A CONSTITUIÇÃO COMO DETERMINAÇÃO DE
LEGITIMIDADE*
Wellington
Trotta**
Desde que se organizou em grupo, desde que
reconheceu a necessidade da vida em sociedade, ou mesmo quando percebeu a
importância de uma vida política, o homem tem procurado incessantemente
construir formas criteriosas de organização coletiva, onde de uma certa maneira
todos possam se sentir autores dos seus destinos, ou pelo menos construir um destino mais ou menos comum. Mesmo que tal busca fosse um
desejo, um impulso natural de afirmação da condição humana de associativismo
segundo Aristóteles, a história nos ensina que a maioria sempre esteve ausente
do processo decisório quando o assunto se torna os negócios da cidade. Até em
uma sociedade desenvolvida como a ateniense, que marcadamente se caracterizou
por inventar um sistema governativo onde todos os cidadãos pudessem de alguma
forma expressar dúvidas, insatisfações, perspectivas e um debate permanente dos
interesses sempre públicos, amargou contínuas manobras por parte daquele grupo
insatisfeito em compartilhar o poder. Mesmo sendo de amplo espectro, a
democracia ateniense se via as turras com os aristocratas ciosos de suas
prerrogativas, e furiosos por vê-las em discussão na agora, debatida e votada por todo cidadão ateniense maior de vinte
anos.
A experiência ateniense não foi suficiente
para cravar no coração da história uma linha de continuidade que ensejasse uma
necessidade permanente, que por sua vez gerasse uma condição sine qua non de organização política. Talvez Platão tenha
detectado o problema da derrocada da democracia ateniense quando afirmou que
Péricles e sucessores, não formaram nos homens valores correspondentes por meio
de processos pedagógicos. Estando certo ou errado, Platão percebeu que
instituições só são válidas quando afinadas culturalmente, por isso sua
preocupação sempre esteve voltada para o problema da educação, instrumento pelo
qual o poder público constrói valores dirigidos para uma verdadeira vida em
sociedade. Vale lembrar que Platão foi o primeiro pensador político a pensar
educação como instituição, como algo permanente e eficaz na condução dos
negócios públicos. Sua visão de uma educação obrigatória, aos cuidados do poder
público, foi uma sacada tão profunda que, hoje, os mais variados sistemas
governativos adotam tal critério de formação cultural. E mesmo os liberais mais
convictos do século XIX, defenderam a educação obrigatória enquanto
instituição, isso porque de uma forma ou de outra garantia a expansão do
desenvolvimento de suas próprias idéias e a sobrevivência de suas teses.
Pensando bem, Platão é o fundador da escola
política que tem como preocupação à existência de um critério permanente de se
levar em conta o sujeito e resguardá-lo do abuso daqueles que ocupam o poder
político de uma sociedade. Tal evidência está em sua preocupação em atrelar
Estado à justiça, virtude à justiça, equilíbrio à justiça, poder à justiça;
critérios de submeter o poder público a um código legal-ideal de limite e
eficácia do poder político: a internalização da
legalidade. Esse pensador não concebe justiça senão como critério de verdade na
condução dos negócios públicos; Estado só pode ser compreendido enquanto um
sistema legal onde cada membro conhece sua efetiva participação.
Tendo sido derrotado o seu projeto no plano
histórico - o ideal de educação como um valor permanente e necessário à
harmonia social, administrado pelo poder público, tornando-se instituição
político-cultural -, só sendo revisto pelo Iluminismo e adotado como princípio
pela revolução francesa, Platão se torna um pensador político contemporâneo,
pois pensa instituições políticas a partir de virtudes republicanas, onde o
trato da coisa pública requer um alto nível de maturidade comunitária, sendo o
eu e o outro ligados pelo mesmo plano de necessidades
e interesses. Platão lega à história o conceito de Estado como instituição
voltada à administração da coisa pública, dos interesses públicos, das
necessidades públicas. Portanto, penso que ao iniciar este trabalho, nada
melhor que evocar esse pensador na qualidade de mostrar o espírito das
reflexões que pretendo apresentar ao longo deste texto.
Proponho como tema da presente pesquisa,
discutir a eficácia de toda e qualquer Constituição
que pretenda, na qualidade de instrumento político, superar um leque de conflitos, do econômico ao ordinário.
Pretendo com tal tema desenvolver o sentido de que toda e qualquer Constituição
é em si uma determinação de todo Estado que se pretende
filiar ao conceito de Estado de direito, que não deixa de ser uma
conquista construída pelos homens na luta contra os atos de desmando de grupos
e aparelhos políticos, destinados a privilegiar classes em detrimento de uma
ampla maioria que efetivamente trabalhou para o fausto daqueles. Se o Estado
está longe de ser o reino da superação das contradições, longe de ser o
universal contemplando as particularidades como afirma Hegel, não podemos
ignorar, isso sim, o seu importante papel dentro das formações sociais ainda
existentes. Sendo ou não um instrumento de uma classe sobre a outra, um instrumento de grupos ao longo da
história, sempre foi objeto de desejo por parte daqueles que sempre o tiveram
como meio de legitimar idéias, princípios, interesses e conquistas, isto é,
tornar legal como critério de verdade.
Para finalizar esta introdução, ressalto
que o objetivo maior deste trabalho não é outro senão o de passar em revista,
algumas reflexões que entendo importantes na construção de um entendimento
razoável acerca do tema, que por sua vez será oferecido ao poder de análise do
leitor.
2 - Constituição: conceito e algumas
visões.
O que se pretende com uma constituição? Em
que medida uma organização política tem em si a necessidade de se instituir por
meio de uma constituição? Qual, portanto, sua necessidade?
Na exposição de um dado tema - no
levantamento de uma discussão que se pretende teórica - penso por bem ter em
conta a máxima de Aristóteles: “Começaremos,
como é natural, pelo princípio.”1
Respeitando o que se pensa correto, começarei pelo princípio duplamente, isto
é, pelo início e pelo sentido; pelo começo e pela conceituação do objeto deste
tópico. A palavra constituição tem origem no latim. Em sentido próprio constitűtiõ,
-õnis,
significando, natureza, estado, condição; em sentido abrangente assume a
possibilidade de ser uma disposição legal, instituição. O termo foi, com o
passar do tempo, ganhando sentido jurídico-político após muitos debates entre
juristas a partir da idade média, assumindo definitivamente o conteúdo como nós
o conhecemos hoje por influência do idioma francês, assim grafamos por
constituição. Quanto ao conceito de constituição propriamente dito, aquele que
a define como tal, pode ser encontrado em diversos autores contemporâneos,
dentre os quais destaco em razão de sua síntese o do prof.
José Afonso Silva:
“A
constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a
organização dos seus elementos essenciais: um sistema de
normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado,
a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o
estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos
fundamentais do homem e as suas respectivas garantias”.[i]2
O conceito supra apresenta uma ampla
distribuição de competências por parte da lei fundamental de um dado Estado.
Como se observa, constituição é a certidão política de configuração de um
Estado moderno. Sua essência está relacionada ao estabelecimento de regras e
princípios claros de uma construção política de sociedade. Definir claramente o
papel político de cada instituição, de cada órgão é tarefa precípua de toda
constituição, que como observamos, assume na modernidade condição de própria
existência de uma sociedade pretensamente política. Sua condição é essencialmente
vinculada a qualquer Estado dito não só de direito, mas, sobretudo marcado pelo
compromisso de estabelecer limites a qualquer ação, seja de pessoa física ou
jurídica, de direito privado ou de direito público. Em síntese, a constituição
é um apelo formal à introspecção de competências, respeito ao que se entende
por interesse público e ação pública. Muito antes disso Aristóteles já
associava constituição a governo, como se este fosse na verdade condição
daquela: “Visto que as palavras
constituição e governo significam a mesma coisa, visto que o governo é
autoridade suprema nos Estados (...) O governo é a ordem estabelecida, na
distribuição das magistraturas.”3
Se na Antigüidade grega, sobretudo no
pensamento de Aristóteles, o significado de constituição assume uma concepção
idealista, mesmo em oposição a Platão, somente na contemporaneidade o sentido
de constituição assume uma relação de imposição legal, o poder público na
figura do Estado ficando obrigado a obedecer aquilo que fora determinado pela constituição,
ou seja, é dentro de uma constituição onde são encontrados os mecanismos que
asseguram aos cidadãos uma estreita relação entre poder e legalidade. Andrew
Vincent destaca uma afirmativa de Lord Bolingbroke muito interessante:
“Por
constituição nós entendemos, quando falamos com exatidão, aquele conjunto de
leis, instituições e costumes, derivados de certos princípios fixos de razão,
dirigido a certos objetos fixos de bem público, que compreende o sistema geral, de acordo com que a comunidade concorda em
ser governada.” 4
Mesmo sendo um conceito de constituição
marcadamente antigo dentro do constitucionalismo, tem-se claramente uma visão
de constituição enquanto um ato ou um documento formal que institua uma
estrutura política inteiramente subordinada aos interesses daqueles que a
constituíram. Constituição, portanto, nesse sentido é expressão de relação
entre poder e cidadão, onde este é o sujeito daquele.
Nos escritos clássicos do pensamento
político, se percebe que a importância da constituição como documento legal não
constitui panacéia para todos os problemas dentro de uma determinada ordem
social, porém, isso é claro, algo que obrigue aos detentores de função pública,
um compromisso mais estreito com a racionalidade da existência do Estado enquanto
sociedade política. Na racionalidade dos clássicos não se tem a ilusão de que
um papel escrito suspenda os desejos daqueles que anseiam por materializar
interesses e expectativas. Locke, ao contrário do que imagina Vincent, caminha
na mesma linha adotada por Bolingbroke quando
enfatiza o relevante papel da lei na comunidade dos homens. Para Locke, o
objetivo maior da união entre os homens em comunidade é garantir a propriedade,
e para tal é necessário em primeiro lugar uma lei estabelecida, enunciada,
aceita, firmada e comum a todos, sendo todos submetidos à sua eficácia como
forma de dirimir conflitos. Em segundo lugar considera necessário
a existência de um juízo “conhecido
e indiferente com autoridade” para por fim a toda e qualquer controvérsia, sempre
baseado naquela lei fundamental. Em terceiro lugar é necessário um poder que
garanta o cumprimento da sentença justa, por isso a necessidade de uma lei
anterior e aceita por todos na comunhão de uma “comunidade”.
“O grande objetivo da entrada do homem em
sociedade consistindo na fruição da propriedade em paz e segurança, e sendo o
grande instrumento e meio disto as leis estabelecidas
nessa sociedade, a primeira lei positiva e fundamental de todas as comunidades
consiste em estabelecer o poder legislativo; como a primeira
lei natural fundamental que deve reger até
mesmo o poder
legislativo consiste na
preservação da sociedade e, até o ponto
em que seja
compatível com o bem
público, de qualquer pessoa que faça parte dela.”5
No entendimento de Locke, o que determina o
sentido de constituição é a elaboração de um estatuto formal que garanta o
livre exercício das disposições do ser humano, bem como o uso e gozo da
propriedade, que para este pensador não é outra coisa senão vida, liberdade e
bens. Para o pensador inglês a lei apenas deve ratificar o que já existe como
determinação segundo a comunidade. É a comunidade, em última análise, a
detentora do poder político, pois traz consigo a soberania legítima de
instituir e destituir poderes sempre levando em conta o bem comum, o bem
público, o interesse público.
O que de fato marcou o pensamento político
moderno, até como desafio, foi a necessidade de se
determinar o conceito de constituição política e os meios de efetivá-la no
plano prático das ações humanas, visando com isso limitar o impulso de quem
administra o poder político. Portanto, dentro de uma grande luta entre
príncipes e súditos, o resultado foi a fundamentação
de um entendimento de que os homens necessitam de regras claras no que diz
respeito à vida em comunidade, sendo assim, imperioso a existência de um
instrumento formalmente instituído com o definitivo propósito de favorecer condições
mínimas de relação entre os homens, onde haja respeito ao que foi de certa forma
acordado. Seguindo nessa linha encontramos o pensamento político de Hegel.
“A
constituição política é, em primeiro lugar, a organização do Estado e o
processo da sua vida orgânica em relação consigo mesmo. Neste processo distingue o Estado seus elementos no interior de si mesmo e
desenvolve-os em existência fixa.”6
Hegel
assinala, que o momento da constituição política é o racional, isto é, forma de
se guardar uma instância universal capaz de em si mesma possuir as condições
necessárias de superação das particularidades. O que Hegel leva em conta na
elaboração do seu entendimento de constituição política, é o novo papel que se
anuncia para o Estado face às suas relações com os indivíduos. Por isso o
Estado deve ser em si mesmo um ente de razão, instituição necessariamente capaz
de superar os conflitos existentes na sociedade civil-burguesa. A constituição
política de um povo é, em princípio, o que determina a sua liberdade. Não há
liberdade sem a existência do Estado, por sua vez, não há Estado sem a
existência de uma constituição que o configure como o reino da liberdade, o
mundo ético.
A importância de uma racionalidade em si mesma, que a constituição política traz consigo, visa a superar o reino das necessidades particulares, que de uma certa forma desestabiliza uma dada comunidade. A constituição, por ser a mais absoluta manifestação de racionalidade, é o Estado se constituindo a partir de si mesmo e se autolimitando como condição essencial de vida comunitária, de vida ética. Em Hegel o que define a importância de uma constituição política é o seu caráter de organizar o próprio Estado, levando-o assim a consecução de seu fim, a liberdade sob o império da lei.
Se em Hegel o Estado é uma necessidade
histórica, se é a partir da história que sua realidade se constrói, é dentro da
história que sua dimensão surge epicamente, isto é, como razão, colocando-se o
Estado na condição de servidor das necessidades públicas. Não é correto colocar
no pensamento de Hegel aquilo que na verdade não existe. O Estado é para ele
aquilo que a polis é para o grego,
uma necessidade, algo intrínseco à própria natureza associativa dos homens.
Aristóteles ressalta que:
“O
homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e que
aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa de
fazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao
homem.”7
Hegel, na mesma linha de raciocínio,
assevera que o fim último do homem é viver no Estado, e nele constituir sua
dimensão ética. Tanto Hegel quanto Aristóteles, mutatis mutandis, afinam-se na compreensão da
constituição como forma de ordenamento, ação política de governo e que é
firmada à luz de princípios normativos.
É dentro da norma jurídica que o governo se
desenvolve aplicando a si mesmo o preceito de respeito às instituições,
especificamente às políticas. Interessante semelhança encontra-se em
Montesquieu na passagem onde examina o conceito de liberdade, considerando que:
“Num Estado, isto é, numa associação em
que há leis,”8
o governo atua dentro dos limites que a comunidade firmou como positivo, válido
e suficiente.
Por fim, não é correto pensar que a
constituição é por si só a condição suficiente da limitação do poder, é isso
sim, após lutas homéricas de vidas ceifadas, a celebração de um pacto normativo
entre os homens na execução de um programa mínimo onde as regras de convivência
sejam claras e norteadoras para a composição de conflitos futuros,
necessitando para todo efeito de permanente atuação e firmeza da ação do povo.
3 - Instituições: conceito e relação.
É bem verdade que com a constituição do
Estado, com a formulação do conceito de que se deve tê-lo na conta do interesse
comunitário, torna-se o próprio Estado a grande instituição política da
comunidade. Nesse particular, o cidadão ateniense experimentou a façanha de
dentro da instituição máxima de sua cidade (Assembléia), decidir os destinos
dos seus respectivos interesses. Com Atenas aparece a institucionalização da
discussão que determina os rumos dos negócios públicos. Com Atenas concebe-se
uma ordem governativa em que o homem-cidadão apresenta-se como portador de si
mesmo, enunciador de sua própria vontade, o seu único representante. É a partir
da experiência grega, especialmente a ateniense, que o governo da cidade se
desvincula de uma única personalidade e passa a ser
constituído por estruturas políticas voltadas ao encontro de soluções onde as
ações assumem um perfil coletivo, melhor dizendo, as decisões políticas,
aquelas que envolvem os negócios da cidade, são tomadas por todos os cidadãos
de forma associativa na Assembléia (Ekklêsia)9. Discutir, portanto, era uma
condição necessária na democracia ateniense, que por sua vez estabeleceu a
instituição máxima de sua estrutura comunitária, a Ekklêsia.
O que vem a ser instituição? Assim como
constituição sua origem também se encontra no latim, institũtiõ,-õnis que em
sentido próprio significa disposição, plano, arranjo, e, que no sentido
derivado passa a configurar como princípios estabelecidos, instituições, usos,
costumes, que tem sua forma atual a partir do século XV. Destarte instituição é
“cada um dos costumes ou estruturas
sociais, estabelecidas por lei ou consuetudinariamente,
que vigoram num determinado Estado ou povo.”10 Por seu turno, instituição política
seria uma dada estrutura onde as relações de poder público necessariamente
medeiam a interação do Estado junto ao cidadão, em síntese, instituição
política é aquela disposição do poder público em se efetivar por caminhos
estruturais, criando por fim um costume imperioso no mundo moderno.
Instituições políticas são os mecanismos encontrados pelos homens na
racionalização de seus propósitos, ou seja, encarnar um sistema que garanta a
busca de soluções sempre na ordem da discussão.
Caso se pretenda uma análise das
instituições políticas no plano histórico, seremos surpreendidos por se constatar
que as mesmas, no processo de complexidade, nunca deixaram de estar vinculadas
às estruturas do poder político enquanto instância de organização estatal de
uma determinada organização social. Importa considerar, porém, que a
transformação deu-se no plano particular da representação de vontade, fenômeno
esse que tem seu embrião na república romana no seu governo misto.11 Políbio encontra na república romana uma organização
balanceada, onde de certa forma as três forças constitutivas do poder em Roma
estabeleciam uma espécie de controle de um sobre o outro. Consulado, senado e
povo se vigiam mutuamente: “Dessa forma
cada órgão pode ‘obstaculizar’ os outros ou ‘colaborar’ com eles, sua união é
benéfica em todas as circunstâncias, de modo que não é possível haver um Estado
melhor construído.”12
Segundo Políbio o
sucesso romano estava assentado nessa tripartição de poder, onde a cada um é
dada uma atribuição peculiar. Arrisco o comentário que talvez nesse momento
crucial para a teoria política, já se pensasse instituições políticas como
controle sobre o poder político do Estado, bem como a idéia de representação de
vontade por meio das instituições políticas. Arrisco nesta tese porque talvez
os gregos, ciosos de sua importância histórica na construção dos seus
desígnios, embora possam até ter pensado, nunca se viram a
vontade diante da perspectiva de se construir um governo onde a Ekklêsia não
fosse a instituição central de um equilíbrio conquistado após imenso banho de
sangue.
O surgimento e desenvolvimento das
instituições políticas sempre estiveram relacionados com a luta de se buscar
uma temperança - para usar um conceito grego de equilíbrio - dentro das ações
do Estado. O papel que as instituições políticas exercem, nasce de uma
perspectiva em chamar a atenção do Estado para a execução do seu fim, o de ter
como função fundamental, sempre servir de árbitro nas contendas provocadas
entre os próprios cidadãos uns com os outros. Têm em si mesmas, as instituições
políticas, o papel de buscar o melhor funcionamento possível da ordem pública,
por isso o pensamento político, empenhado em construir mecanismos de controles
institucionais sobre o poder público, sempre esteve preocupado com as ações do
poder, que de uma certa forma sempre estiveram ligadas a interesses de grupos
dentro do Estado.
As instituições políticas que constituem
gênero às instituições públicas, visto que estas são especificamente mecanismos
legais e legítimos da ação do Estado, sempre estiveram na ordem do dia daqueles
que tentaram amarrar poder público à ordem jurídica, esta ao interesse público,
este ao interesse comunitário. No pensamento político ocidental a partir da
Grécia Antiga, o controle institucional sempre esteve na ordem das prioridades
enquanto fundamento de controle sobre o Estado, no sentido de se guardar a
liberdade como um valor necessário à própria condição humana. Liberdade para se
possuir terras como controle de poder, liberdade para comercializar mercadorias
como forma de se obter o poder, liberdade para se organizar como instrumento de
luta para fazer valer um direito inalienável diante do poder, tudo constitui
liberdade, e, talvez este sentimento, mais que isso, esta necessidade, sempre
de uma maneira ou de outra impeliu tanto teóricos como lideranças políticas a
buscarem através de critérios institucionais, após terríveis embates bélicos,
um plano que pudesse corrigir, coibir e apontar outras
alternativas de se compor conflitos de interesses.
“Embora
em uma comunidade constituída, erguida sobre a sua própria
base, e atuando de acordo com a sua própria natureza, isto é, agindo
no sentido da preservação da comunidade, somente
possa existir um poder supremo, que é o
legislativo, ao qual tudo mais deve
ficar subordinado, contudo, sendo o legislativo somente um pode fiduciário destinado a entrar em ação para
certos fins, cabe ainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o
legislativo quando é levado a verificar que agem contrariamente ao encargo que
lhe confiaram.”13
Mesmo apontando uma saída institucional
para resolver possíveis problemas dentro da comunidade, mesmo levando em
consideração que as instituições políticas, sobretudo aquelas que representam o
próprio sentido de comunidade, possam de alguma forma se voltar contra o
instituidor de tudo, o povo, Locke compreende que de fato pertence ao povo a última palavra em se tratando do seu destino. Que as
instituições públicas representem uma racionalidade dentro da vida comunitária
isso não tem dúvida, mas daí assumir o papel determinante e determinado do povo
já é outra coisa. Locke não guarda ilusões quanto a total eficácia das
instituições públicas, tanto assim que aconselha aos mesmos homens que apelem
para os céus (as armas) caso na ordem institucional o povo se sinta
tolhido em sua liberdade, e ameaçado no uso, gozo e disposição de sua
propriedade.
Não está na conta das instituições públicas
a total solução dos problemas da comunidade, isto é, deve-se ter em mente que
as mesmas são instituídas, administradas e dirigidas por homens, e como tal
portadores de interesses nem sempre compatíveis com os da comunidade. Se as
instituições públicas foram criadas, idealizadas por teóricos e lideranças
políticas para coibir o poder publico, ou melhor, se foram formuladas no
interesse da comunidade contra aqueles aventureiros da coisa pública,
penso que a saída, como preceitua Locke, não pode ser outra senão a
rebelião popular, também uma instituição política fundada na mais profunda
tradição de se buscar o bem comum contra os interesses privados instalados no
Estado.
A leitura de Locke é perfeita quando
entende que os poderes legislativo, executivo e federativo foram pensados a
partir e contra o absolutismo monárquico, portanto, inadmissível vê-los se
comportando de maneira a obstaculizar quem os instituiu. Não guardando a ilusão
quanto ao discurso lockeano, voltado para os
proprietários e os novos homens de negócios, é de se considerar que o mesmo
pôde ser usado como uma ferramenta contra os próprios proprietários ao longo da
história. Pode parecer anacrônico, todavia, penso que Montesquieu está correto
quando afirma que mesmo não sabendo, os homens ao buscarem seus interesses
particulares trabalham para o fim comum: “A
honra movimenta todas as partes do corpo político; liga-as por sua própria
ação, fazendo com que cada um caminhe para o bem comum acreditando ir em direção de seus interesses particulares.”14
Dando
prosseguimento às idéias de Locke, é o mesmo Montesquieu, proprietário de
terras, o grande construtor da tese da desconcentração do poder centralizado,
na figura da divisão dos poderes legislativo, executivo e judiciário.
Montesquieu pensa em não deixar nas mesmas mãos as tarefas de legislar,
administrar e julgar de acordo com os estatutos legais. A desconcentração do
poder é um remédio institucional que visa criar dentro do poder público uma
relação de equilíbrio, onde nenhum poder faça de si mesmo condição de absoluto
mando dentro das relações entre os membros de uma sociedade:
“Tudo
estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos
nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de
executar as resoluções públicas e o de
julgar os crimes ou as divergência dos indivíduos.”15
Como se vê a tese de Montesquieu é
resguardar os indivíduos das arbitrariedades do poder público, é colocar o
Estado na sua verdadeira dimensão política, ou seja, o de guardião da coisa
pública. Mas para que o Estado seja o guardião da coisa pública, cuide para que
os indivíduos que estão sob suas leis estejam protegidos deste ou daquele
grupo, desta ou daquela facção com seus interesses privados, daqueles
interesses estranhos à concepção de república - como ressalva Madison - é preciso a solidificação de estruturas
institucionais com o firme propósito de manter o poder público diante de sua
perspectiva, sempre atento e prevenido por legislação competente, e tendo a
frente o povo como esteio de uma vontade capaz de impedir assim, que o público
pereça ante o privado.
Na mesma linha de pensamento de
Montesquieu, Madison comentando o pensador francês, observa:“Quando todo o
poder de um braço é exercido pelas mesmas mãos que possuem todo o poder de
outro, os princípios fundamentais de uma constituição estão subvertidos”16. Tal concentração de poder coloca em
perigo a estrutura constitucional e a própria soberania popular. É preciso,
portanto, que essa mesma soberania popular conceba um remédio político-jurídico
que contemple tal anomalia, que barre por meio de instituições as facções,
tendo por fim uma comunidade onde o coletivo esteja em primeiro plano. Madison, entretanto, vai mais longe que Montesquieu quando
detecta a causa do facciosismo, e
consoante a isso, a instabilidade institucional:
“A
fonte mais comum e duradoura de facções, porém, tem sido a distribuição diversa
e desigual da propriedade. Os que têm bens e os que carecem deles sempre
formaram interesses distintos na sociedade (...) A regulamentação desses
interesses diversos e concorrentes constitui a principal tarefa da legislação
moderna e introduz o espírito partidário nas operações necessárias e ordinárias
do governo.”17
Pretendo ao encerrar este tópico,
apresentar algumas reflexões de Hegel no tocante às instituições funcionais do
Estado, conhecidas como funções de poder ou atribuições dos três poderes
existentes no Estado moderno, que na verdade nada tem de moderno e sim de
contemporâneo.
Apoiando-se no idealismo alemão, no
racionalismo cartesiano e na paidéia grega, Hegel
tenta por meio de uma síntese restabelecer a unidade do conceito de Estado que
havia no mundo grego, muito embora tal termo seja desconhecido por este povo,
até porque a origem desta palavra é latina, e seu uso atual tem origem na
modernidade.
Hegel entende que o Estado é palco de toda
uma eticidade necessária à existência da liberdade,
mais que um ordenamento jurídico constitui-se em um conceito, numa totalidade
onde o indivíduo é reconhecido como tal por existir no todo, numa comunidade
onde o que vale é a vontade racional. Estado para Hegel é uma condição
necessária de organização política, de organização onde os indivíduos tenham
por princípio a comunidade. Essa totalidade tão cara a Hegel, é encontrada no
mundo grego. Para o grego a vida comunitária é algo imperioso e motivo de plena
condição de ser integrante em si mesmo, por isso a vida comunitária grega,
sobretudo naquelas cidades onde a democracia toma forma radical, a participação
conta como momento de sua efetivação ética, o enraizamento
de seus hábitos como essenciais na constituição de sua vida. Assim a
participação nos negócios da cidade, nos negócios públicos, tinha de ser pela imediaticidade, nunca pela representação, o que
caracterizaria como ausência de determinação de vontade. A representação no
mundo grego é a ausência de si mesmo, só é possível no teatro, pois assim
usa-se máscara como apresentação de uma personalidade exterior ao que fala.
Hegel toma tais princípios para formar seu vigoroso pensamento político, no
intuito de considerar essencialmente necessário a vida ética,
a vida comunitária.
Mesmo considerando difícil a restauração da
plena efetividade política, visto que compreende o novo momento, o novo tempo
que enseja a idéia de mediaticidade, Hegel observa no parlamento uma
possibilidade de universalidade, de contemplação do papel da agora grega. Todavia, faz severa crítica
de tal mediaticidade, pois o seu conteúdo atomiza no
interior do Estado as individualidades que necessariamente devem ser éticas.18
“A constituição é racional quando o
Estado determina e em si mesmo distribui a sua actividade em conformidade com o
conceito, isto é, de tal modo que cada um dos
poderes seja em si mesmo a
totalidade.” 19
Os poderes têm sua relação com o todo, cada
função no Estado é o próprio todo quando efetivado em razão de um sistema que
não admite em si mesmo divisão. O Estado para Hegel tem em si dimensão
orgânica, as partes não funcionam independente uma das outras, há uma
inevitável relação onde o que se supõe é a vontade racional em detrimento de
uma vontade de opiniões. Mais que uma oposição crítica a Montesquieu, Hegel
dirigi-se negativamente aos que no uso da tese da “separação” dos poderes, que
reputa como racional, não a compreendem no seu verdadeiro sentido, o da unidade
do Estado em funções específicas. Essas funções específicas são ligadas sem a
independência que tanto pregam, pois não entendem que essa “separação” dos
poderes pode absolutizar
a “separação dos poderes”, pode cair na unilateralidade das relações e da
hostilidade no interior do Estado. Nessa perspectiva a independência entre os
poderes elimina a unidade do Estado, tira de si sua unidade, tira de si seu
princípio necessário.
Substituindo a independência política entre
os poderes por diferenças substanciais,
ligadas ao conceito de unidade orgânica do Estado, Hegel pretende com isso
demonstrar que a especificidade de funções antes de alterar a unidade do
Estado, apenas reforça o sentido de organicidade do
Estado.
“Dividi-se
o Estado político nas seguintes diferenças substanciais: a) Capacidade para
definir e estabelecer o universal - poder legislativo; b) Integração no geral dos domínios
particulares e dos casos individuais - poder do governo; c)
A subjetividade como decisão suprema da
vontade - poder do príncipe. Neste se reúnem os poderes separados numa
unidade individual que é a cúpula e o começo do todo que constitui a monarquia
constitucional.”20
Sendo a necessária separação dos poderes um
elemento da determinação racional, garantia da liberdade pública, deve ser
compreendida no seu sentido real, onde se tem como preocupação e objetivo a
unidade do Estado em si, determinado pela razão.
4 - Constitucionalismo: o Estado como determinação da
constituição
A preocupação em estabelecer regras claras
e precisas para o pleno funcionamento das sociedades políticas, parece ter sido
uma constante no pensamento político ocidental. Se o constitucionalismo, como o conhecemos, tem sua matriz na
modernidade a partir das lutas e experiências no seio da sociedade
inglesa, fundamentalmente, enquanto inquietação teórica, existe desde a
antiguidade clássica. Platão levanta seu imenso edifício teórico tendo por
preocupação qual a verdadeira natureza de uma ordem política, e chega a conclusão de uma ordem necessariamente baseada na justiça,
em princípios permanentes e universais para nortear a vida daqueles que
administram a cidade. Mais uma razão para que os reis se tornem filósofos,
conhecedores da verdadeira justiça: enquanto Idéia e virtude; forma pura -
verdade -, e prática efetiva como melhor. Nestes termos, Platão entende justiça
como harmonia, equilíbrio do todo de uma organização política formada por
partes, por isso defende a tese que o todo precede às partes. Pode-se afirmar
com segurança que Platão - a despeito de uma certa tradição em recalcitrar
quanto o significado do seu pensamento político, jogando-o nas teias das
utopias - é o primeiro grande teórico a pensar o problema do Estado e sua ação
nos limites de uma legislação justa, defendendo o indivíduo de possíveis atos
de arbítrio daqueles que ocupam a máquina pública.21
O constitucionalismo enquanto corrente teórica
jurídica-política se desenvolve dentro do absolutismo monárquico, o que foi
natural, pois o objetivo dos seus construtores era o de combater esse mesmo
absolutismo através de um controle propriamente constitucional, por meio de uma
constituição que estabelecesse os critérios de organização do Estado e os
limites de sua atuação. Se o constitucionalismo data da idade média como
asseveram Andrew Vincent e Quentin Skinner, isso
também não é fato estranho, pois nesse caso o que se
busca é uma ordem jurídica
racional em confronto direto contra o direito canônico, que autorizava a Igreja
em nome de Deus, legislar na ordem civil sobre bens, pessoas e formas de
organização coletiva. Vincent não aprofunda o tema, apenas o menciona a título
de lógica argumentativa; Skinner vai mais além, procura na idade média os
fundamentos constitutivos de uma teoria constitucionalista.
Em sua pesquisa Skinner vai ao século XII,
encontra um pensador de nome Huguccio, autor de
muitas teses radicais, dentre as quais notabiliza-se
aquela que procura proteger a Igreja de heresias e de um possível mau governo
papal. Suas idéias estão dentro da corrente intitulada de movimento conciliarista. As observações de Huguccio
se limitam ao âmbito da Igreja, mais não demorou muito para logo servir como ferramenta de
conhecimento por um pensador chamado Gerson, que pensava uma monarquia
constitucional como uma melhor forma de administrar a Igreja. “Gerson em particular se viu obrigado a
enunciar uma teoria a respeito das origens e da laicização
do poder político legítimo na república secular” 22, que de uma certa forma exerceu
grande influência na construção constitucionalista do Estado soberano. Sua
teoria de que as sociedades devem ser perfeitas - tese aristotélica do supremo
fim -, ensejou o argumento “que todo governo
secular deve ser independente de qualquer outra forma de jurisdição, inclusive
das pretensas jurisdições da Igreja.” 23
“A teoria de Gerson é ainda mais radical em
sua interpretação da localização do poder político legítimo. Como vimos, ele
sustenta que, no caso da Igreja, a suprema autoridade governante está nas mãos
do concílio geral, que é a assembléia representativa dos fiéis, e que a
aparente plenitude do poder papal é-lhe concedida, na prática, por uma questão
de conveniência administrativa.”24
Perceber-se claramente que Gerson tem como
preocupação essencial, o que marca o pensamento constitucionalista, sustentar o
princípio de que o poder exercido por quem quer que seja, é sempre delegação de
uma dada assembléia. A soberania repousa na comunidade que instituiu o corpo
administrativo para tocar os negócios a que se destina. Gerson deixa patente
que nem o papa tem poder divino, sua atividade é
administrativa e subordinada aos fundamentos firmados pela assembléia a qual
está ligado.
Ainda dentro da medievalidade,
Skinner aponta Guilherme de Occam como outro
importante pensador a contribuir na construção da separação dos poderes secular
e eclesiástico, profundamente influenciado por Gerson.“O argumento de Occam ingressa na corrente
dominante da teoria política escolástica ulterior, começando a exercer seus
efeitos corrosivos sobre a tradicional teoria hierocrática
da supremacia papal ‘in temporabilis’.”25
É
objetivo de Skinner mostrar como que as raízes teóricas do constitucionalismo
estão mais distante do que se possa imaginar, por isso é preciso assinalar que
não há linearidade na construção do pensamento político, pois seus fundamentos
podem estar ligados a teses bem remotas. Destaca ainda o autor, outros
importantes pensadores marcadamente medievais, que de uma certa forma
delinearam o constitucionalismo enquanto forte corrente de pensamento, que do
plano jurídico surge para o plano das mudanças nas determinações
políticas. Entre outros pensadores, destaca:
I
- John Mair, que assevera a necessidade da separação
do eclesiástico e do secular;
II
- Marcílio de Pádua, que atribui ao poder secular o
poder coercitivo, visto que a Igreja não tem nenhum papel a desempenhar na
sociedade política;
III
– Almain, que coloca nas mãos da comunidade a responsabilidade
de conceder a seu governante o direito de organização da sociedade política.
Toda e qualquer corrente de pensamento se
move num tempo específico, peculiar, que muitas vezes mesmo parecendo
incongruente, fundamenta seus princípios em teses bem longínquas, vide, por
exemplo, o jusnaturalismo, que ao contrário da concepção do antigo direito
natural, se desloca da necessidade de uma lei universal a ser pretendida como
critério de verdade, para a teoria dos direitos subjetivos, de faculdade. O jusnaturalismo
privilegia a subjetividade do direito natural, ou seja, os valores inatos,
ignorando assim o elemento objetivo, uma tal norma universal e necessariamente
válida como positiva, objetiva. Tal doutrina tem seus fundamentos alicerçados
no estoicismo, corrente filosófica que tem por escopo exaltar o indivíduo
dentro de suas relações com a natureza, com a razão.26 Tal doutrina de forma decisiva serviu
de fundamento para a constituição do jusnaturalismo, que por sua vez
influenciou teoricamente o constitucionalismo.
O constitucionalismo acentua que uma
determinada sociedade política encontra sua configuração e racionalidade quando
sua estrutura tem por fundamento uma lei básica, universal,
visando com isso estabelecer os limites de atuação de cada órgão do Estado,
situando o poder dentro dos seus limites legais. Segundo Bobbio:
“O Estado moderno, liberal e democrático, surgiu da reação
contra o Estado absoluto (...) Na tradição do pensamento político inglês, que
ofereceu a melhor contribuição para a solução deste problema, dá-se o nome
específico de ‘constitucionalismo’ ao conjunto de movimentos que lutam contra o
abuso do poder.” 27
Mediante
tal abordagem, o Estado liberal seria a exemplificação daquele Estado
constitucional onde a lei sendo o esteio de toda ação estatal, é em si mesmo o
seu próprio critério de limite. Portanto, liberalismo e constitucionalismo são
correntes que entre si guardam verdadeiras relações de aproximação, e até de
incorporação de teses, tanto assim que conforme Bobbio, Locke é sem sombra de
dúvida um dos principais pensadores na elaboração e construção do Estado
contemporâneo, liberal e constitucional.
O constitucionalismo moderno, ou pelo menos
aquele que norteia as discussões e os conceitos atuais, tem entendido que o
Estado na execução dos fins a que está submetido pela legalidade exposta nas
constituições tem de acordo com o interesse público, a agilidade na prestação
de um serviço público, o poder discricionário 28 de fazer ou deixar de fazer
alguma coisa sempre que o interesse público estiver em jogo. É do interesse da
comunidade que o governo leve a diante e de maneira eficiente e ágil, a
execução de um dado fim na prestação de sua função, por isso o poder
discricionário não é visto com maus olhos, até Locke em suas reflexões o tem
como necessário. No capítulo que trata das prerrogativas do poder executivo,
Locke enfatiza a necessidade do poder executivo dispor desse poder
discricionário com o fito de suprir legalmente o que não pode ser feito pelo
poder legislativo. Pela sua permanência e agilidade o poder executivo é capaz
de encontrar, sempre com o espírito comunitário, soluções em si mesmo atuando
necessariamente sem a permissão do legislativo.
“O bem
da sociedade exige que várias questões fiquem entregues à discrição de quem
dispõe do poder executivo; porque não sendo os legisladores capazes de prever e
prover por meio de leis tudo quanto possa ser útil à comunidade, o executor das
leis, tendo o
poder nas mãos , possui o direito de, pela lei comum da natureza, fazer uso dele para o bem da
sociedade.” 29
Prerrogativa e usurpação são coisas bem
distintas segundo Locke. Esta no entender de Locke são
sempre “atos que prejudicam ou dificultam
o bem comum”, enquanto aquela visa satisfazer uma necessidade comunitária
conforme o espírito da legislação, sobretudo a existente na natureza. A
prerrogativa só encontra legitimidade e permissão quando seu ato tem por fim o
bem do povo, pois para tal finalidade os governos foram constituídos, e quando
isso não ocorrer, ou melhor, quando a prerrogativa não passar de usurpação, “o povo não tem outro remédio, como em todos
outros casos em que não há juiz na terra, senão apelar para o céu.”30
No Direito Administrativo contemporâneo,
braço processual do Direito Constitucional, portanto da constituição, a
liberdade que o poder executivo dispõe não tem outro escopo senão o de estar
vigilante quanto à prestação de um serviço em caráter de urgência, que se não
for assim pode causar um dano ao invés de um benefício. Dessa forma o
constitucionalismo abraça indiscutivelmente a discricionariedade como mais uma
técnica administrativa de efetivar a prestação estatal.
Por fim, entende o dominante pensamento
político dos nossos dias, que o constitucionalismo ainda é o melhor remédio,
senão absolutamente eficaz, pelo menos o que melhor pôde ser constituído no
combate ao abuso do poder, o processo de limitação e instituição do Estado de
direito, que segundo Bobbio traz consigo a assinatura de três correntes
teóricas constitutivas do Estado contemporâneo: teoria dos direitos naturais,
teoria da separação dos poderes, e teoria da soberania popular. 31
Ao iniciar a presente exposição tomei
Platão emprestado na tentativa de estabelecer um fio condutor, um elo que
assegurasse unidade ao texto. Pois bem, ao terminar novamente evoco o
pensamento político do fundador da Academia
no sentido de trazer mais humanidade às reflexões aqui firmadas. Não pretendo
com isso supor que os demais pensadores aqui tratados sejam insensíveis, não
possuindo o sentido de humanidade tão caro àqueles que, como Platão, buscam
permanentemente soluções aos problemas políticos, aos problemas coletivos.
Na verdade parece que a nossa época está
perdendo o
sentido da imaginação e do sonho, e penso que o que está sendo esquecido
representa a busca do melhor, do superior como forma de combater o discurso
equivocado do possível, da estagnação.
Aqui não é o lugar para se falar de utopia,
até porque Hegel nos aconselha a esquecê-la, mostrando que os nossos esforços
devem se concentrar na observação do passado e do presente, e não do futuro.
Penso todavia, que ainda cabe aos que guardam a
perspectiva de uma sociedade onde o poder efetivamente seja uma construção de
todos, impelir as associações entre os homens para um constante aperfeiçoamento,
tendo por fim último a construção da felicidade humana.
Notas:
1 –
Aristóteles. Dos Argumentos Sofísticos,
p.155.
2 - José Afonso Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo, pp. 39-40
3 - Aristóteles. A Política, pp. 115-230.
4 - Reproduzido do livro
Theories of the State, de Andrew Vincent, p.80.
5 - J. Locke.
Segundo Tratado Sobre o Governo,
92.
6 - G. Hegel. Princípios da Filosofia do Direito, 250.
7 - Aristóteles. A Política, p. 18.
8 – Montesquieu. Espírito das Leis, p. 147
9 -
Assembléia onde o povo se reunia para deliberar sobre os assuntos da cidade.
Para ter assento na Ekklêsia
era necessário ser ateniense e ser maior de vinte anos (dezoito anos completos
e mais dois de serviço militar prestados obrigatoriamente).“A Ekklêsia só se reunia a princípio uma vez
em cada pritania, ou seja, dez vezes por ano. Mas os
progressos do regime democrático tinham por efeito multiplicar as questões
submetidas ao povo. Com o tempo, passou a haver até mais três outras sessões
regulares por pritania”. (Gustav
Glotz. A Cidade Grega, 1980, p. 129).
10 - Antonio Houaiss.
Dicionário Houaiss
da Língua Portuguesa
11 - A idéia de
governo misto já era conhecida pelos gregos, que de uma certa maneira, em razão
do seu apreço pela harmonia, é uma busca constante pelo pensamento político. No
entanto, a tese de
governo misto é atribuída a Políbio, que pela
primeira vez formulou tal conceito de
governo misto face à organização
política romana: “Os órgãos que
participavam do governo eram três (...) Considerando-se em especial o poder dos
cônsules, o Estado parecia monárquico e real; considerando-se em particular o
senado parecia aristocrático; do ponto de vista do poder da multidão, parecia
indubitavelmente democrático” (História, VI, 12). Extraído do livro de
Norberto Bobbio: A
Teoria das Formas de Governo,1997,
p. 70.
12.- Trecho extraído do livro A Teoria das Formas de Governo, de
Norberto Bobbio, (Políbio,
VI, 18).
13 - J. Locke. Segundo Tratado Sobre o Governo, p. 97.
14 – Montesquieu. Do Espírito das Leis, p.45.
15
- Idem, p.149.
16 – Madison. Os Artigos
Federalistas, p. 333.
17
- Idem, p. 135.
18 - “Dos gregos e romanos
recebemos ilustrações dos povos. Neles encontramos o conceito de uma livre constituição,
formada de tal modo que todos os cidadãos devam tomar parte nas deliberações e
resoluções sobre os assuntos gerais e sobre as leis. Também em nossa época essa
é a opinião geral, apenas com a modificação de que isso não é feito
diretamente, devido à extensão e à população de nossos Estados, mas
indiretamente por meio de representantes da vontade dos cidadãos, que expressam
a opinião destes para a resolução de questões públicas - vale dizer, o povo
deve ser representado por deputados para
a elaboração das leis. A chamada constituição representativa é a disposição à
qual associamos a idéia de uma constituição livre, de tal modo que isso acabou
por ser tornar um sólido preconceito. Com isso, separa-se povo e governo. Mas
existe uma malícia nessa lei que é um artifício da má vontade, como se o povo
fosse a totalidade. Além do mais, essa idéia serve de base ao princípio da
individualidade, do absoluto, da vontade subjetiva, do
qual se falou anteriormente. O mais importante é que a liberdade, como é determinada
pelo conceito, não tem por princípio a vontade subjetiva e a arbitrariedade,
mas sim o conhecimento da vontade geral; o sistema da liberdade é o livre
desenvolvimento de seus momentos. A vontade subjetiva é uma determinação
totalmente formal que não contém o que a vontade quer. Só a vontade racional
contém esse elemento universal que se autodetermina,
se desenvolve e desdobra os seus elementos em membros orgânicos. Os antigos não tinham conhecimento dessa estrutura de
catedral gótica”. (G. Hegel. Filosofia da
História, 1999, p. 46).
19 – G. Hegel. Princípios da Filosofia do Direito, p.
251.
20
- Idem, p. 253.
21 - “Certamente que cada governo estabelece as
leis de acordo com a sua conveniência: a democracia, leis democráticas; a monarquia, monárquicas; e os outros, da mesma maneira. Uma
vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os governos aquilo que
lhe convém, e castigam os transgressores, a título de que violaram a lei e
cometeram uma injustiça. Aqui tens, meu excelente amigo, aquilo que eu quero
dizer, ao afirmar que há um só modelo de justiça em todos os Estados - o que
convém aos poderes constituídos. De onde resulta, para quem pensar
corretamente, que a justiça é a mesma em toda parte: a conveniência do mais
forte.” (Platão. A República,
1993, p. 24).
22 – Skinner. As Fundações do Pensamento Político Moderno,
1996, p. 394.
23
- Idem, p. 395.
24 - Idem, p. 396
25
- Idem, p. 395.
26
- É na ética que o estoicismo ainda repercute em nossos dias. No discurso
ético encontra-se uma tentativa de validar novos paradigmas para uma época que
viu desmoronar sistemas de construção social a partir de indivíduos ligados à polis, O
estoicismo não se apresenta como uma continuidade socrática em relação aos
problemas do homem e seu projeto. A estoá carrega
na ética toda sua visão corajosa de mundo, destaca o papel do sábio como aquele
capaz de superar os obstáculos, as adversidades dentro de uma racionalidade
existente, fazendo com que o homem viva segundo a natureza, conforme à razão. Admite o estoicismo que o homem vivendo conforme a
razão, viva uma existência longe das perturbações e perto do ideal de sábio: a
submissão das paixões à determinação do logos.
O estoicismo tem na razão a fundamentação do seu discurso, é com ela e
através dela que a estoá promove o
homem como um ente de razão, detentor das condições mínimas e necessárias à
autarquia, governante e responsável por si mesmo. A autarquia no logos estóico apresenta o homem como ser
livre, independente das vontades de um sistema ou das vicissitudes humanas. Ser
livre para um estóico tem duplo sentido: primeiro o homem é livre porque a
natureza basta a si mesma, é nela que ele encontra sua origem; segundo pelo
fato do homem reconhecendo tal verdade, submete toda sua vida ao que é natural, racional, divino. O estoicismo assevera que a
natureza é justa porque é divina. Essa vinculação do homem à natureza lhe
confere o status de cidadão do cosmos, homem que nascendo nesta ou
naquela cultura, pertencente à cidadania ateniense ou romana, sendo judeu ou cristão,
ele será sempre homem, cidadão do mundo, construtor de uma humanidade na qual
ele é a própria condição de ser. Esse cosmopolitismo
estóico rompe com a tese de que o homem encontra seu significado, sua
humanidade em bases estreitamente étnicas. Para o estoicismo esse entendimento
retira do homem sua origem divina e o escraviza por acidente. Se a natureza não
faz distinção de homens, para ela todos são iguais, portanto, não há motivo
para separação entre os homens por nascimento, origem, sexo ou credo. O projeto
estóico é uma clara contestação ao ideal do mundo antigo que separava os homens
em virtude de sua etnia ou qualquer outro valor contrário ao logos.
27 – Norberto Bobbio.
Direito e Estado no Pensamento de
Immanuel Kant, 1984, p. 15.
28 - “Poder discricionário é o que o Direito
concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos
administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e
conteúdo. Convém esclarecer que ‘poder discricionário’ não se confunde com
‘poder arbitrário’. Discricionariedade e arbítrio são atitudes inteiramente
diversas. Discricionariedade é liberdade de ação administrativa, dentro dos
limites permitidos em lei; arbítrio é ação contrária ou excedente da lei. Ato
discricionário, quando autorizado pelo Direito, é legal e válido; ato
arbitrário é sempre ilegítimo e
inválido”. (Hely Lopes
Meirelles. Direito Administrativo
Brasileiro, 1998, p. 103.
29 – J.
Locke. Segundo Tratado Sobre o Governo, p 105.
30
- Idem, p. 107.
31
– “a) Teoria dos direitos naturais / jusnaturalismo
= o jusnaturalismo entende que existe um poder
relacionado aos indivíduos, são aqueles encontrados na razão, preexistentes ao
Estado; cada homem ao nascer traz consigo direitos inatos, direitos
considerados inalienáveis, intransferíveis, portanto, próprios do sujeito, que
configuraria o futuro Estado liberal; b)
Teoria da separação dos poderes = em última análise tal teoria defende o
princípio da desconcentração do poder, visto que um mesmo órgão não poderia exercer
poderes diversos, cada órgão uma função correspondente, com isso se evitaria o
abuso, constituindo a base legal do Estado: o controle recíproco; c) Teoria da soberania popular ou
democrática = esta teoria talvez seja a mais radical das teorias apresentadas,
pois não só visa a contenção do poder como a efetiva participação de todos no
poder; para se conter todo e qualquer abuso o remédio seria o governo fundado
no consenso popular, isto é, todos legislariam voltados a execução
da própria lei: vontade geral”. (Norberto Bobbio.
Direito e Estado no pensamento de
Immanuel Kant, 1984).
32 - “Está, pois, suficientemente esclarecido que
a virtude moral é um meio-termo, e em que sentido devemos entender esta
expressão; e que é um meio-termo entre dois vícios, um dos quais envolve excesso e o outro deficiência,
e isso porque a sua natureza é visar à mediania nas paixões e nos atos.” (Aristóteles. Ética a Nicômaco. Os Pensadores, 1973, p.
277).
33 - Nesta passagem Aristóteles
deixa bem clara a diferença do seu pensamento político face ao de Platão: “Também é preciso que eles conheçam a forma
de governo que melhor convém aos diversos Estados; porque a maioria dos
escritores políticos que trataram desse assunto, dizendo cousas excelentes,
cometeram erros em vários pontos importantes. Não se trata apenas de considerar
a melhor constituição, mais ainda aquela que é praticável, e que ao mesmo tempo
oferece aplicação mais fácil, e que melhor se adapta a todos os Estados. Longe
disso, dos escritores políticos, uns se prendem à forma perfeita e que exige
recursos consideráveis, e outros...”. (Aristóteles, p.226 / VI, I, 3).
Referências Bibliográficas.
ARISTÓTELES. “Dos Argumentos Sofísticos”. In Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1973.
____________. A Política.
Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1978.
Bobbio, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Immanuel
Kant. Brasília: Ed. UnB, 1984.
______________. A Era
dos Direitos. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1988.
______________. Teoria das Formas de Governo. Brasília: Ed. UnB,
1998.
HEGEL, GFW.
Princípios da Filosofia do Direito.
4ª, Lisboa: Guimarães Editora, 1990.
___________. Filosofia da História. Brasília: Ed. UNB, 1999.
HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001.
GLOTZ, Gustav. A Cidade Grega. SP: Ed. Difel, 1980.
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. In Os
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MADISON, J., HAMILTON, A. JAY, J. Os Artigos Federalistas. Rio de Janeiro:
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O Espírito das Leis. In Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1973.
MEIRELLES, Hely
Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.
São Paulo: Malheiros Editores 1998.
SILVA, José A. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed., São Paulo:
Malheiros Editores, 1998.
SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno.São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
VINCENT, Andrew.
Theories of State. Basil. Blackwell, 1987.
Resumo: O
presente texto tem por objetivo discutir a importância e o sentido de
Constituição e das instituições ligadas ao poder enquanto determinações
históricas e políticas, valendo-se do para tal de conhecimentos produzidos por
autores clássicos.
Palavras-chave:
Estado, constituição, constitucionalismo, instituição e política.
* O Presente
artigo é originalmente uma adaptação de um trabalho do curso Constitucionalismo Moderno, Cidadania e
Limitação de Poder, ministrado pelo Prof. Dr. Charles Pessanha,
no PPGCP do IFCS/UFRJ, no primeiro semestre letivo de
2003.
**O autor é bacharel
em Direito, licenciado em Filosofia, mestrando de Ciência Política do PPGCP
do IFCS/UFRJ, e bolsista pela FAPERJ.