A CONSTITUIÇÃO COMO DETERMINAÇÃO DE LEGITIMIDADE*

 

      Wellington Trotta**

 

1 - Introdução

 

Desde que se organizou em grupo, desde que reconheceu a necessidade da vida em sociedade, ou mesmo quando percebeu a importância de uma vida política, o homem tem procurado incessantemente construir formas criteriosas de organização coletiva, onde de uma certa maneira todos possam se sentir autores dos seus destinos, ou pelo menos construir um destino mais ou menos comum. Mesmo que tal busca fosse um desejo, um impulso natural de afirmação da condição humana de associativismo segundo Aristóteles, a história nos ensina que a maioria sempre esteve ausente do processo decisório quando o assunto se torna os negócios da cidade. Até em uma sociedade desenvolvida como a ateniense, que marcadamente se caracterizou por inventar um sistema governativo onde todos os cidadãos pudessem de alguma forma expressar dúvidas, insatisfações, perspectivas e um debate permanente dos interesses sempre públicos, amargou contínuas manobras por parte daquele grupo insatisfeito em compartilhar o poder. Mesmo sendo de amplo espectro, a democracia ateniense se via as turras com os aristocratas ciosos de suas prerrogativas, e furiosos por vê-las em discussão na agora, debatida e votada por todo cidadão ateniense maior de vinte anos.

A experiência ateniense não foi suficiente para cravar no coração da história uma linha de continuidade que ensejasse uma necessidade permanente, que por sua vez gerasse uma condição sine qua non de organização política. Talvez Platão tenha detectado o problema da derrocada da democracia ateniense quando afirmou que Péricles e sucessores, não formaram nos homens valores correspondentes por meio de processos pedagógicos. Estando certo ou errado, Platão percebeu que instituições só são válidas quando afinadas culturalmente, por isso sua preocupação sempre esteve voltada para o problema da educação, instrumento pelo qual o poder público constrói valores dirigidos para uma verdadeira vida em sociedade. Vale lembrar que Platão foi o primeiro pensador político a pensar educação como instituição, como algo permanente e eficaz na condução dos negócios públicos. Sua visão de uma educação obrigatória, aos cuidados do poder público, foi uma sacada tão profunda que, hoje, os mais variados sistemas governativos adotam tal critério de formação cultural. E mesmo os liberais mais convictos do século XIX, defenderam a educação obrigatória enquanto instituição, isso porque de uma forma ou de outra garantia a expansão do desenvolvimento de suas próprias idéias e a sobrevivência de suas teses.

 Pensando bem, Platão é o fundador da escola política que tem como preocupação à existência de um critério permanente de se levar em conta o sujeito e resguardá-lo do abuso daqueles que ocupam o poder político de uma sociedade. Tal evidência está em sua preocupação em atrelar Estado à justiça, virtude à justiça, equilíbrio à justiça, poder à justiça; critérios de submeter o poder público a um código legal-ideal de limite e eficácia do poder político: a internalização da legalidade. Esse pensador não concebe justiça senão como critério de verdade na condução dos negócios públicos; Estado só pode ser compreendido enquanto um sistema legal onde cada membro conhece sua efetiva participação.

Tendo sido derrotado o seu projeto no plano histórico - o ideal de educação como um valor permanente e necessário à harmonia social, administrado pelo poder público, tornando-se instituição político-cultural -, só sendo revisto pelo Iluminismo e adotado como princípio pela revolução francesa, Platão se torna um pensador político contemporâneo, pois pensa instituições políticas a partir de virtudes republicanas, onde o trato da coisa pública requer um alto nível de maturidade comunitária, sendo o eu e o outro ligados pelo mesmo plano de necessidades e interesses. Platão lega à história o conceito de Estado como instituição voltada à administração da coisa pública, dos interesses públicos, das necessidades públicas. Portanto, penso que ao iniciar este trabalho, nada melhor que evocar esse pensador na qualidade de mostrar o espírito das reflexões que pretendo apresentar ao longo deste texto.

Proponho como tema da presente pesquisa, discutir a eficácia de toda e qualquer Constituição que pretenda, na qualidade de instrumento político, superar um leque de  conflitos, do econômico ao ordinário. Pretendo com tal tema desenvolver o sentido de que toda e qualquer Constituição é em si uma determinação de todo Estado que se pretende filiar ao conceito de Estado de direito, que não deixa de ser uma conquista construída pelos homens na luta contra os atos de desmando de grupos e aparelhos políticos, destinados a privilegiar classes em detrimento de uma ampla maioria que efetivamente trabalhou para o fausto daqueles. Se o Estado está longe de ser o reino da superação das contradições, longe de ser o universal contemplando as particularidades como afirma Hegel, não podemos ignorar, isso sim, o seu importante papel dentro das formações sociais ainda existentes. Sendo ou não um instrumento de uma classe sobre a outra, um instrumento de grupos ao longo da história, sempre foi objeto de desejo por parte daqueles que sempre o tiveram como meio de legitimar idéias, princípios, interesses e conquistas, isto é, tornar legal como critério de verdade.

Para finalizar esta introdução, ressalto que o objetivo maior deste trabalho não é outro senão o de passar em revista, algumas reflexões que entendo importantes na construção de um entendimento razoável acerca do tema, que por sua vez será oferecido ao poder de análise do leitor.

 

2 - Constituição: conceito e algumas visões.

 

O que se pretende com uma constituição? Em que medida uma organização política tem em si a necessidade de se instituir por meio de uma constituição? Qual, portanto, sua necessidade?

Na exposição de um dado tema - no levantamento de uma discussão que se pretende teórica - penso por bem ter em conta a máxima de Aristóteles: “Começaremos, como é natural, pelo princípio.”1 Respeitando o que se pensa correto, começarei pelo princípio duplamente, isto é, pelo início e pelo sentido; pelo começo e pela conceituação do objeto deste tópico. A palavra constituição tem origem no latim. Em sentido próprio constitűtiõ, -õnis, significando, natureza, estado, condição; em sentido abrangente assume a possibilidade de ser uma disposição legal, instituição. O termo foi, com o passar do tempo, ganhando sentido jurídico-político após muitos debates entre juristas a partir da idade média, assumindo definitivamente o conteúdo como nós o conhecemos hoje por influência do idioma francês, assim grafamos por constituição. Quanto ao conceito de constituição propriamente dito, aquele que a define como tal, pode ser encontrado em diversos autores contemporâneos, dentre os quais destaco em razão de sua síntese o do prof. José Afonso Silva:

 

“A constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um  sistema  de   normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do  poder, o  estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as suas respectivas garantias”.[i]2

 

O conceito supra apresenta uma ampla distribuição de competências por parte da lei fundamental de um dado Estado. Como se observa, constituição é a certidão política de configuração de um Estado moderno. Sua essência está relacionada ao estabelecimento de regras e princípios claros de uma construção política de sociedade. Definir claramente o papel político de cada instituição, de cada órgão é tarefa precípua de toda constituição, que como observamos, assume na modernidade condição de própria existência de uma sociedade pretensamente política. Sua condição é essencialmente vinculada a qualquer Estado dito não só de direito, mas, sobretudo marcado pelo compromisso de estabelecer limites a qualquer ação, seja de pessoa física ou jurídica, de direito privado ou de direito público. Em síntese, a constituição é um apelo formal à introspecção de competências, respeito ao que se entende por interesse público e ação pública. Muito antes disso Aristóteles já associava constituição a governo, como se este fosse na verdade condição daquela: “Visto que as palavras constituição e governo significam a mesma coisa, visto que o governo é autoridade suprema nos Estados (...) O governo é a ordem estabelecida, na distribuição das magistraturas.”3

 

Se na Antigüidade grega, sobretudo no pensamento de Aristóteles, o significado de constituição assume uma concepção idealista, mesmo em oposição a Platão, somente na contemporaneidade o sentido de constituição assume uma relação de imposição legal, o poder público na figura do Estado ficando obrigado a obedecer aquilo que fora determinado pela constituição, ou seja, é dentro de uma constituição onde são encontrados os mecanismos que asseguram aos cidadãos uma estreita relação entre poder e legalidade. Andrew Vincent destaca uma afirmativa de Lord Bolingbroke muito interessante:

 

“Por constituição nós entendemos, quando falamos com exatidão, aquele conjunto de leis, instituições e costumes, derivados de certos princípios fixos de razão, dirigido a certos objetos fixos de bem público, que compreende o sistema geral, de acordo com que a comunidade concorda em ser governada.” 4

 

Mesmo sendo um conceito de constituição marcadamente antigo dentro do constitucionalismo, tem-se claramente uma visão de constituição enquanto um ato ou um documento formal que institua uma estrutura política inteiramente subordinada aos interesses daqueles que a constituíram. Constituição, portanto, nesse sentido é expressão de relação entre poder e cidadão, onde este é o sujeito daquele.

Nos escritos clássicos do pensamento político, se percebe que a importância da constituição como documento legal não constitui panacéia para todos os problemas dentro de uma determinada ordem social, porém, isso é claro, algo que obrigue aos detentores de função pública, um compromisso mais estreito com a racionalidade da existência do Estado enquanto sociedade política. Na racionalidade dos clássicos não se tem a ilusão de que um papel escrito suspenda os desejos daqueles que anseiam por materializar interesses e expectativas. Locke, ao contrário do que imagina Vincent, caminha na mesma linha adotada por Bolingbroke quando enfatiza o relevante papel da lei na comunidade dos homens. Para Locke, o objetivo maior da união entre os homens em comunidade é garantir a propriedade, e para tal é necessário em primeiro lugar uma lei estabelecida, enunciada, aceita, firmada e comum a todos, sendo todos submetidos à sua eficácia como forma de dirimir conflitos. Em segundo lugar considera necessário a existência de um juízo “conhecido e indiferente com autoridade” para por fim a toda e qualquer controvérsia, sempre baseado naquela lei fundamental. Em terceiro lugar é necessário um poder que garanta o cumprimento da sentença justa, por isso a necessidade de uma lei anterior e aceita por todos na comunhão de uma “comunidade”.

 

 “O grande objetivo da entrada do homem em sociedade consistindo na fruição da propriedade em paz e segurança, e sendo o grande instrumento e meio disto as leis estabelecidas nessa sociedade, a primeira lei positiva e fundamental de todas as comunidades consiste em estabelecer o poder legislativo; como a  primeira  lei  natural  fundamental que deve reger  até  mesmo  o  poder  legislativo  consiste  na  preservação da sociedade e, até o ponto  em  que  seja  compatível  com  o  bem público, de qualquer pessoa que faça parte dela.”5

 

No entendimento de Locke, o que determina o sentido de constituição é a elaboração de um estatuto formal que garanta o livre exercício das disposições do ser humano, bem como o uso e gozo da propriedade, que para este pensador não é outra coisa senão vida, liberdade e bens. Para o pensador inglês a lei apenas deve ratificar o que já existe como determinação segundo a comunidade. É a comunidade, em última análise, a detentora do poder político, pois traz consigo a soberania legítima de instituir e destituir poderes sempre levando em conta o bem comum, o bem público, o interesse público.

O que de fato marcou o pensamento político moderno, até como desafio, foi a necessidade de se determinar o conceito de constituição política e os meios de efetivá-la no plano prático das ações humanas, visando com isso limitar o impulso de quem administra o poder político. Portanto, dentro de uma grande luta entre príncipes e súditos, o resultado foi a fundamentação de um entendimento de que os homens necessitam de regras claras no que diz respeito à vida em comunidade, sendo assim, imperioso a existência de um instrumento formalmente instituído com o definitivo propósito de favorecer condições mínimas de relação entre os homens, onde haja respeito ao que foi de certa forma acordado. Seguindo nessa linha encontramos o pensamento político de Hegel.

 

“A constituição política é, em primeiro lugar, a organização do Estado e o processo da sua vida orgânica em relação consigo mesmo. Neste processo distingue o Estado seus elementos no interior de si mesmo e desenvolve-os em existência fixa.”6

 

            Hegel assinala, que o momento da constituição política é o racional, isto é, forma de se guardar uma instância universal capaz de em si mesma possuir as condições necessárias de superação das particularidades. O que Hegel leva em conta na elaboração do seu entendimento de constituição política, é o novo papel que se anuncia para o Estado face às suas relações com os indivíduos. Por isso o Estado deve ser em si mesmo um ente de razão, instituição necessariamente capaz de superar os conflitos existentes na sociedade civil-burguesa. A constituição política de um povo é, em princípio, o que determina a sua liberdade. Não há liberdade sem a existência do Estado, por sua vez, não há Estado sem a existência de uma constituição que o configure como o reino da liberdade, o mundo ético.

            A importância de uma racionalidade em si mesma, que a constituição política traz consigo, visa a superar o reino das necessidades particulares, que de uma certa forma desestabiliza uma dada comunidade. A constituição, por ser a mais absoluta manifestação de racionalidade, é o Estado se constituindo a partir de si mesmo e se autolimitando como condição essencial de vida comunitária, de vida ética. Em Hegel o que define a importância de uma constituição política é o seu caráter de organizar o próprio Estado, levando-o assim a consecução de seu fim, a liberdade sob o império da lei.

Se em Hegel o Estado é uma necessidade histórica, se é a partir da história que sua realidade se constrói, é dentro da história que sua dimensão surge epicamente, isto é, como razão, colocando-se o Estado na condição de servidor das necessidades públicas. Não é correto colocar no pensamento de Hegel aquilo que na verdade não existe. O Estado é para ele aquilo que a polis é para o grego, uma necessidade, algo intrínseco à própria natureza associativa dos homens. Aristóteles ressalta que:

 

“O homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e que aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem.”7

 

Hegel, na mesma linha de raciocínio, assevera que o fim último do homem é viver no Estado, e nele constituir sua dimensão ética. Tanto Hegel quanto Aristóteles, mutatis mutandis, afinam-se na compreensão da constituição como forma de ordenamento, ação política de governo e que é firmada à luz de princípios normativos.

É dentro da norma jurídica que o governo se desenvolve aplicando a si mesmo o preceito de respeito às instituições, especificamente às políticas. Interessante semelhança encontra-se em Montesquieu na passagem onde examina o conceito de liberdade, considerando que: “Num Estado, isto é, numa associação em que há leis,”8 o governo atua dentro dos limites que a comunidade firmou como positivo, válido e suficiente.

Por fim, não é correto pensar que a constituição é por si só a condição suficiente da limitação do poder, é isso sim, após lutas homéricas de vidas ceifadas, a celebração de um pacto normativo entre os homens na execução de um programa mínimo onde as regras de convivência sejam claras e norteadoras para a composição de conflitos futuros, necessitando para todo efeito de permanente atuação e firmeza da ação do povo.

 

3 - Instituições: conceito e relação.

 

É bem verdade que com a constituição do Estado, com a formulação do conceito de que se deve tê-lo na conta do interesse comunitário, torna-se o próprio Estado a grande instituição política da comunidade. Nesse particular, o cidadão ateniense experimentou a façanha de dentro da instituição máxima de sua cidade (Assembléia), decidir os destinos dos seus respectivos interesses. Com Atenas aparece a institucionalização da discussão que determina os rumos dos negócios públicos. Com Atenas concebe-se uma ordem governativa em que o homem-cidadão apresenta-se como portador de si mesmo, enunciador de sua própria vontade, o seu único representante. É a partir da experiência grega, especialmente a ateniense, que o governo da cidade se desvincula de uma única personalidade e passa a ser constituído por estruturas políticas voltadas ao encontro de soluções onde as ações assumem um perfil coletivo, melhor dizendo, as decisões políticas, aquelas que envolvem os negócios da cidade, são tomadas por todos os cidadãos de forma associativa na Assembléia (Ekklêsia)9. Discutir, portanto, era uma condição necessária na democracia ateniense, que por sua vez estabeleceu a instituição máxima de sua estrutura comunitária, a Ekklêsia.

O que vem a ser instituição? Assim como constituição sua origem também se encontra no latim, institũtiõ,-õnis que em sentido próprio significa disposição, plano, arranjo, e, que no sentido derivado passa a configurar como princípios estabelecidos, instituições, usos, costumes, que tem sua forma atual a partir do século XV. Destarte instituição é “cada um dos costumes ou estruturas sociais, estabelecidas por lei ou consuetudinariamente, que vigoram num determinado Estado ou povo.”10 Por seu turno, instituição política seria uma dada estrutura onde as relações de poder público necessariamente medeiam a interação do Estado junto ao cidadão, em síntese, instituição política é aquela disposição do poder público em se efetivar por caminhos estruturais, criando por fim um costume imperioso no mundo moderno. Instituições políticas são os mecanismos encontrados pelos homens na racionalização de seus propósitos, ou seja, encarnar um sistema que garanta a busca de soluções sempre na ordem da discussão.

Caso se pretenda uma análise das instituições políticas no plano histórico, seremos surpreendidos por se constatar que as mesmas, no processo de complexidade, nunca deixaram de estar vinculadas às estruturas do poder político enquanto instância de organização estatal de uma determinada organização social. Importa considerar, porém, que a transformação deu-se no plano particular da representação de vontade, fenômeno esse que tem seu embrião na república romana no seu governo misto.11 Políbio encontra na república romana uma organização balanceada, onde de certa forma as três forças constitutivas do poder em Roma estabeleciam uma espécie de controle de um sobre o outro. Consulado, senado e povo se vigiam mutuamente: “Dessa forma cada órgão pode ‘obstaculizar’ os outros ou ‘colaborar’ com eles, sua união é benéfica em todas as circunstâncias, de modo que não é possível haver um Estado melhor construído.”12

Segundo Políbio o sucesso romano estava assentado nessa tripartição de poder, onde a cada um é dada uma atribuição peculiar. Arrisco o comentário que talvez nesse momento crucial para a teoria política, já se pensasse instituições políticas como controle sobre o poder político do Estado, bem como a idéia de representação de vontade por meio das instituições políticas. Arrisco nesta tese porque talvez os gregos, ciosos de sua importância histórica na construção dos seus desígnios, embora possam até ter pensado, nunca se viram a vontade diante da perspectiva de se construir um governo onde a Ekklêsia não fosse a instituição central de um equilíbrio conquistado após imenso banho de sangue.

O surgimento e desenvolvimento das instituições políticas sempre estiveram relacionados com a luta de se buscar uma temperança - para usar um conceito grego de equilíbrio - dentro das ações do Estado. O papel que as instituições políticas exercem, nasce de uma perspectiva em chamar a atenção do Estado para a execução do seu fim, o de ter como função fundamental, sempre servir de árbitro nas contendas provocadas entre os próprios cidadãos uns com os outros. Têm em si mesmas, as instituições políticas, o papel de buscar o melhor funcionamento possível da ordem pública, por isso o pensamento político, empenhado em construir mecanismos de controles institucionais sobre o poder público, sempre esteve preocupado com as ações do poder, que de uma certa forma sempre estiveram ligadas a interesses de grupos dentro do Estado. 

As instituições políticas que constituem gênero às instituições públicas, visto que estas são especificamente mecanismos legais e legítimos da ação do Estado, sempre estiveram na ordem do dia daqueles que tentaram amarrar poder público à ordem jurídica, esta ao interesse público, este ao interesse comunitário. No pensamento político ocidental a partir da Grécia Antiga, o controle institucional sempre esteve na ordem das prioridades enquanto fundamento de controle sobre o Estado, no sentido de se guardar a liberdade como um valor necessário à própria condição humana. Liberdade para se possuir terras como controle de poder, liberdade para comercializar mercadorias como forma de se obter o poder, liberdade para se organizar como instrumento de luta para fazer valer um direito inalienável diante do poder, tudo constitui liberdade, e, talvez este sentimento, mais que isso, esta necessidade, sempre de uma maneira ou de outra impeliu tanto teóricos como lideranças políticas a buscarem através de critérios institucionais, após terríveis embates bélicos, um plano que pudesse corrigir, coibir e apontar outras alternativas de se compor conflitos de interesses.

 

“Embora em uma comunidade constituída, erguida sobre a sua própria base, e atuando de acordo com a sua própria  natureza, isto é,  agindo  no sentido da preservação da comunidade, somente possa existir  um poder supremo, que é o legislativo, ao qual tudo  mais deve ficar subordinado, contudo, sendo o legislativo somente um pode  fiduciário destinado a entrar em ação para certos fins, cabe ainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que agem contrariamente ao encargo que lhe confiaram.”13

 

Mesmo apontando uma saída institucional para resolver possíveis problemas dentro da comunidade, mesmo levando em consideração que as instituições políticas, sobretudo aquelas que representam o próprio sentido de comunidade, possam de alguma forma se voltar contra o instituidor de tudo, o povo, Locke compreende que de fato pertence ao povo a última palavra em se tratando do seu destino. Que as instituições públicas representem uma racionalidade dentro da vida comunitária isso não tem dúvida, mas daí assumir o papel determinante e determinado do povo já é outra coisa. Locke não guarda ilusões quanto a total eficácia das instituições públicas, tanto assim que aconselha aos mesmos homens que apelem para os céus (as armas) caso na ordem institucional o povo se sinta tolhido em sua liberdade, e ameaçado no uso, gozo e disposição de sua propriedade.

Não está na conta das instituições públicas a total solução dos problemas da comunidade, isto é, deve-se ter em mente que as mesmas são instituídas, administradas e dirigidas por homens, e como tal portadores de interesses nem sempre compatíveis com os da comunidade. Se as instituições públicas foram criadas, idealizadas por teóricos e lideranças políticas para coibir o poder publico, ou melhor, se foram formuladas no interesse da comunidade contra aqueles aventureiros da coisa pública, penso que a saída, como preceitua Locke, não pode ser outra senão a rebelião popular, também uma instituição política fundada na mais profunda tradição de se buscar o bem comum contra os interesses privados instalados no Estado.

A leitura de Locke é perfeita quando entende que os poderes legislativo, executivo e federativo foram pensados a partir e contra o absolutismo monárquico, portanto, inadmissível vê-los se comportando de maneira a obstaculizar quem os instituiu. Não guardando a ilusão quanto ao discurso lockeano, voltado para os proprietários e os novos homens de negócios, é de se considerar que o mesmo pôde ser usado como uma ferramenta contra os próprios proprietários ao longo da história. Pode parecer anacrônico, todavia, penso que Montesquieu está correto quando afirma que mesmo não sabendo, os homens ao buscarem seus interesses particulares trabalham para o fim comum: “A honra movimenta todas as partes do corpo político; liga-as por sua própria ação, fazendo com que cada um caminhe para o bem comum acreditando ir em direção de seus interesses particulares.”14

            Dando prosseguimento às idéias de Locke, é o mesmo Montesquieu, proprietário de terras, o grande construtor da tese da desconcentração do poder centralizado, na figura da divisão dos poderes legislativo, executivo e judiciário. Montesquieu pensa em não deixar nas mesmas mãos as tarefas de legislar, administrar e julgar de acordo com os estatutos legais. A desconcentração do poder é um remédio institucional que visa criar dentro do poder público uma relação de equilíbrio, onde nenhum poder faça de si mesmo condição de absoluto mando dentro das relações entre os membros de uma sociedade:

 

“Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo,  exercesse  esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções  públicas e o de julgar os crimes ou as divergência dos indivíduos.”15

 

Como se vê a tese de Montesquieu é resguardar os indivíduos das arbitrariedades do poder público, é colocar o Estado na sua verdadeira dimensão política, ou seja, o de guardião da coisa pública. Mas para que o Estado seja o guardião da coisa pública, cuide para que os indivíduos que estão sob suas leis estejam protegidos deste ou daquele grupo, desta ou daquela facção com seus interesses privados, daqueles interesses estranhos à concepção de república - como ressalva Madison - é preciso a solidificação de estruturas institucionais com o firme propósito de manter o poder público diante de sua perspectiva, sempre atento e prevenido por legislação competente, e tendo a frente o povo como esteio de uma vontade capaz de impedir assim, que o público pereça ante o privado.

Na mesma linha de pensamento de Montesquieu, Madison comentando o pensador francês, observa:“Quando todo o poder de um braço é exercido pelas mesmas mãos que possuem todo o poder de outro, os princípios fundamentais de uma constituição estão subvertidos16. Tal concentração de poder coloca em perigo a estrutura constitucional e a própria soberania popular. É preciso, portanto, que essa mesma soberania popular conceba um remédio político-jurídico que contemple tal anomalia, que barre por meio de instituições as facções, tendo por fim uma comunidade onde o coletivo esteja em primeiro plano. Madison, entretanto, vai mais longe que Montesquieu quando detecta a causa do facciosismo, e consoante a isso, a instabilidade institucional:

 

“A fonte mais comum e duradoura de facções, porém, tem sido a distribuição diversa e desigual da propriedade. Os que têm bens e os que carecem deles sempre formaram interesses distintos na sociedade (...) A regulamentação desses interesses diversos e concorrentes constitui a principal tarefa da legislação moderna e introduz o espírito partidário nas operações necessárias e ordinárias do governo.”17

 

Pretendo ao encerrar este tópico, apresentar algumas reflexões de Hegel no tocante às instituições funcionais do Estado, conhecidas como funções de poder ou atribuições dos três poderes existentes no Estado moderno, que na verdade nada tem de moderno e sim de contemporâneo.

Apoiando-se no idealismo alemão, no racionalismo cartesiano e na paidéia grega, Hegel tenta por meio de uma síntese restabelecer a unidade do conceito de Estado que havia no mundo grego, muito embora tal termo seja desconhecido por este povo, até porque a origem desta palavra é latina, e seu uso atual tem origem na modernidade.

Hegel entende que o Estado é palco de toda uma eticidade necessária à existência da liberdade, mais que um ordenamento jurídico constitui-se em um conceito, numa totalidade onde o indivíduo é reconhecido como tal por existir no todo, numa comunidade onde o que vale é a vontade racional. Estado para Hegel é uma condição necessária de organização política, de organização onde os indivíduos tenham por princípio a comunidade. Essa totalidade tão cara a Hegel, é encontrada no mundo grego. Para o grego a vida comunitária é algo imperioso e motivo de plena condição de ser integrante em si mesmo, por isso a vida comunitária grega, sobretudo naquelas cidades onde a democracia toma forma radical, a participação conta como momento de sua efetivação ética, o enraizamento de seus hábitos como essenciais na constituição de sua vida. Assim a participação nos negócios da cidade, nos negócios públicos, tinha de ser pela imediaticidade, nunca pela representação, o que caracterizaria como ausência de determinação de vontade. A representação no mundo grego é a ausência de si mesmo, só é possível no teatro, pois assim usa-se máscara como apresentação de uma personalidade exterior ao que fala. Hegel toma tais princípios para formar seu vigoroso pensamento político, no intuito de considerar essencialmente necessário a vida ética, a vida comunitária.

Mesmo considerando difícil a restauração da plena efetividade política, visto que compreende o novo momento, o novo tempo que enseja a idéia de mediaticidade, Hegel observa no parlamento uma possibilidade de universalidade, de contemplação do papel da agora grega. Todavia, faz severa crítica de tal mediaticidade, pois o seu conteúdo atomiza no interior do Estado as individualidades que necessariamente devem ser éticas.18

 

A constituição é racional quando o Estado determina e em si mesmo distribui a sua  actividade  em conformidade  com  o conceito, isto é, de tal modo que cada um dos  poderes  seja em si mesmo a totalidade.19

 

Os poderes têm sua relação com o todo, cada função no Estado é o próprio todo quando efetivado em razão de um sistema que não admite em si mesmo divisão. O Estado para Hegel tem em si dimensão orgânica, as partes não funcionam independente uma das outras, há uma inevitável relação onde o que se supõe é a vontade racional em detrimento de uma vontade de opiniões. Mais que uma oposição crítica a Montesquieu, Hegel dirigi-se negativamente aos que no uso da tese da “separação” dos poderes, que reputa como racional, não a compreendem no seu verdadeiro sentido, o da unidade do Estado em funções específicas. Essas funções específicas são ligadas sem a independência que tanto pregam, pois não entendem que essa “separação” dos poderes pode absolutizar a “separação dos poderes”, pode cair na unilateralidade das relações e da hostilidade no interior do Estado. Nessa perspectiva a independência entre os poderes elimina a unidade do Estado, tira de si sua unidade, tira de si seu princípio necessário.

Substituindo a independência política entre os poderes por diferenças substanciais, ligadas ao conceito de unidade orgânica do Estado, Hegel pretende com isso demonstrar que a especificidade de funções antes de alterar a unidade do Estado, apenas reforça o sentido de organicidade do Estado.

“Dividi-se o Estado político nas seguintes diferenças substanciais: a) Capacidade para definir e estabelecer o universal - poder legislativo; b) Integração no geral  dos  domínios  particulares  e  dos casos individuais - poder do governo; c) A  subjetividade como decisão suprema da vontade - poder do príncipe. Neste se  reúnem os poderes separados numa unidade individual que é a cúpula  e  o começo do todo que constitui a monarquia constitucional.20

 

Sendo a necessária separação dos poderes um elemento da determinação racional, garantia da liberdade pública, deve ser compreendida no seu sentido real, onde se tem como preocupação e objetivo a unidade do Estado em si, determinado pela razão.

 

4 - Constitucionalismo: o Estado como determinação da constituição

 

A preocupação em estabelecer regras claras e precisas para o pleno funcionamento das sociedades políticas, parece ter sido uma constante no pensamento político ocidental. Se o constitucionalismo, como o conhecemos, tem sua matriz na modernidade a partir das lutas e experiências no seio da sociedade inglesa, fundamentalmente, enquanto inquietação teórica, existe desde a antiguidade clássica. Platão levanta seu imenso edifício teórico tendo por preocupação qual a verdadeira natureza de uma ordem política, e chega a conclusão de uma ordem necessariamente baseada na justiça, em princípios permanentes e universais para nortear a vida daqueles que administram a cidade. Mais uma razão para que os reis se tornem filósofos, conhecedores da verdadeira justiça: enquanto Idéia e virtude; forma pura - verdade -, e prática efetiva como melhor. Nestes termos, Platão entende justiça como harmonia, equilíbrio do todo de uma organização política formada por partes, por isso defende a tese que o todo precede às partes. Pode-se afirmar com segurança que Platão - a despeito de uma certa tradição em recalcitrar quanto o significado do seu pensamento político, jogando-o nas teias das utopias - é o primeiro grande teórico a pensar o problema do Estado e sua ação nos limites de uma legislação justa, defendendo o indivíduo de possíveis atos de arbítrio daqueles que ocupam a máquina pública.21

 O constitucionalismo enquanto corrente teórica jurídica-política se desenvolve dentro do absolutismo monárquico, o que foi natural, pois o objetivo dos seus construtores era o de combater esse mesmo absolutismo através de um controle propriamente constitucional, por meio de uma constituição que estabelecesse os critérios de organização do Estado e os limites de sua atuação. Se o constitucionalismo data da idade média como asseveram Andrew Vincent e Quentin Skinner, isso também não é fato estranho, pois nesse caso o que se

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busca é uma ordem jurídica racional em confronto direto contra o direito canônico, que autorizava a Igreja em nome de Deus, legislar na ordem civil sobre bens, pessoas e formas de organização coletiva. Vincent não aprofunda o tema, apenas o menciona a título de lógica argumentativa; Skinner vai mais além, procura na idade média os fundamentos constitutivos de uma teoria constitucionalista.

Em sua pesquisa Skinner vai ao século XII, encontra um pensador de nome Huguccio, autor de muitas teses radicais, dentre as quais notabiliza-se aquela que procura proteger a Igreja de heresias e de um possível mau governo papal. Suas idéias estão dentro da corrente intitulada de movimento conciliarista. As observações de Huguccio se limitam ao âmbito da Igreja, mais não demorou muito para logo servir como  ferramenta de conhecimento por um pensador chamado Gerson, que pensava uma monarquia constitucional como uma melhor forma de administrar a Igreja. “Gerson em particular se viu obrigado a enunciar uma teoria a respeito das origens e da laicização do poder político legítimo na república secular” 22, que de uma certa forma exerceu grande influência na construção constitucionalista do Estado soberano. Sua teoria de que as sociedades devem ser perfeitas - tese aristotélica do supremo fim -, ensejou o argumento “que todo governo secular deve ser independente de qualquer outra forma de jurisdição, inclusive das pretensas jurisdições da Igreja.” 23

 

 “A teoria de Gerson é ainda mais radical em sua interpretação da localização do poder político legítimo. Como vimos, ele sustenta que, no caso da Igreja, a suprema autoridade governante está nas mãos do concílio geral, que é a assembléia representativa dos fiéis, e que a aparente plenitude do poder papal é-lhe concedida, na prática, por uma questão de conveniência administrativa.”24

    

Perceber-se claramente que Gerson tem como preocupação essencial, o que marca o pensamento constitucionalista, sustentar o princípio de que o poder exercido por quem quer que seja, é sempre delegação de uma dada assembléia. A soberania repousa na comunidade que instituiu o corpo administrativo para tocar os negócios a que se destina. Gerson deixa patente que nem o papa tem poder divino, sua atividade é administrativa e subordinada aos fundamentos firmados pela assembléia a qual está ligado.

Ainda dentro da medievalidade, Skinner aponta Guilherme de Occam como outro importante pensador a contribuir na construção da separação dos poderes secular e eclesiástico, profundamente influenciado por Gerson.“O argumento de Occam ingressa na corrente dominante da teoria política escolástica ulterior, começando a exercer seus efeitos corrosivos sobre a tradicional teoria hierocrática da supremacia papal ‘in temporabilis’.”25

 É objetivo de Skinner mostrar como que as raízes teóricas do constitucionalismo estão mais distante do que se possa imaginar, por isso é preciso assinalar que não há linearidade na construção do pensamento político, pois seus fundamentos podem estar ligados a teses bem remotas. Destaca ainda o autor, outros importantes pensadores marcadamente medievais, que de uma certa forma delinearam o constitucionalismo enquanto forte corrente de pensamento, que do plano jurídico surge para o plano das mudanças nas determinações políticas.  Entre outros pensadores, destaca:

            I - John Mair, que assevera a necessidade da separação do eclesiástico e do secular;

            II - Marcílio de Pádua, que atribui ao poder secular o poder coercitivo, visto que a Igreja não tem nenhum papel a desempenhar na sociedade política;

            III – Almain, que coloca nas mãos da comunidade a responsabilidade de conceder a seu governante o direito de organização da sociedade política.

Toda e qualquer corrente de pensamento se move num tempo específico, peculiar, que muitas vezes mesmo parecendo incongruente, fundamenta seus princípios em teses bem longínquas, vide, por exemplo, o jusnaturalismo, que ao contrário da concepção do antigo direito natural, se desloca da necessidade de uma lei universal a ser pretendida como critério de verdade, para a teoria dos direitos subjetivos, de faculdade. O jusnaturalismo privilegia a subjetividade do direito natural, ou seja, os valores inatos, ignorando assim o elemento objetivo, uma tal norma universal e necessariamente válida como positiva, objetiva. Tal doutrina tem seus fundamentos alicerçados no estoicismo, corrente filosófica que tem por escopo exaltar o indivíduo dentro de suas relações com a natureza, com a razão.26 Tal doutrina de forma decisiva serviu de fundamento para a constituição do jusnaturalismo, que por sua vez influenciou teoricamente o constitucionalismo.

O constitucionalismo acentua que uma determinada sociedade política encontra sua configuração e racionalidade quando sua estrutura tem por fundamento uma lei básica, universal, visando com isso estabelecer os limites de atuação de cada órgão do Estado, situando o poder dentro dos seus limites legais. Segundo Bobbio:

 

O Estado moderno, liberal e democrático, surgiu da reação contra o Estado absoluto (...) Na tradição do pensamento político inglês, que ofereceu a melhor contribuição para a solução deste problema, dá-se o nome específico de ‘constitucionalismo’ ao conjunto de movimentos que lutam contra o abuso do poder.” 27

 

            Mediante tal abordagem, o Estado liberal seria a exemplificação daquele Estado constitucional onde a lei sendo o esteio de toda ação estatal, é em si mesmo o seu próprio critério de limite. Portanto, liberalismo e constitucionalismo são correntes que entre si guardam verdadeiras relações de aproximação, e até de incorporação de teses, tanto assim que conforme Bobbio, Locke é sem sombra de dúvida um dos principais pensadores na elaboração e construção do Estado contemporâneo, liberal e constitucional.

O constitucionalismo moderno, ou pelo menos aquele que norteia as discussões e os conceitos atuais, tem entendido que o Estado na execução dos fins a que está submetido pela legalidade exposta nas constituições tem de acordo com o interesse público, a agilidade na prestação de um serviço público, o poder discricionário 28 de fazer ou deixar de fazer alguma coisa sempre que o interesse público estiver em jogo. É do interesse da comunidade que o governo leve a diante e de maneira eficiente e ágil, a execução de um dado fim na prestação de sua função, por isso o poder discricionário não é visto com maus olhos, até Locke em suas reflexões o tem como necessário. No capítulo que trata das prerrogativas do poder executivo, Locke enfatiza a necessidade do poder executivo dispor desse poder discricionário com o fito de suprir legalmente o que não pode ser feito pelo poder legislativo. Pela sua permanência e agilidade o poder executivo é capaz de encontrar, sempre com o espírito comunitário, soluções em si mesmo atuando necessariamente sem a permissão do legislativo.

 

“O bem da sociedade exige que várias questões fiquem entregues à discrição de quem dispõe do poder executivo; porque não sendo os legisladores capazes de prever e prover por meio de leis tudo quanto possa ser útil à comunidade, o executor das leis,  tendo  o  poder nas mãos , possui o direito de, pela lei comum da  natureza, fazer uso dele para o bem da sociedade.” 29

 

 Prerrogativa e usurpação são coisas bem distintas segundo Locke. Esta no entender de Locke são sempre “atos que prejudicam ou dificultam o bem comum”, enquanto aquela visa satisfazer uma necessidade comunitária conforme o espírito da legislação, sobretudo a existente na natureza. A prerrogativa só encontra legitimidade e permissão quando seu ato tem por fim o bem do povo, pois para tal finalidade os governos foram constituídos, e quando isso não ocorrer, ou melhor, quando a prerrogativa não passar de usurpação, “o povo não tem outro remédio, como em todos outros casos em que não há juiz na terra, senão apelar para o céu.”30

No Direito Administrativo contemporâneo, braço processual do Direito Constitucional, portanto da constituição, a liberdade que o poder executivo dispõe não tem outro escopo senão o de estar vigilante quanto à prestação de um serviço em caráter de urgência, que se não for assim pode causar um dano ao invés de um benefício. Dessa forma o constitucionalismo abraça indiscutivelmente a discricionariedade como mais uma técnica administrativa de efetivar a prestação estatal.

Por fim, entende o dominante pensamento político dos nossos dias, que o constitucionalismo ainda é o melhor remédio, senão absolutamente eficaz, pelo menos o que melhor pôde ser constituído no combate ao abuso do poder, o processo de limitação e instituição do Estado de direito, que segundo Bobbio traz consigo a assinatura de três correntes teóricas constitutivas do Estado contemporâneo: teoria dos direitos naturais, teoria da separação dos poderes, e teoria da soberania popular. 31

 

5 – Conclusão

Ao iniciar a presente exposição tomei Platão emprestado na tentativa de estabelecer um fio condutor, um elo que assegurasse unidade ao texto. Pois bem, ao terminar novamente evoco o pensamento político do fundador da Academia no sentido de trazer mais humanidade às reflexões aqui firmadas. Não pretendo com isso supor que os demais pensadores aqui tratados sejam insensíveis, não possuindo o sentido de humanidade tão caro àqueles que, como Platão, buscam permanentemente soluções aos problemas políticos, aos problemas coletivos.

Na verdade parece que a nossa época está perdendo  o sentido da imaginação e do sonho, e penso que o que está sendo esquecido representa a busca do melhor, do superior como forma de combater o discurso equivocado do possível, da estagnação.

Aqui não é o lugar para se falar de utopia, até porque Hegel nos aconselha a esquecê-la, mostrando que os nossos esforços devem se concentrar na observação do passado e do presente, e não do futuro. Penso todavia, que ainda cabe aos que guardam a perspectiva de uma sociedade onde o poder efetivamente seja uma construção de todos, impelir as associações entre os homens para um constante aperfeiçoamento, tendo por fim último a construção da felicidade humana.

 

 

Notas:

 

    1 – Aristóteles. Dos Argumentos Sofísticos, p.155.

  2 - José Afonso Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo, pp. 39-40

  3 - Aristóteles. A Política, pp. 115-230.

  4 - Reproduzido do livro Theories of the State, de Andrew Vincent, p.80.

  5 - J. Locke.  Segundo Tratado Sobre o Governo, 92.

  6 - G. Hegel. Princípios da Filosofia do Direito, 250.

    7 - Aristóteles. A Política, p. 18.

    8 – Montesquieu. Espírito das Leis, p. 147

   

9 - Assembléia onde o povo se reunia para deliberar sobre os assuntos da cidade. Para ter assento na Ekklêsia era necessário ser ateniense e ser maior de vinte anos (dezoito anos completos e mais dois de serviço militar prestados obrigatoriamente).“A Ekklêsia só se reunia a princípio uma vez em cada pritania, ou seja, dez vezes por ano. Mas os progressos do regime democrático tinham por efeito multiplicar as questões submetidas ao povo. Com o tempo, passou a haver até mais três outras sessões regulares por pritania”. (Gustav Glotz. A Cidade Grega, 1980, p. 129). 

   10 - Antonio Houaiss. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa

11 - A idéia de governo misto já era conhecida pelos gregos, que de uma certa maneira, em razão do seu apreço pela harmonia, é uma busca constante pelo pensamento político. No entanto, a tese  de governo misto é atribuída a Políbio, que pela primeira vez formulou tal conceito de  governo  misto face à organização política romana: “Os órgãos que participavam do governo eram três (...) Considerando-se em especial o poder dos cônsules, o Estado parecia monárquico e real; considerando-se em particular o senado parecia aristocrático; do ponto de vista do poder da multidão, parecia indubitavelmente democrático” (História, VI, 12). Extraído do livro de Norberto Bobbio: A Teoria das Formas de Governo,1997, p. 70.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 

  12.- Trecho extraído do livro A Teoria das Formas de Governo, de Norberto Bobbio, (Políbio, VI, 18).                                                                                                                       

13 - J. Locke. Segundo Tratado Sobre o Governo, p. 97.

14 – Montesquieu. Do Espírito das Leis, p.45.

15 - Idem, p.149.

16 – Madison. Os Artigos Federalistas, p. 333.

17 - Idem, p. 135.

18 - “Dos gregos e romanos recebemos ilustrações dos povos. Neles encontramos o conceito de uma livre constituição, formada de tal modo que todos os cidadãos devam tomar parte nas deliberações e resoluções sobre os assuntos gerais e sobre as leis. Também em nossa época essa é a opinião geral, apenas com a modificação de que isso não é feito diretamente, devido à extensão e à população de nossos Estados, mas indiretamente por meio de representantes da vontade dos cidadãos, que expressam a opinião destes para a resolução de questões públicas - vale dizer, o povo deve ser representado por deputados para a elaboração das leis. A chamada constituição representativa é a disposição à qual associamos a idéia de uma constituição livre, de tal modo que isso acabou por ser tornar um sólido preconceito. Com isso, separa-se povo e governo. Mas existe uma malícia nessa lei que é um artifício da má vontade, como se o povo fosse a totalidade. Além do mais, essa idéia serve de base ao princípio da individualidade, do absoluto, da vontade subjetiva, do qual se falou anteriormente. O mais importante é que a liberdade, como é determinada pelo conceito, não tem por princípio a vontade subjetiva e a arbitrariedade, mas sim o conhecimento da vontade geral; o sistema da liberdade é o livre desenvolvimento de seus momentos. A vontade subjetiva é uma determinação totalmente formal que não contém o que a vontade quer. Só a vontade racional contém esse elemento universal que se autodetermina, se desenvolve e desdobra os seus elementos em membros orgânicos. Os antigos não tinham conhecimento dessa estrutura de catedral gótica. (G. Hegel. Filosofia da História, 1999, p. 46).

19 – G. Hegel. Princípios da Filosofia do Direito, p. 251.

20 - Idem, p. 253.

21 - “Certamente que cada governo estabelece as leis de acordo com a sua conveniência: a democracia, leis democráticas; a monarquia, monárquicas; e os outros, da mesma maneira. Uma vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os governos aquilo que lhe convém, e castigam os transgressores, a título de que violaram a lei e cometeram uma injustiça. Aqui tens, meu excelente amigo, aquilo que eu quero dizer, ao afirmar que há um só modelo de justiça em todos os Estados - o que convém aos poderes constituídos. De onde resulta, para quem pensar corretamente, que a justiça é a mesma em toda parte: a conveniência do mais forte.” (Platão. A República, 1993, p. 24).

22 – Skinner. As Fundações do Pensamento Político Moderno, 1996, p. 394.

23 - Idem, p. 395.

24 - Idem, p. 396

25 - Idem, p. 395.

26 - É na ética que o estoicismo ainda repercute em nossos dias. No discurso ético encontra-se uma tentativa de validar novos paradigmas para uma época que viu desmoronar sistemas de construção social a partir de indivíduos ligados à polis, O estoicismo não se apresenta como uma continuidade socrática em relação aos problemas do homem e seu projeto. A estoá carrega na ética toda sua visão corajosa de mundo, destaca o papel do sábio como aquele capaz de superar os obstáculos, as adversidades dentro de uma racionalidade existente, fazendo com que o homem viva segundo a natureza, conforme à razão. Admite o estoicismo que o homem vivendo conforme a razão, viva uma existência longe das perturbações e perto do ideal de sábio: a submissão das paixões à determinação do logos. O estoicismo tem na razão a fundamentação do seu discurso, é com ela e através dela que a estoá promove o homem como um ente de razão, detentor das condições mínimas e necessárias à autarquia, governante e responsável por si mesmo. A autarquia no logos estóico apresenta o homem como ser livre, independente das vontades de um sistema ou das vicissitudes humanas. Ser livre para um estóico tem duplo sentido: primeiro o homem é livre porque a natureza basta a si mesma, é nela que ele encontra sua origem; segundo pelo fato do homem reconhecendo tal verdade, submete toda sua vida ao que é natural, racional, divino. O estoicismo assevera que a natureza é justa porque é divina. Essa vinculação do homem à natureza lhe confere o status de cidadão do cosmos, homem que nascendo nesta ou naquela cultura, pertencente à cidadania ateniense ou romana, sendo judeu ou cristão, ele será sempre homem, cidadão do mundo, construtor de uma humanidade na qual ele é a própria condição de ser. Esse cosmopolitismo estóico rompe com a tese de que o homem encontra seu significado, sua humanidade em bases estreitamente étnicas. Para o estoicismo esse entendimento retira do homem sua origem divina e o escraviza por acidente. Se a natureza não faz distinção de homens, para ela todos são iguais, portanto, não há motivo para separação entre os homens por nascimento, origem, sexo ou credo. O projeto estóico é uma clara contestação ao ideal do mundo antigo que separava os homens em virtude de sua etnia ou qualquer outro valor contrário ao logos.

    27 – Norberto Bobbio. Direito e Estado no Pensamento de Immanuel Kant, 1984, p. 15.

28 - “Poder discricionário é o que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo. Convém esclarecer que ‘poder discricionário’ não se confunde com ‘poder arbitrário’. Discricionariedade e arbítrio são atitudes inteiramente diversas. Discricionariedade é liberdade de ação administrativa, dentro dos limites permitidos em lei; arbítrio é ação contrária ou excedente da lei. Ato discricionário, quando autorizado pelo Direito, é legal e válido; ato arbitrário é sempre ilegítimo e inválido”. (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, 1998, p. 103.

29 – J. Locke.  Segundo Tratado Sobre o Governo, p 105.

30 - Idem, p. 107.

31 – “a) Teoria dos direitos naturais / jusnaturalismo = o jusnaturalismo entende que existe um poder relacionado aos indivíduos, são aqueles encontrados na razão, preexistentes ao Estado; cada homem ao nascer traz consigo direitos inatos, direitos considerados inalienáveis, intransferíveis, portanto, próprios do sujeito, que configuraria o futuro Estado liberal;  b) Teoria da separação dos poderes = em última análise tal teoria defende o princípio da desconcentração do poder, visto que um mesmo órgão não poderia exercer poderes diversos, cada órgão uma função correspondente, com isso se evitaria o abuso, constituindo a base legal do Estado: o controle recíproco;   c) Teoria da soberania popular ou democrática = esta teoria talvez seja a mais radical das teorias apresentadas, pois não só visa a contenção do poder como a efetiva participação de todos no poder; para se conter todo e qualquer abuso o remédio seria o governo fundado no consenso popular, isto é, todos legislariam voltados a execução da própria lei: vontade geral”. (Norberto Bobbio. Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant,  1984).

32 - “Está, pois, suficientemente esclarecido que a virtude moral é um meio-termo, e em que sentido devemos entender esta expressão; e que é um meio-termo entre dois vícios, um dos quais envolve excesso e o outro deficiência, e isso porque a sua natureza é visar à mediania nas paixões e nos atos.”  (Aristóteles. Ética a Nicômaco. Os Pensadores, 1973, p. 277).

33 - Nesta passagem Aristóteles deixa bem clara a diferença do seu pensamento político face ao de Platão: “Também é preciso que eles conheçam a forma de governo que melhor convém aos diversos Estados; porque a maioria dos escritores políticos que trataram desse assunto, dizendo cousas excelentes, cometeram erros em vários pontos importantes. Não se trata apenas de considerar a melhor constituição, mais ainda aquela que é praticável, e que ao mesmo tempo oferece aplicação mais fácil, e que melhor se adapta a todos os Estados. Longe disso, dos escritores políticos, uns se prendem à forma perfeita e que exige recursos consideráveis, e outros...”. (Aristóteles, p.226  / VI, I, 3).

 

    Referências Bibliográficas.

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  Bobbio, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Immanuel Kant. Brasília: Ed. UnB, 1984.

 ______________.  A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1988.

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 HEGEL, GFW.  Princípios da Filosofia do Direito. 4ª, Lisboa: Guimarães Editora, 1990.

 ___________. Filosofia da História. Brasília: Ed. UNB, 1999.

 HOUAISS,  Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001.

 GLOTZ, Gustav. A Cidade Grega. SP: Ed. Difel, 1980. 

 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. In Os Pensadores. São Paulo: Ed.

 Abril, 1973.

 MADISON, J., HAMILTON, A. JAY, J. Os Artigos Federalistas. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1987.

 MONTESQUIEU.  O Espírito das Leis.  In Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1973.

 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores 1998.

 SILVA, José A. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1998.

SKINNER, Quentin.  As Fundações do Pensamento Político Moderno.São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

VINCENT, Andrew.  Theories of State. Basil.  Blackwell, 1987.

 

Resumo: O presente texto tem por objetivo discutir a importância e o sentido de Constituição e das instituições ligadas ao poder enquanto determinações históricas e políticas, valendo-se do para tal de conhecimentos produzidos por autores clássicos. 

 

Palavras-chave: Estado, constituição, constitucionalismo, instituição e política.

* O Presente artigo é originalmente uma adaptação de um trabalho do curso Constitucionalismo Moderno, Cidadania e Limitação de Poder, ministrado pelo Prof. Dr. Charles Pessanha, no PPGCP do IFCS/UFRJ, no primeiro semestre letivo de 2003.

 

**O autor é bacharel em Direito, licenciado em Filosofia, mestrando de Ciência Política do PPGCP do IFCS/UFRJ, e bolsista pela FAPERJ.

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