“INFLAÇÃO COMO REIFICAÇÃO”
Christy Ganzert Gomes Pato*
Na discussão sobre os limites da Economia Neoclássica é
comum se dar aos ortodoxos o benefício da dúvida. Mesmo tendo sua pretensa
neutralidade epistemológica questionada, seus erros muitas vezes são redimidos
em função da aplicabilidade objetiva de seus métodos de análise. Ou seja,
joga-se fora a casca mas se pode aproveitar o miolo, pois ainda assim seus
métodos seriam úteis para se chegar aos dados que nos descrevem a verdadeira
realidade.
Sem querer entrar nas discussões adornianas sobre as relações simbólicas
entre o pensamento científico e o pensamento mítico, creio que essa visão pode
ser rejeitada em bloco também por outros motivos. Se nossa análise pretende
entender a sociedade Moderna em seu todo, devemos considerar que no movimento
do Capital até mesmo a Ciência foi subsumida à sua lógica. Sendo assim, os
métodos de análise derivados da Economia Neoclássica nada mais são que aspectos
da Razão Instrumental, parágrafos do cânone de uma racionalidade administrativa
necessária a um movimento que deve não apenas descrever mas governar o mundo -
necessidade básica do desdobramento da mercadoria.
Num pequeno texto de jornal, o professor Lauro Campos (2001) tentou
mostrar o erro deste tipo de análise tomando como foco o conceito de inflação.
Em lugar de assumir o pretenso caráter objetivo desse conceito para daí
desdobrarem-se críticas à economia, o professor toma o próprio conceito de
inflação como um fenômeno fetichista. Mas antes de prosseguir na dissecação do
argumento do professor cabe entender melhor o significado de tal conceito.
A formulação clássica do conceito de fetichismo da mercadoria está
contida no final do primeiro capítulo de
O Capital, e detectar a riqueza categorial subjacente às formulações nele
contidas não é tarefa fácil. Até mesmo a grande obra de Lukács, História e Consciência de Classe,
publicada em 1923, cometeu o equívoco de identificar reificação com
objetividade em geral. Um equívoco facilmente perdoável visto que os Manuscritos Econômico-Filosóficos de
1844 só viriam a público em 1932, e os Elementos
Fundamentais para a Crítica da Economia Política, redigidos entre 1857 e
1858, só seriam publicados em fins da década de 1930.
Ou seja, até então, sem o devido conhecimento das ligações de Marx com a
Filosofia, predominava uma leitura positivista de sua obra, limitada nas
possibilidades de apreensão da problemática da alienação e seus correlatos.
Ainda assim, a noção de fetichismo contida em O Capital não foge à captação ontológico-histórica do trabalho como
constitutivo do ser social. As proposições sobre o fetichismo são enunciadas
articulando-se os movimentos, tanto históricos como teóricos, da categoria
trabalho com a categoria valor. E é nesse movimento que se revela a potente
teoria social marxiana.
Da articulação entre trabalho e valor emana o miasma mercadoria, e,
dessa, o enigma que obscurece as relações sociais: o fetichismo.
Aquilo que é fruto do trabalho humano - e portanto uma relação social -
é tomado de assalto por um véu que, tal como o Véu de Ignorância de John Rawls,
paira sobre os olhos de cada indivíduo, tolhendo-lhes a verdadeira percepção do
mundo. Por trás do véu, seu único contato com o mundo torna-se a mercadoria,
agora eternizada tal como o céu, a água, o mar,...
E o que na essência é uma relação entre homens, na aparência “... assume
a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”. Ei-lo, posto, o
fetichismo.
Um fetichismo cujo segredo também é histórico, pois depende da
universalização da produção mercantil. Uma historicidade também obscurecida por
um enigma que toma as objetivações do ser social e as coagula em meras
factualidades. Assim, coisificado, o ser social tem suas particularidades
diluídas numa eternização genérica.
Mas todas essas características da noção de fetichismo só tomam
realmente sua devida dimensão quando referidas a uma certa ontologia
antropológica. Daí o papel central dos escritos do jovem Marx. De fato, autores
como Mészaros e Garaudy parecem considerar que sem uma teoria da alienação é
impossível pensar a problemática do fetichismo.
Na parte final do primeiro de seus Manuscritos
econômico-filosóficos Marx elabora sua análise partindo de um fato
econômico concreto: o de que o trabalhador se torna tão mais pobre quanto mais
riqueza produz, ou seja, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos
ele pode possuir.
Tal fato é a incidência palpável de que o trabalhador não produz apenas
mercadorias, mas a si mesmo como mercadoria. Ao efetivar seu trabalho, ao mesmo
tempo em que ele objetifica seu trabalho, o qual toma a forma de um objeto, o
trabalhador se desefetiva, ou seja, se priva da realidade.
Exteriorizado sob a forma de um produto, um objeto alheio a ele próprio,
o produto de seu trabalho se torna um poder autônomo que se lhe defronta, que
ele não pode possuir e que, ao contrario, lhe oprime.
É da mesma
maneira na religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos retém em si
mesmo. O trabalhador coloca sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais
a ele, mas sim ao objeto.
A imagem de que o homem é o produto de seu trabalho se evapora,
evanescente. Quanto maior é a atividade mais o trabalhador é destituído de
objetos e, portanto, tanto menos ele mesmo é. E o objeto, exteriorização do
trabalhador, assume uma existência fora dele, independente dele, e alheia a
ele.
... a vida que
ele conferiu ao objeto se lhe defronta inimiga e alheia.
A alienação do trabalhador em seu objeto resulta, pois, no
obscurecimento do conteúdo e efeito da ação e intervenção do próprio
trabalhador. Destituído de si, o trabalhador torna-se incapaz de captar as
mediações sociais que o vinculam à vida social. E numa sociedade produtora de
mercadorias tal alienação se expressa sob a forma do fetichismo.
Ou seja, o fetichismo implica a alienação. Melhor ainda, “o fetichismo
põe, necessariamente, a alienação”. Mas o que ele instaura é uma forma nova e
inédita que a alienação assume na sociedade burguesa constituída. Nessa
sociedade onde o fetichismo se universaliza, a alienação assume uma forma
qualitativamente diferente e peculiar: a reificação.
É comum a confusão entre fetichismo e reificação. Mas o que deve saltar
à vista é que a reificação não é apenas a substituição das relações humanas por
relações entre coisas. De fato, seguindo Fredric Jameson, temos que as coisas
sólidas de um mundo de valores de uso são transfiguradas em equivalências
abstratas que projetam agora, investidas na mercadoria, um novo tipo de
sensorialidade material.
nesse sentido,
“reificação” é virtualmente o outro extremo da matéria, que ela parece
transformar em objetos estranhamente espiritualizados que, ainda assim, se
parecem mais com coisas do que as próprias coisas.
Mas a confusão entre fetichismo e reificação - e, por extensão,
alienação - é que eles fazem parte de um mesmo movimento. Mas nesse movimento
há que se distinguir entre a personalização e a coisificação. Na
universalização da mercadoria por todo o tecido social ela se autonomiza,
descola-se de seu criador. Ela adquire vida própria, se personaliza, obscurecendo
as verdadeiras relações que lhe dão movimento: as relações sociais. E é nesse
movimento que se põe também a reificação. O mundo das mercadorias autonomizadas
afirma a própria destituição do homem de si mesmo, sua coisificação. E nesse
mundo reificado, as coisas adquirem uma materialidade inteiramente nova, mais
real que a própria realidade.
Voltando ao professor Lauro Campos, à primeira vista parece então
estranha a colocação da inflação como fenômeno fetichista. Afinal, pelo que foi
até aqui exposto, o fetichismo implica uma relação do trabalhador com o objeto,
implica uma mercadoria, conceito um tanto estranho à inflação.
No entanto, como assinala Marx no final do capítulo 1 de O Capital:
Como a forma
mercadoria é a forma mais geral e menos desenvolvida da produção burguesa,
razão por que aparece cedo, embora não da mesma maneira dominante e, portanto,
característica como hoje em dia, seu caráter fetichista parece ainda
relativamente fácil de penetrar. Nas formas mais concretas desaparece mesmo essa
aparência de simplicidade. De onde provieram as ilusões do sistema monetário?
[...] E a Economia moderna, que sobranceira olha o sistema monetário de cima
para baixo, não se torna evidente seu fetichismo logo que trata do capital?
No caso das ilusões do sistema monetário ainda se poderia argumentar que
o dinheiro é um tipo peculiar de mercadoria. Mas e quanto ao fetichismo da
Economia moderna? E se se pode falar em fetichismo da Economia moderna por que
não em inflação como fenômeno fetichista?
Mas, na minha opinião, é aqui que entra a confusão entre fetichismo e
reificação, armadilha fácil para aqueles que não conhecem os Manuscritos Econômico-Filosóficos de
1844.
Como visto, o fetichismo implica a alienação. A sociedade burguesa
constituída instaura processos alienantes particulares, postos pelo fetichismo,
de onde extraímos a alienação específica constante na sociedade em que o
fetichismo se universaliza: a reificação.
Assim, talvez fosse mais adequado, e até mesmo mais poderoso, tomar a
inflação não como fenômeno fetichista, mas como fenômeno da reificação.
O poder dessa forma de abordagem pode ser melhor entendido tendo-se em
mente o conceito criado por Guy Debord: a sociedade
do espetáculo.
O espetáculo é a difusão máxima da alienação, numa sociedade onde o
fetichismo se universalizou. Ou seja, o espetáculo é a reificação sublimada.
O aspecto midiático do espetáculo, representado pela tirania dos mais
diversos meios de comunicação, é apenas a manifestação superficial mais
esmagadora do espetáculo. Na evolução histórica da alienação, que pode ser
caracterizada como uma degradação do “ser” para o “ter”, o espetáculo consiste
numa degradação ulterior do “ter” para o “parecer”.
Dentro da manifestação mais evidente do espetáculo, o funcionamento dos
meios de comunicação de massa procura expressar a estrutura de toda a sociedade
de que fazem parte. A contemplação passiva de imagens, já escolhidas por
outros, substitui o vivido e oblitera a determinação dos acontecimentos por
parte do próprio indivíduo.
A experiência cotidiana torna-se um empobrecimento da vida vivida,
fragmentada em esferas cada vez mais separadas. E o espetáculo consiste
justamente na recomposição, no plano da imagem, desses aspectos separados. Tudo
o que falta à vida passa a ser encontrado nesse conjunto de representações
independentes que é o espetáculo. As celebridades se encarregam de representar
o conjunto de qualidades humanas e da alegria de viver ausente na vida efetiva
de todos os outros indivíduos, aprisionados em papéis miseráveis. Separados uns
dos outros, os indivíduos só encontram sua unidade no espetáculo, onde “as
imagens que se afastaram de cada aspecto da vida fundem-se num curso comum”.
O espetáculo toma para si toda a comunicação. Enquanto ele fala todos
escutam. E sua mensagem é uma só: a incessante justificativa da sociedade
existente. E para tal justificativa ele não necessita de argumentos
sofisticados, basta-lhe ser o único a falar sem nenhuma réplica. “Sua condição
preliminar, e simultaneamente seu principal produto, é a passividade da
contemplação”.
A atividade social inteira passa a ser captada pelo espetáculo para seus
próprios fins.
Do urbanismo
aos partidos políticos [...] da vida cotidiana às paixões e aos desejos
humanos, em toda parte se encontra a substituição da realidade por sua imagem.
E, nesse processo, a imagem acaba por se tornar real, sendo causa de um
comportamento real, e a realidade acaba por se tornar imagem.
A imagem universalizada traz ainda a impressão de que o espetáculo
reflete toda a sociedade, quando na verdade ele estrutura as imagens segundo os
interesses de apenas parte dela, tornando-se um instrumento pelo qual esta
parte domina a sociedade inteira.
Mas o espetáculo não se limita a isso. Como afirma Debord, “o espetáculo
não canta os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões”. Ou seja,
na sociedade do espetáculo, na reificação sublimada, o valor de troca agora
dirige o valor de uso. A mercadoria desvincula-se de cada necessidade humana e
deixa de ser consumida enquanto valor de uso, passando a ser consumida apenas
como mercadoria.
Tomemos agora a inflação como expressão da reificação, ou seja, como uma
das formas peculiares de alienação que a sociedade produtora de mercadorias
põe. Tal como o espetáculo, aqui a inflação obscurece as verdadeiras tramas
nela engendradas porque ela mesma adquire uma nova materialidade, absolutizada,
destacada do plano palpável do vivido. Ela oculta as tramas sociais não por ser
mercadoria personificada, mas por ser o próprio tecido social coisificado. O
trabalhador apenas assiste seu índice, sem imaginar que, por trás dele, se
opera uma redistribuição do butim social. A inflação é apenas uma parte de um
todo no qual o Ser social foi abduzido, convertido em uma nova sensorialidade
que só faz alimentar o processo no qual o trabalhador se entretém, passivo,
observando a economia como se contemplasse uma paisagem. Uma paisagem
naturalizada, positivada, externalizada, que impregna o indivíduo de uma falsa
noção de inevitabilidade, de aceitação do “curso natural das coisas”. E pelas
leis dessa natureza, segue o rebanho... prostrado.
Nesse ponto podemos voltar também ao velho Marx, e entender melhor sua
afirmação sobre o caráter fetichista da Economia moderna. Marx não chegou a
assistir à Economia se perder em belíssimos, porém hipostasiados axiomas
matemáticos. Mas nem só de inflação vivem os signos que compõe a naturalização
da esfera da economia. A Economia Neoclássica por sua própria opção
epistemológica, naturaliza todos os fenômenos econômicos, provendo-nos com um
arsenal quase ilimitado de imagens que compõem mais um espetáculo no qual o
consumidor se entretém. Nessa paisagem automatizada, somos governados
heteronomamente por um rabo, também hipostasiado, que nos abana.
Assim, a cientificidade da Economia Neoclássica, em lugar de desencantar
o mundo, o reencanta, desvelando-se a si mesma como mera reificação.
Bibliografia:
CAMPOS, Lauro
2001 “O rabo que abana o
cachorro”. Folha de São Paulo. São
Paulo, 28 de agosto de 2001. Seção Tendências e Debates, p.A3.
JAMESON, Frederic
1997 (1990) O Marxismo Tardio: Adorno, ou a persistência da dialética. São
Paulo: UNESP; Boitempo.
JAPPE, Anselm
1999 Guy Debord. Petrópolis: Vozes.
MARX, Karl
1984 (1844) “Trabalho Alienado e
Superação Positiva da Auto-Alienação Humana”. In: FERNANDES, Florestan
(org). Marx/Engels: história. Coleção Grandes
Cientistas Sociais, pp.146-181.
1988 (1867) O Capital - Crítica da Economia Política. 3ª edição. São Paulo:
Nova Cultural. Livro I - O Processo de Produção do Capital, V.1.
MORA, José Ferrater
1994 Diccionario de Filosofía. Barcelona: Editora Ariel.
NETTO, José Paulo
1981 Capitalismo e Reificação. São Paulo: Ciências Humanas.
PAULANI, Leda.
1991 Do conceito de dinheiro ao dinheiro como conceito. Tese de
Doutorado. São Paulo: IPE-USP.