A LONGA
MARCHA DO PT PARA A SOCIAL-DEMOCRACIA*
Paulo Roberto de Almeida**
O PT, quem diria?, acabou na social-democracia.
Pois é, depois de anos e anos criticando a própria (ou seja, os herdeiros da
Segunda Internacional), recusando qualquer aproximação com seus herdeiros
heterodoxos da Terceira Via, depois de denegrir, por anos a fio, a opção
daqueles grupos, partidos ou personalidades que já tinha feito, consciente e
voluntariamente, o caminho para o reformismo democrático e para a administração
sensata do capitalismo realmente existente, o PT, por sua vez e finalmente, se
junta ao cordão dos convertidos, pelo menos em intenção e de forma meio encabulada.
Com efeito, o processo de adesão do PT – ou, pelo
menos, de algumas de suas lideranças mais importantes – aos preceitos e
princípios do reformismo moderado e do realismo econômico tem tudo para
aparecer, até agora, como sendo uma conversão inconfessada e envergonhada. Isto
foi feito provavelmente para não provocar a ira das hostes de true believers
e de seguidores “religiosos” de um partido que fez do radicalismo naïf
sua marca registrada durante a maior parte de uma trajetória política
extremamente bem sucedida, para os padrões brasileiros, em termos de desempenho
eleitoral e alcance social. O PT ficou devendo à sociedade, portanto, uma
explicação e uma justificação desse não tão tresloucado gesto, muito pelo
contrário.
Pode-se datar essa “ruptura epistemológica” do
maior partido brasileiro e, com toda certeza, do atual maior partido do
Ocidente? Para fins de cronologia estritamente conjuntural, digamos que o
abandono dos velhos ritos e manuais e a conseqüente conversão às novas crenças
– ainda não oficializada, diga-se desde logo – tenham sido feitos entre o
encontro nacional de Olinda, em dezembro de 2001 (e seu cartapácio de
“resoluções” conservadoras, isto é conforme os velhos cânones) e o anúncio da
“carta ao povo brasileiro”, em junho de 2002, no início da fase decisiva da
campanha presidencial. A “grande mudança” – sempre da forma mais discreta
possível – foi confirmada logo em seguida através do programa de governo e
definitivamente consagrada na carta de aceitação do acordo do Brasil com o FMI,
em agosto de 2002, ainda que, repitamos, em nenhum momento o PT avisou a
freguesia – sua própria clientela eleitoral, seus militantes mais aguerridos e
sobretudo os populares de modo geral – que ele estava empreendendo essa longa
marcha, a passos lépidos, em direção da social democracia. Foi portanto uma
rápida mudança, que levou algo como três ou quatro meses, se tanto, entre as
primeiras conversas dos principais formuladores dos textos e programas e os
ajustes finais com os porta-vozes e “discursadores” oficiais do PT, a começar
pela pequena nomenklatura do quartel-general.
Mas, esta foi apenas a “conjuntura histórica de
transformação”, para usarmos uma terminologia labroussiana, pois que o
processo, na verdade, vem de longe, talvez desde uns cinco ou dez anos de
“acumulação primitiva” de novas idéias e de novos princípios para a ação do PT.
Tratou-se, provavelmente, de uma longa evolução, que deve ter torturado as
mentes e corações desses dirigentes partidários durante noites e noites mal
dormidas e incontáveis conversas de “pé de ouvido” com outros líderes
igualmente convencidos, depois de muitas frustrações e choques com a realidade,
de que algo precisaria ser feito para remediar o coquetel de ilusões econômicas
servido durante anos aos militantes da causa e contornar a perspectiva de novas
derrotas eleitorais se algo não fosse feito para mudar o curso de um partido
que funcionou sempre à base de entusiasmo militante mas que ainda não tinha
convencido a classe média – que é, finalmente, quem decide eleições no Brasil –
de que o partido estava finalmente preparado para “empolgar” o poder.
O PT, se de fato pretendia algum dia governar o
País, tinha de romper os grilhões que o amarravam a um discurso inconvincente e
a fórmulas salvacionistas nos quais nem mesmo os militantes mais esclarecidos
aparentavam mais acreditar. Esses grilhões foram rompidos e nessa ruptura
paradigmática o PT nem sequer perdeu a única coisa que tinha a perder nesse
assalto ao céu do “poder burguês” e ao “templo dos mercadores e agiotas” do
capitalismo velho de guerra: a aparente pureza de suas posições radicais e suas
eternas promessas de “mudar tudo isto que está aí”. O PT ganhou um mundo novo e
nem sequer gabou-se do “novo manifesto” no qual sustenta suas novas posições
social-democráticas.
Como isto foi possível? De fato, o “Bad
Godesberg” do PT, isto é, sua ida a Canossa, foi clandestino e
inconfessado, aliás até agora não assumido e não declarado, daí a raiva
incontida e a frustração compreensível de muitos dos true believers e
dos acadêmicos idealistas que ainda fazem o grosso de suas tropas de
mobilização (mas não de ocupação). Com razão, um punhado de representantes
políticos e muitos apoiadores acadêmicos reclamam da contradição entre o velho
discurso – ainda não rejeitado em concílio formal – e as novas práticas, todas
elas desabridamente social-democráticas, despudoradamente reformistas,
inconfessadamente capitalistas e quase “neoliberais”, quanto aos resultados,
senão em intenções (aqui com alguma licença poética).
Não pretendo retomar, neste curto texto
dissertativo, a análise dessa “grande transformação” a que se submeteu o PT,
trabalho já efetuado em meu livro A Grande Mudança (publicado no início
de 2003, mas quase todo ele escrito ainda antes das eleições, em meados de 2002).
Apenas desejo destacar que essa ruptura do PT com seus velhos demônios de um
passado irrequieto e radicalmente juvenil era já esperada e mesmo
historicamente necessária. Sou tanto mais insuspeito para afirmá-lo que, sendo
simpático à maior parte das causas que defende o PT, eu estava aguardando há
anos que ele fizesse essa conversão para que o partido pudesse, finalmente,
compatibilizar missão histórica com discurso político, responsabilidades
governativas e bom senso, adequação de objetivos e clareza quanto aos meios e
métodos, enfim, que ele se assumisse como o partido reformista e capitalista
que ele sempre foi (ou que pelo menos deveria ser) e o agente hegeliano, a
partir de agora, da verdadeira mudança social e política de que o Brasil
necessita.
Também não hesito em confessar que, sendo marxista
(ainda que de uma tendência algo anarquista ou libertária), eu acho
absolutamente natural que o PT caminhe para um modo superior de produção de
idéias e conceitos, para uma etapa mais avançada do desenvolvimento de suas
forças produtivas mentais, trajetória que fará, finalmente, com que ele escape
da camisa de força ideológica que o manteve aprisionado durante muito tempo a
falsas ilusões transformistas e a várias receitas equivocadas de administração
da “coisa” econômica para enveredar pelo caminho sensato, certamente mais
modesto e limitado, das pequenas mudanças graduais e das aproximações
progressivas à justiça social e à incorporação de todos os oprimidos. Esta é a
sua missão histórica e para ela, e com ela – mesmo não sendo militante do
partido –, pretendo colaborar na extensão de minha limitada habilidade
profissional e eventual competência intelectual.
Como, entretanto, acredito que ainda não se
desfizeram todas as névoas e brumas que cercam o ideário do partido, justamente
porque ele ainda não convocou o conclave no qual os novos dogmas serão
oficializados, ofereço, a título de colaboração, uma simples tabela de velhas e
novas idéias que convém certamente discutir, com o fito de aposentar antigos
manuais e começar a elaborar os novos cadernos de viagem, numa trajetória que
terá os seus solavancos e surpresas de beira de estada, mas será certamente
coroada de sucesso como convém a um partido decididamente democrático e agora
social-democrático.
A tabela que apresento a seguir, retirada de meu já
citado livro A Grande Mudança – e que constitui, precisamente, o único
texto pós-eleitoral dessa obra – tem a pretensão exclusiva de separar algumas
velhas idéias “malucas” de alguns novos conceitos – alguns talvez
surpreendentes para certas “almas cândidas”, como diria Raymond Aron – que
podem ajudar a ver um pouco mais claro nesta nova trajetória cheia de surpresas
que agora empreende o mais novo (e provavelmente o maior) partido
social-democrático do Ocidente.
Dotada de um certo tom iconoclástico e provocador,
essa minha “tabela periódica das novas partículas elementares” pretende
apresentar, em três colunas correlacionadas, um conjunto de idéias vencedoras,
outras idéias derrotadas (ou em vias de sê-lo) e outros tantos conceitos vagos
e esperanças ainda indefinidas na presente conjuntura de transformação.
Dispensável dizer que a distribuição que eu mesmo efetuei dessas idéias que
considero bem sucedidas – a própria social-democracia, a globalização, o bom
senso econômico, enfim –, assim como de outras de menor desempenho relativo em
nossos tempos de neoliberalismo disfarçado, não corresponde àquela repartição
de “boas e más” idéias que parecia derivar dos antigos manuais de economia
política adotados pelo maior partido brasileiro.
Se ouso fazer uma síntese das novas idéias e dos
novos compromissos que se espera venham agora corresponder à ação prática e
governativa da nova maioria política, eu diria simplesmente o seguinte: do PT a
sociedade espera que ele se guie, a partir de agora, menos por Antonio Gramsci
e mais por Peter Drucker, ou seja, que ele afaste os véus ideológicos de um
passado não muito distante e adote, doravante, uma nítida feição de
administração para resultados. Vejamos, em todo caso, como poderia se
apresentar este comércio de idéias entre o novo centro político e a sociedade
que o cerca:
Tabela periódica das novas partículas elementares (Atenção: os materiais podem ser misturados entre si, mas em doses
muito bem medidas) |
||
Idéias vencedoras |
Idéias derrotadas |
Ainda indefinidas |
Conceitos abstratos e tipos ideais de boa governança |
||
Milton Friedman |
Karl Marx |
Antonio Gramsci |
Karl Kautsky |
Vladimir Ilich |
Edward Bernstein |
Paul Samuelson |
Oskar Lange |
Celso Furtado |
Pragmatismo |
Ideologia |
Princípios fundadores |
Empirismo |
Materialismo dialético |
Socialismo utópico |
Capitalismo |
Forte papel do Estado |
Economia solidária |
Liberalismo social |
Socialismo liberal |
Neoliberalismo |
Analista de Bagé ã |
Bispo da CNBB |
Jornalista progressista |
Programa de governo |
Plataforma maximalista |
Projeto nacional |
Reformas econômicas |
Modelo alternativo |
Determinação do governo |
Tecnocracia estatal |
Intelligentsia genérica |
Intelectual “público” |
American dream |
Cartorialismo português |
Jeitinho brasileiro |
A prática concreta das relações econômicas internacionais |
||
Globalização |
Autonomia nacional |
Um novo mundo possível |
Consenso de Washington |
Gastança keynesiana |
Investimentos sociais |
Interdependência |
Não à “subordinação” |
Administração da abertura |
FMI |
ATTAC |
Foro Social |
Abertura a capitais externos |
Não aos fluxos “voláteis” |
Controles seletivos |
Complementaridade |
Desnacionalização |
Cadeias produtivas |
Comércio de duas mãos |
Mercantilismo |
Incentivos às exportações |
Agricultura de mercado |
Subvenções às exportações |
Alguns subsídios internos |
Multinacionais brasileiras |
Monopólios internacionais |
Alianças estratégicas |
Acordos de liberalização |
Anexação comercial |
Barganha negociadora |
Câmbio flutuante |
Intervenções dirigidas |
Flutuação + ou - “suja” |
Conversibilidade gradual |
Centralização do câmbio |
Papel do Banco Central |
Entendimento com credores |
Reestruturação unilateral |
Risco aceitável |
Respeito aos contratos |
Moratória soberana |
Auditoria da dívida |
Tarifas regulatórias |
Impostos proibitivos |
Papel da política comercial |
Menor custo de captação |
Tobin Tax |
Quarentena ou imposto? |
Alguns novos princípios para a economia doméstica |
||
Responsabilidade fiscal |
Orçamento elástico |
+ Receita vs. - Despesa |
Forças de mercado |
Projeto estratégico nacional |
Soft planning |
Metas de inflação |
Crescimento máximo |
Limites do trade-off |
Fluxos, antes dos estoques |
Redistribuição patrimonial |
Desconcentração da renda |
Participação estrangeira |
Reversão das privatizações |
Continuidade dos leilões |
Demanda ampliada |
Mercado interno |
Consumo de massas |
Patenteamento ampliado |
Autonomia tecnológica |
Geração endógena |
Juros de mercado |
Limitação constitucional |
Autonomia do Copom |
Agribusiness |
Multifuncionalidade |
Créditos subsidiados |
Agricultura familiar |
Reforma agrária milagre |
Cooperativas populares |
Ajuste fiscal |
Despoupança estatal |
Poupança doméstica |
Indução horizontal |
Política industrial ativa |
Pesquisa e desenvolvimento |
Flexibilização laboral |
Novos direitos sociais |
Reforma da CLT |
Bolsa-escola |
Renda-cidadã |
Fontes de financiamento |
Normas prudenciais |
Não ao oligopólio bancário |
Reforma financeira |
Salário mínimo máximo |
Pressão sobre a Previdência |
|
Alunos do primário público |
Elite universitária “pública” |
Qualidade do ensino básico |
Velhinha de Taubaté ã |
Burguesia nacional |
Industrial da FIESP |
Fonte: Paulo Roberto de Almeida, A Grande
Mudança: conseqüências econômicas da transição política no Brasil. São
Paulo: Editora Códex, 2003; (com a contribuição involuntária de Luís Fernando
Veríssimo: ã
Analista de Bagé e Velhinha de Taubaté). |
Se me permitem, agora, uma última digressão final
sobre o próprio título desta mesa, “Por onde tem ido e por onde irá o governo
Lula?”, eu diria o seguinte. O grupo que hoje controla o partido e o governo –
o que não quer dizer, obviamente, o conjunto do partido e sequer a massa de
seus seguidores políticos ou eventuais apoiadores eleitorais – veio, em grande
medida, da coluna do meio, com alguns matizes inevitáveis em função da origem
político-partidária ou social desses dirigentes principais. A nomenklatura
ainda não absorveu totalmente, nem pretende fazê-lo abertamente, as novas
idéias e conceitos para uma boa governança à la Drucker, alinhados –
como convém – à esquerda da tabela, mas ela tem absoluta certeza de que o
caminho gramsciano oferece muito poucas alternativas de sucesso administrativo,
social ou econômico. Ela recusa, em todo caso, a maior parte das velhas
promessas de outros tempos, o que é um bom sinal de gestão responsável e uma
promessa de ação comprometida com resultados seguros de crescimento com
preservação da estabilidade macroeconômica (um ideal tipicamente social-democrático).
Resta, portanto, o grande objetivo da justiça
social, que alguns ainda identificam com o distributivismo semi-populista.
Tenho certeza de que se caminhará em direção dessa meta histórica, com total
preservação da democracia e de uma sociedade aberta aos talentos e aos méritos
individuais. Como fazê-lo, sem desregular a máquina econômica, parece ser o
desafio principal desta conjuntura de pouco mais de três anos à frente. Creio
que alguns dos conceitos que poderiam ser mobilizados para essa tarefa se
situam, sem qualquer conotação ideológica, na coluna da direita – mas ele ali
estão de forma algo ambígua e com um desempenho pouco claro quanto à
efetividade das idéias ali alinhadas para a consecução dos objetivos do novo
centro político do Brasil. Uma coisa, porém, me parece certa, a partir de
agora, no sempre mutável sistema político-partidário brasileiro: o PT chegou
finalmente à social-democracia e nela vai ancorar o seu grande veleiro de
torneios políticos e de cruzeiros sociais. Que bons ventos o levem ao
continente de seus sonhos, assim como, suponho, dos sonhos da maioria dos
brasileiros. Em todo caso, bem vindo à realidade!
* Trabalho
concluído em Washington em 10 de outubro
de 2003 e apresentado na sessão “Por
onde tem ido e por onde irá o governo Lula?”, realizada em 22.10.03, no
Congresso da ANPOCS, em Caxambu / MG.
** Paulo Roberto de Almeida.
Diplomata. Professor e Doutor em Ciências Sociais. pralmeida@mac.com;
www.pralmeida.org