Discurso pronunciado
pelo Prof. Gisálio Cerqueira
Filho* aos 30/01/2004 na cerimônia de concessão do titulo de NOTÓRIO SABER
ao Professor Eurico Lima Figueiredo pela Universidade Federal Fluminense-UFF,
Niterói, RJ.
Aqui está entre nós o Professor Eurico
de Lima Figueiredo para receber o diploma de NOTÓRIO SABER que, uma vez
aprovado por unanimidade no Conselho de Ensino e Pesquisa, a Universidade
Federal Fluminense lhe concedeu.
Estudante da Faculdade Nacional de
Filosofia, matriculado no curso de Ciências sociais da antiga Universidade do
Brasil, hoje UFRJ, o destino reservou para ele o sofrimento infligido a todos
quanto lá estudaram nos anos do regime militar. Logo ele, filho de oficial
superior do Exército brasileiro, ex-aluno do Colégio Militar no Rio de Janeiro,
experimentou as agruras destes tempos idos, mas não esquecidos. Não foi por
acaso, que foi obter o seu título de Mestre estudando ...
os militares, no IUPERJ. Nos anos de chumbo década dos
setenta, anos de internacionalização para a nossa geração, Eurico passou pela Oxford University.
No seu memorial, conforme ressalta em parecer departamental o Prof. Renato Lessa,
“os anos em Oxford
formaram a base de uma narrativa singular sobre a vida de um intelectual
brasileiro naquele tipo de contexto. A destacar, o encontro e a empatia com
Hermínio Martins, seu orientador, um dos mais brilhantes pensadores sociais
contemporâneos”.
De fato os militares não mais lhe
largaram, pois hoje acaba de assumir a Direção do Núcleo de Estudos
Estratégicos (NEST) da UFF onde ainda e sempre os militares povoam os seus
sonhos. Mas essa, por assim dizer fixação nos milicos, é uma forma canhestra,
porém castrense, de render
homenagem ao seu próprio pai, o General Lima Figueiredo. É como dizer aqui e
agora, e no latim falado pelos militares romanos, In nomine pater, gratia plena (em nome do pai, gratidão completa).
O título de Notório
Saber, como diz Eurico no seu belíssimo Memorial, não é uma honraria a mais.
Ele entende-o como um chamado dos colegas para participar mais, lutar
mais, contribuir mais; até os limites de suas forças, pois atesta pretender
morrer com as impressões digitais no livro e no computador. E com o giz na
mão. O giz é a sua espada.
O título que a
Universidade Federal Fluminense concede a V.S. representa a culminância de uma
vida conforme os ditames do brasão dos Lima Figueiredo, que se mostra visível
na face interna das capas dos livros encadernados, em material e cores
variadas, que o
companheiro guarda no seu gabinete, de número 456, no quarto andar do Bloco “O”
do campus do Gragoatá,
no nosso Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – ICHF e que eu tenho a
honra de compartilhar.
Os ditames a que me
refiro são formados por quatro verbos que incitam à ação: ESTUDAR, PENSAR,
DIFUNDIR, SERVIR.
Este é o brasão dos Lima Figueiredo.
Nele se fundem a consciência e os princípios para a ação (teoria e prática) na
obra permanente de servir. Servir com generosidade e humildade para que a ação
se beneficie do húmus da virtude (húmus / humildade) e possa fecundar como
a terra fértil nos dá eloqüente testemunho.
Para ser memorável, não digo honorável, digo
memorável - que permanece na memória - é necessário que o homem seja amorável
em vida. Esta é uma outra qualidade de Eurico de Lima Figueiredo. A sua
capacidade de amar está na exata medida como foi e deseja ser amado. Na assunção dos
próprios limites e fraquezas, no reconhecimento dos sentimentos mais e menos
altruístas, na generosidade que beira a ingenuidade, fixa-se
uma imagem de homem simples, que busca no “senso comum” de Baruch Spinoza o sentido nada menos do comum ... nismo. Daquele comunismo impregnado do conceito de comunitas (comunidade) reivindicada pelos primeiros cristãos,
aludida na expressão evangélica “vejam o
quanto eles se amam” e ao qual nem o judaísmo nem o islamismo são estranhos. No caso dos judeus, a
comunidade chama-se shetl
e nela está o apelo às mais antigas tradições. Já entre os islâmicos,
comunidade e força da tradição chama-se sunna ,
um nexo suficiente para garantir a fé dos antigos (salaf).
Mas o sentido spinozista do comum deve
expressar-se na abertura do exclusivismo das relações sociais comunitárias em
direção às relações sociais societárias. Se Max Weber e Ferdinand Töennies, para ficar em dois exemplos pioneiros da Sociologia alemã,
estudaram a célebre oposição comunidade versus
sociedade, foram Ho Chi
Min e o General Giap aqueles que demonstraram
magistralmente no Vietnã, o quanto o movimento frenético da comunidade, que se
articula com a sociedade, é capaz de ultrapassar na ação ativa a mera
resistência reativa da comunidade.
As grandes construções do Ocidente
sobre moral, verdade, justiça, lei, política, estão assentadas na noção de
trauma original, anterior a todo juízo, e que assinala a não inocência da cultura
que nos acolhe. Nesse sentido, e como o trauma só funciona sob a condição do
recalque, o pensamento progressista não pode desenvolver a tradição que só faz
agravar a origem traumática. Jacques Lacan denominou-a, do ponto de vista
psicanalítico, de “fantasma fundamental”; O filósofo Martin Heidegger nomeou-a
“mentira primordial”, qual clarão que rompe a obscuridade da floresta; Walter
Benjamim compreendeu-a historicamente como a versão vitoriosa da forças sociais
que moldam o presente, sob o preço pago pela derrota dos interesses vencidos.
Assim, o sentido universalista do comum spinozista não
deve deixar de mirar a proposta do ágape paulino, de Paulo de Tarso, cuja estratégia, entendida como
“ódio aos padres” e ao instituído burocraticamente, propõe uma ruptura com a
origem traumática da tradição que herdamos. Com um convite incluso de
interromper a lógica das coisas e conquistar uma subjetividade singular, mas
comum, para começar tudo de novo, sob nova perspectiva. Assim, poderemos
entender Lucas (14:26) quando diz:
Se alguém vem até
mim e não odeia seu pai e sua mãe, sua
mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs, até a sua própria vida,
como pode querer ser meu discípulo?
Estas palavras atribuídas a Jesus
expressam não o ódio ou o ciúme de um Deus cruel e possessivo; mas, antes,
funcionam como uma senha, um password que nos despluga da comunidade orgânica na qual nascemos e nos pluga no universalismo global do comum, onde já não “há
homens, nem mulheres, nem judeus, nem gregos” ...
Pois bem, um tal sentido do comum liga
os presentes neste fim de tarde adorável. E eu quisera saber contar uma destas
estórias que não se esquecem quando estamos entre os mais queridos, despojados
de inveja, de ódio, de ciúme, abrasados pelo calor da solidariedade. Esta
estória nos foi contada pelo saudoso Darcy Ribeiro [1], que dizia rindo que
ganhara o título de Doutor Honoris Causa na Sorbonne pelas suas falhas e projetos fracassados.
Eu a ofereço a Eurico, pela simplicidade e grandeza.
Envolvido com a grandiosidade do
Projeto da criação da Universidade Nacional de Brasília, pelo arrojo do desenho
acadêmico, do pessoal docente e de pesquisa envolvido, Darcy Ribeiro viu-se
engolfado em muitas disputas políticas. Uma delas confrontou-o com autoridades
eclesiásticas da Igreja Católica, que opondo-se à
Universidade de Brasília, pelo seu caráter público, defendiam uma universidade
jesuítica. Juscelino Kubitscheck já estava quase convencendo-se
quando, literalmente, Frei Rocha, foi a rocha que nos salvou. Tratava-se do
frei Mateus Rocha, teólogo eminente e muito popular na mídia de então;
professor na PUC-RJ. Mais tarde, Frei Mateus seria Vice-reitor e Reitor da UnB. Salvou-nos a todos, a Darcy e ao pensamento social
progressista, recorrendo ao antigo patriarca de Veneza, Giovanni Roncalli, já como Papa João XXIII. O argumento era
irretocável: a UnB seria a primeira universidade
pública, depois da Revolução francesa, a contar com um Instituto de Teologia
Católica Romana. Frei Mateus conseguiu o apoio de João XXIII e este mandou de
presente os volumes de sua obra, devidamente autografados, e magnificamente
impressos, encadernados em papel marroquino vermelho. Ressalte-se que na
repressão à UnB, após o golpe de 64, o Instituto de
Teologia Católica foi o único dissolvido, proscrito e até meio destruído a fogo
pela ditadura militar. O integrismo católico romano
que grassava no meio religioso e militar temia mais os católicos progressistas
do que os próprios comunistas.
Frei Mateus, ainda em vida, de amorável
passou a memorável, ícone das lutas sociais na universidade. Encontrei-o em
meados dos 70, incógnito nas cercanias de Goiânia, trabalhando a terra e
provendo o sustento de si, da mulher e filhos. Já não era mais sacerdote.
Feliz, desdenhava os tempos de honrarias intelectuais e de poder; plantava
tubérculos e dava crédito, na infinitude da sua
mansidão, às palavras do nosso escritor maior, Machado de Assis:
“ Ao vencedor
... a você caríssimo companheiro Eurico de Lima Figueiredo, as batatas” ...
Com estas palavras, longe de mim diminuir as vitórias nossas de cada dia e logo com as
batatas, que estão dentre as minhas refeições favoritas. Talvez conviesse
recordar o que um dia a pensadora Lou-Andreas Salomé
disse à sua amiga Anna Freud: “não importa o destino que se tenha, desde que
realmente o vivamos com intensidade”.
Muito obrigado!
[1]
Discurso pronunciado pelo primeiro Reitor da UnB,
Darcy Ribeiro, durante a cerimônia de posse do Reitor Cristóvam
Buarque, em 16 de agosto de 1985. Entre outros, estava presente Frei Mateus
Rocha.