da cultura e da economia
nacionais".
Macunaíma foi visto, portanto, como um distanciamento da
moléstia da crise de comunicação que atacava o cinema nacional no sentido que
colocava a possibilidade de uma nova relação entre indústria cultural e
realização artística.
Em que
termos, então, estava colocada esta nova relação em Macunaíma? Do ponto de vista da produção Macunaíma havia rompido com a precariedade e o aspecto mais
artesanal, comum nas produções do período. Investiu, por exemplo, em trabalhos
de pesquisa anteriores que se tornaram fundamentais para o jogo cinematográfico
criado por Joaquim Pedro. Cenários, figurinos e
principalmente as cores de Macunaíma
estabelecem uma nova sofisticação plástica num meio cinematográfico em que predominava os filmes em preto e branco.
O filme Macunaíma foi tirado do livro de Mário
de Andrade. Por volta do princípio deste século havia estado no Brasil,
recolhendo lendas indígenas no norte do país, um cientista alemão, antropólogo
e geólogo Theodor Grunberg. A idéia do livro Macunaíma teria surgido da percepção que o escritor Mário de
Andrade teve de que a cultura brasileira:
"Sempre
irreverente, engraçada e até subversiva em relação a padrões morais hipócritas
vigentes em diferentes épocas da nossa história guardava basicamente o
espírito, histórias e até personagens criados por nossos índios séculos
antes" (3).
É assim, a partir deste encontro com o
popular que Joaquim Pedro constrói um filme deixando ver a
possibilidade de fundir heranças culturais, realizar uma reflexão crítica sobre
o sentido contemporâneo destas heranças e ao mesmo tempo atender requisitos da
comunicação de massa a partir de certos recursos expressivos.
Ficam
claras as escolhas de Joaquim Pedro nos seus depoimentos:
"Tive
a intenção deliberada, desde o início, de procurar uma comunicação popular tão
espontânea, tão imediata, como a chanchada, sem ser nunca subserviente, o filme
não é paternalista, no sentido em que talvez fossem paternalistas os primeiros
filmes do Cinema Novo: ‘dando lição’. Ele procura ser feito do povo para o
povo, é a orquestração mais simples possível, mais direta de motivos
populares..." (BUARQUE DE
HOLANDA; 1974).
De fato, Macunaíma parece um filme decidido a rupturas. O humor, a ironia,
as músicas, a escolha do ator grande Otelo, o recurso da narração, o uso
freqüente da linguagem popular, as referências ao cinema velho como a
chanchada, que cria uma comunicação imediata, são alguns dos elementos cuja
combinação fazem a distinção de Macunaíma.
A intenção foi bem resumida por Joaquim Pedro ao desejar que as aventuras bem
brasileiras de Macunaíma, herói de nossa gente, fossem capazes de divertir e
dar o que pensar (4).
3. A viagem de Macunaíma.
O
filme narra a atribulada trajetória de Macunaíma que deixa a selva onde nasceu
e para ela retorna após experimentar uma tumultuada aventura na cidade. As
seqüências do filme podem ser agrupadas em três grandes blocos narrativos que
constituem o nascimento e infância do personagem, a vida na cidade grande e o
retorno de Macunaíma ao sertão.
Macunaíma é uma viagem. Viagem por nossa
brasilidade tão múltipla e trágica. O percurso do "herói de nossa
gente" é o desvelar de uma realidade.
Numa maloca pobre, construída com folha de bananeira e
terra, num lugar chamado Pai da Tocandeira,
Brasil, o herói chega ao mundo. "Pronto
nasceu". Uma queda seca num
chão de terra batida. "É homem mãe,
olha só a cara dele. Não é bonitinho?", indagam os irmãos. "Ô xente! Que
menino feio danado", responde a mãe. O nome? "Fica
sendo Macunaíma. Nome que começa por má tem má sina". Está lançada a
profecia.
Na
meninice o herói "fez coisas de sarapantar".
Passou seis anos não falando. Tinha como divertimento decepar cabeça de
saúva. Ficava pelos cantos espiando trabalho dos outros. Comendo terra. "Você não fala menino?”, perguntava
seu irmão. "Ai, que preguiça".
E Macunaíma continuava deitado. Mas despertava quando punha os olhos em
dinheiro ou para tomar banho de rio com a família. Todos juntos e nus. Alegria mesmo era brincar
no mato com Sofará, companheira do irmão. É quando
Macunaíma vira um príncipe lindo.
As
mudanças estavam por vir na vida do herói.
A enchente. A fome que bateu no mucambo. A morte da mãe. Passado este momento difícil
Macunaíma e os irmãos partem "por
este mundo de Deus". No caminho
Macunaíma encontra uma fonte. De preto, vira branco.
A cidade
é o novo destino de Macunaíma. Neste ambiente Macunaíma é surpreendido pelas
coisas da cidade. "Já não sabia mais
quem era máquina quem era gente na cidade". A tristeza e a
perplexidade tomam conta do herói.
"O herói passou uma semana sem
comer nem brincar. Só pensando nas máquinas. No sábado à noite o pensamento
dele sacou bem claro uma luz. Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que
eram os homens da cidade".
De posse deste conhecimento Macunaíma
se "sente livre" para experimentar o jogo das relações reificadas da cidade. A liberdade de Macunaíma se traduz
numa forma “específica e positiva” que encontra de interação social. Macunaíma
se integra na cidade a partir de um mundo marginal - convive com a guerrilheira
Ci, com vadios, vigaristas, mendigos, prostitutas - e
suas ações são orientadas pela “malícia do malandro”, do “espertalhão que tira
partido de todas as oportunidades e desta forma consegue “manejar as dificuldades e enfrentar o darwinismo social, o domínio do
mais forte e o impulso explorador que domina todos os personagens” (XAVIER,
1993: 144).
Feliz
por ter recuperado o muiraquitã na batalha com o
Gigante, carregando bens da cidade - TV, liquidificador, ventilador - o herói
retorna ao roçado velho. Na antiga
maloca, agora uma tapera, Macunaíma vai perdendo a graça na vida. Passava os dias na rede amarrado em dois
tocos de cajueiro. Doente, desolado e sozinho o herói tem como companhia um
papagaio falador a quem conta as glórias passadas. Um dia, no calor de janeiro,
Macunaíma sentiu vontade de brincar. Na beira de um lagoão Macunaíma avista uma
moça lindíssima. Só que a moça era uma Uiara, comedora de gente. No mergulho, atrás da Uiara, Macunaíma é
tragado e devorado.
4. Uma
imagem do Brasil.
A morte do personagem Macunaíma, numa
imagem verde-oliva e cor de sangue, nos leva de forma brusca ao encontro de uma sociedade cujas
relações são definidas pelo canibalismo.
"As
relações de trabalho, as relações entre as pessoas, as relações sociais,
políticas e econômicas são ainda uma relação basicamente antropofágica. Quem
pode come o outro" (5).
Macunaíma afirma um desfecho pessimista de um Brasil que
devora os brasileiros, a antropofagia é para o cineasta o princípio de
interação entre os personagens, regra básica da sociedade (XAVIER, 1993).
Com Macunaíma Joaquim Pedro de Andrade
reafirma a possibilidade de associar cultura e divertimento, porém o cineasta
nos adverte para a natureza antropofágica da relação entre indústria cultural e
bens simbólicos. Antropofagia. Canibalismo. Consumo. As atenções do cineasta
voltam-se para as relações que cercam a própria criação artística; como o caso
das exigências de um mercado de consumo de massa e autonomia do campo
artístico. A reflexão propiciada por Macunaíma
parece estar na ordem do dia. Diante de um conjunto de mudanças ordenadas
por uma perversa ordem global, de internacionalização da cultura e novas
exigências de mercado, há uma urgência de pensar "quem somos nós" neste processo (SCHARWZ, 1994). Como
falar de nossa própria vida, sociedade e cultura sem sermos tragados, tal como
Macunaíma seduzido pelos encantos da Uiara, por um "estetização
consumista". Este parece ser um dos riscos para o qual o cineasta Joaquim
Pedro de Andrade apontava ao dizer das perigosas ligações entre produção
cultural e consumo.
1-A filmografia produzida neste
período destacou-se tanto por seu volume-42 filmes entre longas, médias e curta-metragens, quanto por sua consagração em festivais nacionais e no exterior. (
MARTINS, A . L. L., 1999) .
2- “Macunaíma é indomável”, Correio da Manhã, 31 de agosto de 1969; “O filme em Questão: Macunaíma”, Jornal
do Brasil, 7 de novembro de 1969; “Dizem
que meu filme é grosso. Também acho” Fatos e Fotos, 2 de abril de 1970.
3-Joaquim Pedro de Andrade. Globo
Vídeo. Apresentação do filme Macunaíma.
4- Globo Vídeo. Depoimento de Joaquim
Pedro de Andrade
5- Depoimento de Joaquim Pedro de
Andrade - Jornal do Brasil, 1968.
ANDRADE, J.P. in Viany,
A. “Crítica e Autocrítica: o padre e a moça”.
Revista Civilização Brasileira. Rio
de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, Ano I, n . 7,
maio de 1968.
BENJAMIN, W. “A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica”. In Obras
escolhidas. 6 ed., Vol.1; São Paulo: Ed.
Brasiliense.
BUARQUE DE HOLANDA, H.-
"Heróis de Nossa Gente". Dissertação de mestrado (mimeo,).
UFRJ, 1974.
MARTINS, Ana Lucia L.
“Representações de Pobreza Urbana no Cinema Brasileiro”. Tese de Doutorado (mimeo). Rio de Janeiro: IFCS / UFRJ, 1999.
ORTIZ, R. “A Escola de
Frankfurt e a Questão da Cultura”.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.1, vol.
1, junho de 1985.
ROCHA, G. “Uma Estética da Fome”. Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Civilização
Brasileira. Ano I, n 3, julho 1965.
SCHWARTZ, R. "Fim de
século". Comunicação apresentada ao colóquio sobre "As culturas de
fim de século na América Latina", Universidade de Yale
em abril de 1994.
XAVIER, I. Alegorias
do Subdesenvolvimento. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1993.
Resumo: A idéia deste artigo é
fazer considerações sobre uma problemática que diz respeito a
posição de um artista, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade, e transformações dos mercados de bens
simbólicos.
Palavras-chave: cinema; sociedade; indústria cultural.
* A autora é Socióloga, Doutora em Ciências Humanas
/ UFRJ - Professora e pesquisadora do mestrado em Educação da Universidade
Iguaçu – UNIG.