OPINIÃO PÚBLICA, IMPRENSA E PARLAMENTO
Fernando Sá *
O
Jornal Folha de S. Paulo de 04 de
janeiro de 2004 publicou matéria originada em pesquisa de opinião pública
realizada pelo instituto Datafolha. Com a retranca Pesquisa, a matéria principal recebeu o seguinte título: “Igreja
Universal e os bancos ganham poder, diz Datafolha” e trazia em seu texto a
notícia que, entre os dias 8 e 12 de dezembro de 2003,
o instituto teria ouvido 2.950 pessoas em cinco capitais brasileiras (São
Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre), com o objetivo
de saber, na percepção dos entrevistados, quais instituições ganharam poder de
influência e prestígio no Brasil entre os anos de 1995 e 2003.
No entanto, o que nos chamou mais a
atenção foi uma matéria coordenada a esta, publicada no mesmo dia, e que tinha
o seguinte título: “Imprensa e clubes lideram em prestígio”. Ali, o texto
afirmava que a imprensa, os clubes de futebol e a Igreja Católica são as
instituições com maior prestígio no país. A imprensa foi avaliada como tendo
muito prestígio por 73% dos entrevistados, enquanto os clubes de futebol e a
Igreja Católica foram avaliados dessa maneira por 66% e 59% dos entrevistados,
respectivamente. As instituições às quais se atribuiu maior poder de influência
são, novamente, a imprensa, o Poder Executivo (Presidência da República e
Ministérios) e os bancos. Para 74% dos entrevistados, a imprensa tem muito
poder, a Presidência (com os Ministérios) é muito poderosa para 63% das pessoas
ouvidas pelo Datafolha, e 61% delas dizem a mesma coisa sobre os bancos. Por
outro lado, entre as 12 instituições pesquisadas, as que têm as menores
avaliações de poder entre os entrevistados são os partidos políticos, as
empresas estatais e os sindicatos, e com menor prestígio são, novamente, os
partidos políticos e os sindicatos, além do Congresso Nacional.
O resultado dessa pesquisa revelou um
desencanto da população brasileira com o mundo real da política, mais
particularmente com as instituições situadas no campo da participação
democrática da sociedade (partidos políticos, sindicatos e Congresso Nacional)
e uma identificação de graus elevados de poder e prestígio em instituições que também
lidam com o poder, mas com ênfase no campo do simbólico (imprensa e Igrejas).
Como as relações entre as instituições
que detém o poder político, real e simbólico, numa sociedade são extremamente
delicadas e como algumas das idéias que aparecem na pesquisa de opinião pública
citada nos pareceram um pouco desfocadas, nosso objetivo,
nesse artigo, é provocar a reflexão sobre o conceito de opinião pública e suas
relações com a imprensa e o Parlamento numa sociedade democrática.
Opinião pública
A expressão opinião pública é
delimitada por duas palavras que, ao longo da história, sofreram muitas
transformações em sua significação. Esta é a principal razão para que a opinião
pública seja um conceito polissêmico, complexo e que tenham sido muitas as dificuldades para se chegar a uma definição universalmente
aceita por todos. Contudo, será o termo público aquele que mais sofreu
mudanças com o passar do tempo.
Tanto
na Grécia como em Roma ficam perfeitamente diferenciadas as categorias de
privado e de público. A esfera do privado gira em torno do domicílio doméstico
e nela acontece a reprodução da vida, o trabalho dos escravos, o serviço das
mulheres e tudo aquilo que está relacionado com a necessidade e a
transitoriedade. A esfera do público, ao contrário, refere-se a todas aquelas
atividades públicas onde o cidadão, liberado dos compromissos domésticos, pode
participar com liberdade das atividades cívicas (políticas) e comunitárias. Em
oposição à esfera privada coloca-se a esfera da publicidade, compreendida como
aquele espaço onde é possível a liberdade, o diálogo e a
transparência; se a esfera privada vem marcada pela subsistência e a
transitoriedade, a esfera do público é determinada pela competência entre os
iguais e a procura pelo melhor (Habermas, 1994: 41) .
A
evolução da publicidade representativa acontecerá agregada a certos atributos
da pessoa, como insígnias, hábitos, gestos e retórica, representados na figura
do nobre. Este código de conduta será cristalizado na Idade Média como um
código de virtudes cortesãs e eclesiásticas que se manifestam em forma de
festas (como os torneios), ou representações do tipo religioso (como procissões
ou atos de fé) e, mesmo que esta representação necessite de um entorno (súditos
e fiéis), o povo ficará sempre de fora, como espectador, pois a representação exige
distância e certa aura de mistério.
A
passagem da Idade Média ao Barroco implica uma mudança na representação: as
festas que antes se davam nas cidades ao ar livre, como os torneios, a dança,
ou o teatro passam agora das praças públicas, dos jardins e das ruas para os
salões dos palácios. Com o absolutismo, o Estado e as instituições públicas se
concretizam frente à pessoa do monarca e sua corte (que é considerada como algo
privado), passando a chamar-se público, a partir deste momento, uma série de
cargos e funções relacionadas com a administração do Estado. Inclusive a religião
passará a ser considerada um assunto privado.
A
burguesia emergente no século XIII põe em funcionamento um novo sistema de
produção que, com o tempo, também trará uma nova ordem social. O novo marco das
relações será apoiado na circulação de mercadorias e notícias.
Superando
as barreiras do mercado local, dominado principalmente por grêmios e
confrarias, a burguesia desenvolve o comércio a longa distância, transformando
a cidade não tanto na base física do mercado, mas em sua base operativa. Cidades
do centro e do norte da Europa, diante da importância de seus mercados e da
concentração de comerciantes, contribuirão, inclusive, para o desenvolvimento
do sistema financeiro. A burguesia consegue desvencilhar-se do conceito econômico
original – vinculado ao senhor da casa e à vida doméstica – e decide trasladar
a praça, da casa ao mercado, e transformar a economia em uma economia de trocas
comerciais. Todavia, o importante desta mudança é que o burguês continua
atuando na esfera do privado, mantendo a distância entre a ordem econômica e a
ordem política. A esfera do poder público se concretiza em uma administração
constante e um exército permanente, onde a categoria do público está reservada
não mais para a corte, mas para o que diz respeito ao estatal e seu
funcionamento.
Sennet nos lembra que ao final do século XV, na Inglaterra,
identificava-se o público com o bem comum em sociedade e, alguns anos mais
tarde, o conceito será ampliado para tudo aquilo que
era manifesto e aberto à observação geral, onde público significava estar aberto
à consideração de qualquer um, enquanto que privado significava uma parte da
vida protegida e definida pela família e os amigos. Um sentido semelhante também
terá na França. O público passará a ter uma acepção próxima ao conceito de bem
comum, a significar o corpo político ou, um pouco mais tarde, uma região
especial da sociabilidade. Esta região encontra-se na cidade, especialmente nas
capitais, e o cosmopolita será o homem público por excelência. É a época em que
os parques, os hotéis, os salões ou os cafés se transformam em centros de
relação social, de exposição e de diálogo público (Sennet,
1988: 27).
A
circulação das notícias segue um caminho parecido com a circulação das mercadorias.
As grandes cidades se transformam em fontes de notícias e os comerciantes mudarão
o velho sistema de informação por outro mais profissional e rápido. Todavia,
não será possível falar de correios ou imprensa no sentido estrito até que as
suas mensagens não sejam acessíveis ao público em geral (século XVII).
A
imprensa periódica do século XVII não apenas informará sobre as mais variadas
notícias, mas as transformará em mercadoria. Além disso, e isto é importante, a
autoridade dará seu apoio à imprensa (por exemplo, o Cardeal Richelieu na França dará apoio ao jornal dirigido por T. Renaudot) e utilizará este meio de comunicação para dar
ordens e baixar resoluções, convertendo os seus destinatários pela primeira vez
em público. Desta forma, a imprensa começa a transformar-se em fiel
servidora da administração.
O fato é que o surgimento da opinião
pública sofre um desenvolvimento dialético de ação recíproca com o processo das
liberdades públicas, que desembocará (na segunda metade do século XVIII), por
um lado, no surgimento do termo e na tomada de consciência do poder da opinião
pública em oposição a todos aqueles que querem limitar os direitos e liberdades
dos cidadãos e, por outro, na declaração formal desses direitos e liberdades no
âmbito das revoluções francesa e americana.
O regime de opinião e a publicidade parlamentar
O
regime de opinião é inaugurado como declaração quando o parlamentar inglês C.
J. Fox dirige-se à Câmara dos Comuns, em 1792, e diz
que é verdadeiramente prudente e correto consultar a opinião pública e
proporcionar ao público os meios adequados para sua formação. O público
político intelectualizado alcançou tal maturidade nos últimos anos do século,
que passou a desempenhar o papel permanente de comentarista crítico, que antes
era uma exclusividade do Parlamento, e acabou por transformar-se em
interlocutor oficial dos deputados (Habermas, 1994:
102).
Como
realidade, o regime de opinião instaura-se quando surgem os primeiros governos
liberais no princípio do século XIX e são levados à prática os ideais
democráticos propostos pelo Iluminismo. Em nenhuma das Constituições que são
elaboradas neste princípio do século é citado expressamente o termo opinião
pública, mas todas contêm o seu espírito, significado e referência. A partir do
momento em que se aceita a origem popular do poder, as opiniões e desejos dos
cidadãos não poderiam estar fora do processo democrático e, mesmo que o mundo
da opinião fique em liberdade, não será a voz da opinião pública, mas a da
vontade geral que passará a expressar-se em atos formais ou a articular-se em
leis. Esta ambigüidade, vivacidade e versatilidade que lhe são atribuídas é o
que faz com que não faça parte formalmente da lei, mas do exercício de certas
liberdades que permitem o diálogo público e a participação de todos os cidadãos
nos assuntos de interesse geral. Mas, também é importante notar que, embora não
seja citada expressamente no corpo da lei, quem ocupa o poder estará sempre
atento à sua manifestação, pois será desta opinião que extrairão a sua legitimidade.
Segundo C. W. Mills (1980: 167-168), a
liberdade de discussão é a característica mais importante do público que opina.
No regime de opinião também funciona o princípio de autoridade (ligado ao de
racionalidade e discussão), mas serão as instituições democráticas as que
possibilitarão a discussão pública, primeiro entre
particulares e, depois, no Parlamento.
O pensamento político e o
desenvolvimento democrático do século XIX serão os responsáveis por levar à
prática os conceitos que definem a essência do regime de opinião: soberania,
vontade geral e lei, limitação e divisão de poderes, pluralismo político e parlamentar,
articulação da vida pública através do sistema de partidos políticos e do
processo eleitoral, além de um certo número de liberdades públicas que permitem
que o novo sistema funcione. Pela sua relação com a opinião pública e o regime
de opinião destacamos, além da liberdade de opinião, expressão e imprensa, o
direito que todos têm àquelas informações, particularmente as que se originam
no Parlamento.
Os intelectuais e todos aqueles que
podem agir como tal, são os encarregados de utilizar a razão pública para
chegar a acordos sobre os assuntos de interesse comum. O princípio da soberania
popular, a elaboração de leis, a custódia dos direitos, o controle da verdade e
da moralidade pública estão assentadas no uso público da razão e no princípio
da publicidade. O público pensante dos homens constitui-se no dos cidadãos, e a
publicidade politicamente ativa converte-se, sob a
Constituição republicana, em princípio organizativo do Estado liberal de
direito (Habermas, 1994: 140).
A
publicidade parlamentar, contudo, é desconhecida nas etapas anteriores às revoluções
burguesas. Na Inglaterra, por exemplo, a imprensa não pode informar durante
quase todo o século XVII sobre os debates parlamentares, porque o debate é
considerado como um privilégio da aristocracia, encarregada de dar sentido e
direção aos assuntos públicos. Era considerada uma ofensa grave publicar em
opúsculos e periódicos o conteúdo dos debates parlamentares.
O regime de segredo parlamentar na
Inglaterra está vinculado ao regime de imunidades e privilégios, com o duplo
objetivo de proteger os parlamentares das possíveis vinganças e arbitrariedades
da monarquia e de evitar as pressões da população. A defesa do segredo se dá de
duas formas: impedindo que o público e a imprensa tenham acesso às sessões
parlamentares e proibindo a publicação de qualquer notícia relacionada com os
debates, sem a devida autorização.
Apesar
da afirmação do Parlamento na defesa do sigilo das sessões, o povo inglês
insistirá em conhecer os segredos da vida política e o mundo da informação
lutará para difundir as discussões parlamentares. É neste sentido que deve ser
entendido o surgimento de folhas noticiosas (que cobrirão os debates parlamentares),
o uso da sátira e a publicação por parte da Câmara dos Comuns dos Votes and proceedings sob a
vigilância do speaker, criando uma situação ambígua caracterizada pela
existência de editores e repórteres privados que cobriam com interesse a
atividade parlamentar, em contraste com publicações oficiais sem difusão ou
qualquer incidência social. É conhecido o incidente protagonizado pelo
Presidente da Associação da cidade de Londres que, apesar de ser deputado, foi
enviado à prisão da Torre por defender a causa dos repórteres privados.
A
imprensa inglesa, durante o século XVIII e a primeira metade do XIX, foi uma imprensa partidária, que ajudou a manter unida a oposição
parlamentar. Passada a Revolução Francesa o radicalismo inglês inicia
sua luta, ajudado pela imprensa, contra a natureza aristocrática da política,
especialmente contra o imposto sobre a impressão (stamp
tax), a lei do libelo e os direitos de importação
do papel. Será a partir de 1860 quando a imprensa inglesa se tornará uma
verdadeira rival do Parlamento como plataforma de discussão política.
Já em
1681, F. Winnington sustentou que não era natural nem
racional que o povo, que os havia eleito, não
estivesse informado sobre as ações dos seus representantes; Burke, um século
depois, ao mesmo tempo que defendia a independência de consciência e ação dos
parlamentares, apoiará a conveniência da publicação oficial de todos os atos
das Câmaras e J. Bentham (1973: 103) defenderá o princípio
da publicidade parlamentar:
Antes de entrar nos detalhes sobre a
forma de funcionamento da Assembléia, vamos colocar logo no início de seu
regulamento a lei mais apropriada para assegurar a confiança pública e, com
isso, fazer com que possa cumprir sua finalidade como instituição. Trata-se da
lei sobre a publicidade.
Na
França, a liberdade de expressão fica perfeitamente contemplada nas Declarações
de Direitos de 1789 e 1793. Embora não tenha a tradição parlamentar da Inglaterra,
isso não é obstáculo para que, uma vez iniciado o processo revolucionário, pratique-se
com clareza e nitidez a atividade parlamentar e se defenda a publicidade de
suas sessões. Em 1789, a Assembléia Constituinte nomeará uma delegação de 24
deputados para que expresse ao rei sua discordância com o aparato militar em
torno do lugar das sessões e com o fato de seu acesso estar proibido ao
público. Neste sentido, a Constituição de 1791 estabelece no título III,
capítulo III, seção 2, que “as deliberações do corpo legislativo serão públicas
e as atas de suas seções serão impressas”.
Com a
publicidade parlamentar consegue-se eliminar os arcanos da política e permitir
ao povo o conhecimento das razões e dos argumentos usados por seus
representantes no debate da coisa pública e na tomada de decisões que afetam a
população. A informação transforma-se, assim, em educação cívica, apoio à
participação política e é utilizada como controle político da atividade do
Parlamento.
O
fundamento da publicidade, portanto, deve ser situado nas transformações que
são produzidas com as revoluções burguesas, quando o Parlamento passa a ser
entendido como um órgão da sociedade e não mais como um órgão do Estado. Os
liberais aceitarão alguns argumentos dos fisiocratas tais como a separação
entre a sociedade civil e o Estado, a doutrina da ordem natural, a idéia de liberdade e a regulação do mercado segundo as
leis da oferta e da procura. O único sistema de relações de interesses, dizem
os fisiocratas, é aquele que se desenvolve na esfera do privado (entre
particulares), recusando o artifício do Estado e negando, portanto, a distinção
entre o público e o privado. Não existe o público do Estado, mas o público do
privado, assim como o mercado é o responsável por regular a circulação dos
produtos, a opinião pública terá como missão racionalizar o mundo da política e
a sociedade.
Se a
opinião pública expressa os desejos naturais e racionais dos homens, as instituições
públicas apenas poderão legitimar-se através dela na medida em que, em sua formação
e em seu funcionamento, recolham e traduzam concretamente os seus conteúdos.
Desta maneira, o Parlamento, que, por um lado, será convertido na peça
fundamental do sistema político, por outro, apenas encontrará a sua razão de
ser, e sua justificação final, enquanto se apresentar como parte fundamental
dessa estrutura da opinião pública e da publicidade burguesa.
O Parlamento, segundo esta concepção,
deve ser compreendido como um órgão da sociedade e não do Estado, é um claro
reflexo e uma continuação do diálogo político dos particulares e, ao converter-se
em veículo de canalização, orientação e expressão da opinião pública, deve
ater-se às regras da publicidade. O mandato representativo que foi recebido de
todos os cidadãos o obriga a dar publicidade sobre tudo aquilo que discute e
decide.
Parlamento e Imprensa
Por
um outro ângulo, é cada dia mais freqüente encontrarmos quem defenda a idéia
que os meios de comunicação, particularmente através dos seus produtos
jornalísticos, acabam por ocupar o espaço político que seria institucionalmente
destinado aos partidos políticos e, por conseqüência, ao Parlamento.
Gostaríamos de participar desta discussão argumentando que: 1.
O sistema de oferta e demanda que determina o funcionamento dos meios de
comunicação de massa, particularmente a imprensa, faz com que estejam
diariamente em contato com os cidadãos e a sociedade e não de tempos em tempos
mais longos, como ocorre com os partidos políticos, seja através dos programas
eleitorais exibidos ao longo da legislatura, seja, mais intensamente, durante
os períodos eleitorais; 2. Como conseqüência desta necessidade de renovação
diária própria dos meios de comunicação, produz-se uma relação entre esses
meios e a sociedade com uma tal intensidade que, dificilmente, seria possível
imaginar tal velocidade, constância e intensidade na relação do Parlamento com
a sociedade.
Se
estes argumentos são verdadeiros, o Parlamento seria uma instituição constitutivamente deficitária se comparada com a imprensa
enquanto expressão ou representação da opinião pública. Esta é uma das razões
que explicam o crescimento da insatisfação com a representatividade parlamentar
em praticamente todos os países democráticos. Insatisfação que é acompanhada
pelo espetacular desenvolvimento dos meios de comunicação social e o
conseqüente aumento do volume e diversidade de informações colocadas à
disposição dos cidadãos.
Tal
insatisfação, provocada pelo déficit de legitimidade, é acentuado pelo déficit
de eficácia de uma instituição que, se por um lado, simplifica demasiadamente a
sociedade quando a representa, por outro, é excessivamente complexa para poder
ser um instrumento de auto-direção política da
sociedade. A forma com que o Parlamento obtém a informação, a processa e a traduz
em uma decisão vinculante (lei), não o habilita a
dirigir efetivamente a sociedade e é exatamente isso que determina uma outra
simplificação institucional adicional da complexidade social, que se dá através
da eleição de um Governo ou do poder Executivo.
Desta
forma, o Parlamento será permanentemente deficitário com respeito à opinião
pública do ponto de vista da legitimidade e permanentemente deficitário ante a
opinião pública no que diz respeito ao Governo e sua necessária eficácia, daí a
dificuldade de afirmar sua posição no dia a dia da vida do Estado. Apenas
quando há uma crise de legitimidade importante no
sistema o Parlamento torna visível sua posição central no Estado representativo,
ponto de referência sem o qual pouco se pode fazer.
Completamente
diferente é a posição da imprensa na sua relação com a opinião pública. Os
meios de comunicação, embora até seus proprietários desejem isso, não conseguem
traduzir a opinião pública em lei, não são obrigados a tomar decisões vinculantes para o conjunto da sociedade. A imprensa tem a
função de expressar diretamente a complexidade social, de ser
a expressão da sua diversidade, de ser o representante da sociedade tal
como ela espontaneamente se apresenta. E é esta a função que está na origem do
reconhecimento da liberdade de expressão nos textos constitucionais, a de se permitir
a expressão da opinião pública da maneira mais direta
possível, com a maior diversidade possível, como a melhor fórmula para se
chegar à interpretação racional da opinião pública e sua transformação em ação
de governo.
A
melhor maneira de perceber concretamente a diferença entre a função do Parlamento
e a da imprensa, na sua relação com a opinião pública, obtém-se quando
verificamos as cautelas que as Constituições incorporam para proteger o
Parlamento diante da possibilidade de um erro e as que são estabelecidas para
que a imprensa possa errar. A lei deve ser submetida a um processo de
verificação que não tem comparação com nenhum outro ato do Estado
constitucional. A imprensa, ao contrário, deve estar protegida não para que não
se engane, mas para que possa se enganar. A opinião pública deve ser capaz de
se expressar espontaneamente a qualquer momento e através de qualquer meio, em
especial através da imprensa, sem qualquer limite além da comprovação mínima
indispensável que garanta que o que se está transmitindo não é algo
intencionalmente incorreto. E isto é assim nas democracias porque a função da
imprensa não é a de traduzir em lei a opinião pública, mas a de permitir que
essa opinião pública seja ouvida e considerada da forma mais completa possível.
Em outras palavras, as funções da
imprensa e do Parlamento em uma sociedade democrática são completamente
diferentes, porém são complementares. Sem imprensa livre, protegida
constitucionalmente inclusive quando erra, não há sociedade democrática. Sem um
Parlamento que seja capaz de traduzir honestamente a opinião pública em lei que
vincula a todos e que verifique, através de um processo meticuloso e demorado,
a correção das decisões que serão tomadas, não haverá Estado que possa
funcionar e, por conseqüência, sociedade que se possa auto-dirigir
politicamente.
As
tensões entre o Parlamento e a imprensa estão inscritas, como diriam os
juristas, na natureza das coisas. No entanto, estas tensões se tornam
preocupantes quando os déficits de legitimidade e de eficácia estruturais do
Parlamento passam a ser identificados pela sociedade
como sinais da obsolescência da instituição.
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Resumo: O objetivo do
artigo é apresentar o conceito de opinião pública como um fenômeno histórico e
político construído pela sociedade burguesa. Além disso, procura
mostrar as aproximações e tensões entre opinião pública, Parlamento e imprensa.
Palavras-chave: Opinião
pública, Parlamento, imprensa, democracia.
Abstract:
The intention of this paper is to present the concept of public opinion
as a historical and political phenomenon constructed by the bourgeoisie
society. In addition, tries to find the proximities and tensions between public
opinion, parliament and journalism.
Key-words:
Public opinion, parliament, journalism, democracy.
* O autor é editor. Mestre
em Ciência Política pelo PPGCP/IFCS/UFRJ, professor
da PUC/Rio e da Facha.