FERNANDO HENRIQUE E A CIVILIZAÇÃO
Valter Duarte*
Em rigor, foi na Inglaterra, nos anos de 1688, 1689 e 1690, com a Revolução Gloriosa, o juramento da Bill of Rights por Guilherme III e a publicação das principais obras de Locke, o início da civilização. Somente a partir daqueles anos a idéia de soberania do que então se chamava de sociedade civil veio a superar a idéia de soberania real e veio a se realizar em instituições políticas voltadas para garantir aquele que seria o seu mais elevado bem público: a segurança do privado, especialmente a segurança da propriedade privada e da posse particular de dinheiro, sua mais elevada razão revolucionária, sua mais elevada razão de existir. Soberanos, os valores civis foram feitos os principais laços integrativos da Inglaterra, da sua Commonwealth, caracterizando-a como sociedade civilizada como jamais houvera outra na história.
Porém, isso não aconteceu em tempos em que se pudesse considerar a
qualidade de uma sociedade de acordo com os seus valores coletivos
integrativos. Ainda não havia a Sociologia que indicaria ser possível pensar
desse modo e seria contrária à idéia de animal político de Aristóteles. Assim,
o fato de ser a Inglaterra uma civilização, e a única, não era considerado.
Como também não era considerado nesse sentido o fato de que a Europa Ocidental
ainda era predominantemente integrada pelos valores da catequese cristã, pelos
da formação de acordo com os valores da Igreja Católica Apostólica Romana que
haviam sido estendidos ao máximo em favor do seu ideal de ordem universal: o da
Cristandade. Foi o que facilitou o aparecimento no século XIX do significado da
palavra “civilização” que predomina até hoje e nos dificulta o entendimento dos
valores políticos aos quais ela está definitivamente ligada.
Esse significado começou a aparecer nos trabalhos de antropólogos
etnocentristas que, muitas vezes sem separar as palavras “cultura” e
“civilização”, começaram a fazer da Europa, provavelmente devido ao seu maior
desenvolvimento tecnológico, a referência segundo a qual todos os povos deviam
ser pensados e para a qual todos os povos deviam convergir. Depois de separadas
essas palavras, “civilização” começou a significar uma “cultura” superior, sem
dúvida, a européia. Desse modo, passou a significar a superação de um estado
inferior dos homens, dizendo-se mesmo, como aparece, por exemplo, no Sobre a
Liberdade de Stuart Mill, que a “civilização levou vantagem sobre a
barbárie quando esta tinha o mundo para si”[1].
Foi tão forte essa influência que é notável o fato de em A Origem da
Família da Propriedade Privada e do Estado, de 1884, Engels ter acolhido
afirmativamente o livro Ancient Society, or Researches in the Lines of Human
progress from Savagery through Barbarism to Civilization, de 1877, do
antropólogo Lewis Henry Morgan e ter contribuído, tal como em outra linha
contribuiu Edward Burnet Tylor em seu Anthropology,
de 1895, para que a preconceituosa tese evolucionista, que se resume na
seqüência “selvajaria, barbárie e civilização”, recebesse aceitação científica.
Foi como participar da despolitização da palavra “civilização” e da sua
universalização. Atraído pela crença de que o trabalho de Morgan lhe permitia
falar em favor da concepção materialista que partilhara com Marx, Engels acabou
por lhe dar a concordância dos que mais combatiam os valores que ela
representava. A civilização, solução liberal para institucionalizar uma
soberana comunidade de individualistas, totalmente inglesa em suas origens e
valores, exatamente quando a Inglaterra tinha no mundo um império “onde o sol
nunca se punha”, passou a ter a sua melhor palavra designativa pensada como
sendo neutra e universal, e ainda relativa a um processo histórico
evolucionista, no qual significaria o necessário destino de todos os povos que
pudessem sobreviver.
É certo que para Engels “civilização” não seria o fim da História, como
também não seria para Morgan, de quem tomou para terminar seu livro as palavras
indicativas de que uma nova e superior forma de sociedade, sem os antagonismos
dos civilizados, estaria por vir. Mas isso não altera em nada a contribuição
involuntariamente dada. Estão aí as muitas referências a sociedades, as mais
variadas, desde que organizadas com alguma complexidade ou com considerável
produção filosófica, jurídica ou artística, como sendo civilizações: “Civilização
do Egito”, “Civilização da Mesopotâmia”, “Civilização Grega”, “Civilização
Romana”, “Civilização Asteca”, “Civilização Maia”, “Civilização Inca”,
“Civilização Chinesa” e outras. Não foram civis os valores integrativos em
nenhuma sociedade formada por esses povos. Não foram civis os valores que
Sócrates combateu em Atenas; foram da educação sofística, que não formava
civilizados e sim sofisticados. Também não foram civis os valores que ele opôs
aos sofistas. Mais recentemente, não foram civis os valores da catequese
cristã; ela formava e forma catequizados, não civilizados. E é preciso dizer:
foram os valores da civilização que dominaram os valores da catequização e
começaram a substituí-los ou a levá-los a importância secundária na Europa e
onde no mundo os europeus dominaram.
Estamos, então, falando de dois significados da palavra “civilização”: o
primeiro referente à sua origem e à sua prática, que não é usado, e o segundo,
o evolucionista, que é ampla e exclusivamente adotado. Não há dúvida, o
significado evolucionista de “civilização” não só colabora com civilizar de
fato, isto é, com a prática em favor da soberania dos valores do que se possa
considerar sociedade civil, como, por opor-se à barbárie e não à catequização,
esconde esses valores, esconde o que significam do ponto de vista político.
Por isso a universalização do significado evolucionista da palavra
combinou com a universalização dos seus valores de origem promovida pela
Inglaterra em sua política externa. Desde os tempos de Malthus e Ricardo, tendo
passado pela dura aprendizagem do “Bloqueio Continental” de Napoleão, seus
políticos descobriram o quanto o desenvolvimento industrial pode aumentar a
dependência de abastecimento de produtos primários e dependência de constantes
oportunidades de expansão do capitalismo. Assim, a partir do Congresso de
Viena, eles foram os principais responsáveis pela promoção e estabelecimento
das quatro bases daquilo que Polanyi em 1943 veio a chamar de “civilização do
século XIX”: “o sistema de equilíbrio de poder”, “o padrão-ouro”, “o mercado
auto-regulável” e “o estado liberal”[2],
as três últimas enraizadas na história prática da civilização. Eram todas elas
necessárias para que, ao invés de dominar militarmente o mundo, empresa
completamente impossível, a Inglaterra o dominasse por meio de seus valores e
continuasse o seu capitalismo constantemente dependente de abastecimento e expansão.
Foi na fase inicial da construção dessa ordem, num episódio muito mais
ligado à família real portuguesa do que à história de seu povo, que o Brasil
teve proclamada a sua independência. Com uma população estimada em quatro
milhões de habitantes, da qual cerca de 1 milhão era de escravos, não podia em
curto prazo organizar-se de acordo com os valores civilizados. Além disso,
formou-se com instituições políticas que tiveram na criação do Poder Moderador
uma clara oposição a qualquer idéia de soberania de valores civis, que
implicaria, em conseqüência, a de supremacia do Poder Legislativo. Para
reforçar, a grande influência da Igreja Católica pôde fazer do catolicismo a
religião oficial do Império e continuar um processo de catequização em todo o
território brasileiro reafirmando em seu povo aqueles que de fato foram os seus
primeiros valores integrativos, os católicos, fazendo-os, desse modo, um outro
obstáculo a ser vencido em qualquer tentativa de civilização.
Apesar disso, os valores civis não ficaram longe da história do Brasil.
Estiveram nos ideais de revolucionários, nos ideais de políticos do Primeiro
Reinado, do Período Regencial, do Segundo Reinado e em certos arranjos
institucionais subordinados ao Poder Moderador. Foram um sinal claro da
influência do pensamento e das lutas estrangeiras por aqui e de que no final
daquele império escravocrata poderiam ser a base de uma nova ordem interna e do
tipo de inserção do Brasil na ordem internacional.
Porém, na Primeira República, embora fossem raízes históricas de sua
própria organização institucional, a federalista, não puderam, exatamente por
estarem nessa forma descentralizada, superar, considerando-se o quanto ela
mesma os favorecia, as lideranças e os valores regionais. Assim, não puderam
superar os valores católicos largamente espalhados no país; como também, por
não terem em seu favor qualquer projeto educacional, ficaram muito longe de
prevalecer sobre a influência dos positivistas na educação oficial. Mesmo o
Código Civil, sancionado em 1916, não teve força civilizadora suficiente para
vencer os valores dominantes na sociedade brasileira e que haviam dificultado
por quase um século todos os esforços pela sua elaboração e aprovação[3].
Desse modo, um Brasil de burgueses esporádicos e dispersos, nem sempre
brasileiros, sem burguesia formada, portanto, passou seu primeiro período
republicano sem ser civilizado.
Foi no período de maior crise mundial de tempos de paz do capitalismo,
quando um colapso financeiro e produtivo desfez a ordem internacional
subseqüente à Primeira Guerra Mundial e deu condições para o prestígio e o
desenvolvimento de alternativas totalitárias, que o Brasil poderia ter tido uma
primeira oportunidade de organizar-se
para a sua civilização. Começou com a instalação de uma Assembléia Constituinte
em 1933. Cedo, porém, embora a prática do capitalismo no Brasil já tivesse
unido para a prática política homens já organizados em torno do ideário
liberal, os parlamentares eleitos para ela demonstraram representar uma
sociedade, ou frações dessa sociedade, que em conjunto nada tinha a ver com
qualquer projeto de formar uma soberana comunidade de individualistas. O
resultado foi a Constituição de 1934, considerada híbrida em relação às suas
leis e aos seus valores, que teve vida curta. Logo veio o Estado Novo e com ele
um dos raros momentos da história em que houve uma política oficial em favor de
se identificar valores brasileiros para revertê-los na formação e na integração
do próprio povo em que estariam enraizados. Foi acompanhado também de uma ampla
legislação de proteção social, especialmente protetora dos assalariados, que
não tinha raízes propriamente nos valores civis e sim no pensamento e nas
práticas dos que combatiam o individualismo.
O Estado Novo não foi criado para representar o Brasil como um todo ou
em parte. Teve uma política de integração nacional que partia da idéia de que
existia um Brasil diversificado e disperso que não devia perder a sua
diversidade e devia mesmo usá-la como inspiração integrativa. Várias regiões,
três raças, várias maneiras de ser brasileiro deviam se sentir unidas sob o
comando do governo. Para isso a política do Ministério da Educação e Cultura;
para isso a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda, que se valeu de
meios de comunicação de massas que haviam tido significativo desenvolvimento,
como o rádio e o cinema. O Estado Novo foi criado para formar um Brasil a
partir dele próprio unindo a sua diversidade. A sua existência afastou o Brasil
ainda mais da civilização.
Por isso, quando o nazi-fascismo foi derrotado na Segunda Guerra Mundial
e a representação social da vitória foi feita em nome da “democracia” - palavra
que desde o século XIX fora tomada em favor da civilização e das suas
instituições políticas, as liberais - a permanência do Estado Novo e de seu
projeto para o Brasil tornou-se insustentável. Organizados em um partido
fundado ainda em 7 de abril de 1945, a UDN, políticos liberais, desejosos de
civilizar rapidamente o país, lançaram um candidato às eleições presidenciais
marcadas para 2 de dezembro daquele ano, mas, temerosos de que Getúlio Vargas
pudesse por meio de um novo golpe continuar na presidência, pediram a
intervenção dos principais chefes militares do país e conseguiram deles a sua
deposição. Sem Getúlio Vargas e com novas instituições, o Brasil poderia tomar
o caminho da civilização.
Porém, o resultado daquelas eleições presidenciais decepcionaram os
anti-getulistas. Foi eleito o general Dutra, apoiado por Vargas e que fora
Ministro da Guerra no Estado Novo. A decepção se repetiria em 1950, quando o
próprio Getúlio Vargas foi eleito presidente. A partir dela, ficava claro que
os valores formados na população durante o Estado Novo estavam tendo forte
expressão nos resultados eleitorais. Dominavam as próprias instituições que
haviam sido formadas contra eles. Então, alguns políticos, entre os quais se
destacou Carlos Lacerda, começaram uma inflexível campanha contra Getúlio na
Imprensa e no Congresso. Era preciso não deixá-lo governar e destruí-lo
politicamente. O resultado foi uma série de graves incidentes que no fim
levaram Getúlio ao suicídio, ato político que reverteu as expectativas de ganho
em curto prazo de seus inimigos. De fato, pouco mais de um ano depois, eles
vieram a passar por uma outra frustração em eleição presidencial com a vitória
de Juscelino para a Presidência e a de João Goulart para a Vice-Presidência. A
tendência de se ter o domínio dos valores formados na sociedade brasileira
durante o Estado Novo continuava.
Tentou-se então a candidatura de Jânio Quadros para vencer nas urnas
aquela tendência e fazer de seu governo um meio de reciclar os valores e,
assim, o comportamento eleitoral. Foi possível vencer as eleições, mas não foi
possível fazer de Jânio o promotor da reciclagem. A crise entre ele e os que o
haviam apoiado levou estes a tentar submetê-lo institucionalmente, criando uma
comissão de inquérito na Câmara dos Deputados, perante a qual seus ministros
estariam intimados a depor. “Alcançado em sua autoridade”, Jânio renunciou e
não aceitou o apoio para um golpe de Estado proposto por seus ministros
militares, sendo difícil crer que imaginasse movimentos de massa em seu favor
para que retornasse à Presidência, como tanto se quer fazer crer e acabou por
virar a lenda a seu respeito que se publica ao invés dos fatos.
A complicação deixada pela renúncia de Jânio terminou com a solução
parlamentarista para dar posse a João Goulart. Era a demonstração de que os
inimigos do getulismo, tanto os que tinham como os que não tinham definido um
projeto para o país, já estavam dispostos a interromper o curso daquele período
da história com raízes no Estado Novo. Daí porque, se o resultado contrário ao
parlamentarismo no plebiscito de janeiro de 1963 foi do agrado da quase totalidade
dos políticos brasileiros, a volta ao presidencialismo com Jango na presidência
com três anos de mandato pela frente era o início de uma nova e grave crise.
Assim, durante um pouco mais de um ano, num quadro de desejos conflitantes de
mudança e movimentos de massas, as esperanças e as provocações de todos os
lados, com seus erros e mais erros de cálculo, ofereceram para eles o momento
adequado para a intervenção decisiva: o golpe militar de 1964. Terminou assim o
período em que as instituições políticas liberais, típicas da civilização,
estiveram dominadas por valores não civilizados.
Faltava, portanto, uma mudança que só seria possível a longo prazo: a
dos valores políticos majoritários da população brasileira. Nos resultados
eleitorais de 1962 eles haviam continuado a demonstrar a tendência. Mas podia
ser que depois do golpe e das cassações alguma coisa houvesse mudado. Não foi o
que indicaram os resultados das eleições em 1965 para governador no Estado da
Guanabara e em Minas Gerais. Por isso veio o AI-2 com a extinção dos partidos
políticos. E devido a este a divergência entre mentores e executores do golpe.
A definição dos rumos políticos ficaria algum tempo em suspenso.
As divergências entre os mentores do golpe, em geral civis, e os seus
executores, em geral militares, mais os movimentos de massas de 1967 e 1968
levaram estes à medida de exceção: o AI-5. A partir dele definiu-se o comando
daquele período da história. Em rigor, foi como se os militares dissessem para os
mentores do golpe que ainda não havia chegado a hora de lhes entregar as
instituições políticas. Era preciso ainda mudar os valores da sociedade e
desenvolvê-la, dar-lhe as indústrias necessárias para fazer do país a potência
historicamente esperada. Empenharam-se então em uma propaganda nacionalista,
que é algo estranho à civilização, posto que esta é inglesa e esconde a sua
origem na própria presunção de seu universalismo. Mas aquele nacionalismo
oficial foi amplamente rejeitado e contribuiu para o aniquilamento do anterior
nacionalismo popular, deixando caminho para que nos meios de comunicação de
massas, tanto nas novelas quanto nos noticiários, principalmente, o país fosse
recebendo uma educação informal em favor de valores individualistas. Sob proteção
de um governo que nem desconfiava do que protegia, o Brasil tinha quem
preparasse, finalmente, o caminho da civilização.
Embora seja possível considerar que o projeto dos militares de construir
um novo Brasil para entregá-lo ao comando da própria sociedade brasileira após
a devida abertura política tenha sido elaborado no período Médici[4],
foi no governo Geisel que começou a sua execução. Foi nele que houve a
convocação da vanguarda da já formada burguesia brasileira para a realização em
curto prazo de um plano de industrialização do país mediante endividamento
externo com o aval do governo. Recusada tal orientação por parte daquela
vanguarda, o governo assumiu os riscos do empreendimento, criou mais de
trezentas empresas estatais, certamente para mais tarde privatizá-las, e
endividou o país a prazo perdido. Na seqüência, começou a chamada abertura, que
não foi outra coisa senão a preparação do país reciclado em seus valores para
receber de volta as instituições organizadas segundo a base do modelo
constitucional de 1946. Geisel não entendia, porém, que os valores que
passariam a dominar tais instituições seriam os mais compatíveis com elas, os
mais de acordo com as suas raízes, com a sua história, que não eram raízes nem
história brasileiras, valores, portanto, completamente à parte do nacionalismo
da ditadura militar e de todos os nacionalismos. Quem sabe não terá ele
entendido isso quando nas eleições presidenciais de 1989, as primeiras diretas
depois de 1960, seu candidato, Aureliano Chaves, teve 1% dos votos?
A passagem do comando do país de volta aos seus políticos civis tinha
tudo para fugir do controle dos militares, e realmente fugiu. Em especial, no
caminho da presidência, preparada para ser de Mário Andreazza, interpôs-se
Maluf, que o venceu na convenção do PDS e conseguiu ser o seu candidato nas
eleições indiretas de 1985. Em reação a essa vitória, algumas de suas
principais lideranças, exatamente as que mais fielmente haviam seguido o
comando dos militares, provocaram uma dissidência nesse partido que levou parte
dele a compor com o PMDB para eleger Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. E com
a sua inesperada morte, evitou-se, no mínimo, um impasse político ao se aceitar
que José Sarney tomasse posse na Presidência sem ter sido eleito para ela e sem
que aquele que o fora, o próprio Tancredo, tivesse sido sequer empossado. Com
esse mandato, começava-se, enfim, a não mais se sentir a presença comandante
dos militares. Para a sua seqüência,
viria a disputa civil pelo comando do país. Mas dos valores que seriam
preponderantes e tenderiam a eleger um candidato nas eleições diretas de 1989
ainda não se sabia, ainda não se tinha certeza. Era possível saber, embora não
se pensasse isso com essa palavra, que a civilização progredira no Brasil, só
não se sabia se seria possível eleger um presidente de acordo com ela.
A Constituição outorgada em 1988 talvez respondesse que ainda não havia
chegado o momento. A julgar pelos muitos artigos escritos contra ela pelo
civilizado Roberto Campos, era um instrumento obsoleto que, segundo a sua
avaliação extremista, exagerava em atuação de governo e obstáculos à iniciativa
privada. Sem dúvida, um sinal de que estava longe de atender à sua vontade de
civilização do país. E a julgar pela empolgada avaliação do repórter
Villas-Bôas Corrêa, para quem ela teria ampliado direitos individuais e
coletivos, estava mesmo longe das expectativas dos individualistas[5].
Que não se estranhe isso: não é próprio da civilização a proteção
social. Ela começou para dar proteção e liberdade para a propriedade privada e
para a posse e o uso particulares de dinheiro num tempo em que na Inglaterra os
proprietários privados eram obrigados a assumir uma grande responsabilidade
social. Com o tempo, porém, lutaram para se livrarem dessa responsabilidade, e
conseguiram. Hoje, em qualquer canto do mundo em que estejam, seus sucessores
não pretendem voltar a tê-la e combatem todos aqueles que falam em políticas de
proteção social, sejam eles quem forem. Por isso, com base naquela
Constituição, não era bom o prognóstico para a eleição de um civilizado no ano
seguinte.
Porém, com um candidato cuja maior vantagem era a de não ter tido a sua
pobre história de prefeito de Maceió e de governador de Alagoas divulgada e,
desse modo, ter escapado do desgaste que sofreram todos os que, como ele,
haviam sido lançados na vida política pela ditadura militar, a reciclagem de
valores em favor do individualismo deu o primeiro sinal de que contribuíra para
compor um novo contingente majoritário de votos. Na diversidade de motivos que
levam uma população a votar em um candidato, eles foram decisivos,
principalmente nos grandes centros urbanos, para eleger Collor. Só não se
esperava era que este confundisse ser eleito presidente da República com tomar
o poder, não tivesse a menor noção do papel prescrito para que ele ou qualquer
outro que fosse eleito cumprisse e, além disso, pensasse que os seus mais
íntimos parceiros podiam ocupar posições estratégicas de poder na sociedade
brasileira sem reação dos seus antigos ocupantes. Isso fez com que os mesmos
que o elegeram promovessem a sua derrubada.
Ainda assim foi possível tirar um grande proveito da situação em favor
da continuação da reciclagem de valores e da sua influência no comportamento
político da população. Com a palavra de ordem “ética na política”,
principalmente, e um movimento de massas de jovens estudantes muito incentivado
pela televisão, passou-se a idéia de que o sistema era bom e de que não
prestavam eram os homens que estavam eventualmente nele tomando parte. Tudo
muito adequado a um momento em que se tinha como definitivo o fim da União
Soviética e era possível valer-se da forte repercussão que isso causava. Foi
também a hora em que Fernando Henrique Cardoso começou a tomar parte no Poder
Executivo: foi nomeado ministro da Fazenda do governo de Itamar Franco.
Sem projetos muito claros, propondo-se mais como ator para o papel
político que se dispusessem a lhe dar e orientando-se mais pelas ocasiões do
que por qualquer ideal que pudesse ter - “esqueçam o que escrevi” - Fernando
Henrique procurava distinguir-se por uma posição em favor da “democracia”,
forma de governo que para ele seria a das instituições políticas liberais, as
da civilização. Para aumentar a incoerência, fundara com outros políticos o
PSDB, partido parlamentarista que em nada prejudicaria as suas manobras em seu
primeiro mandato presidencial para obter a emenda que permitiria a sua
reeleição em pleno presidencialismo, regime que jamais atacou em favor do
parlamentarismo enquanto esteve na Presidência.
Num país endividado, de sistema monetário subordinado ao sistema do
dólar e que por isso sofria uma alta inflação, foi ele o maior beneficiário do
Plano Real, do qual não foi mentor nem comandante de sua execução. E é até
possível que até hoje nem saiba que tal plano foi a implementação de um sistema
de preços relativos para o qual se procurou a relatividade mais próxima
possível da relatividade que os preços tinham no sistema do dólar. Foi esse
plano uma tentativa inicialmente bem sucedida de enquadramento de um sistema de
preços brasileiro no sistema monetário supra-comandante e de alcance mundial
que permitiu, sempre passando por reajustes, um longo tempo de relativa
estabilidade monetária e, com isso, um longo tempo de estabilidade política.
Não fora isso, dificilmente teria conseguido manter a ordem com o crescente
desemprego que a acompanhou e com a massacrante política salarial que levou o
salário mínimo, que começou em seu governo valendo um pouco mais de 80 dólares
e estava sob a sua promessa de que atingiria o valor de 100 dólares, a chegar
em seu final, quando a inflação voltou a aumentar, valendo cerca de 55 dólares.
Quando escolhido candidato à Presidência, o foi como representante da cada
vez maior influência dos valores individualistas na população brasileira e
exatamente por não ter sofrido o desgaste que haviam sofrido os principais
lideres políticos nos anos anteriores. Por isso, mesmo não sendo líder de
massas, foi duas vezes eleito no primeiro turno por maioria absoluta de votos
válidos. Por duas vezes, portanto, o país deu o sinal de possuir já formada a
sua “maioria silenciosa”, típico sinal de estabilização das instituições
políticas liberais e de progresso da civilização. Sem dúvida, essas
instituições, quanto mais estáveis, menos movimentos de massas tendem a ter em
as suas sociedades, principalmente em seus períodos de eleição. E o contraste
entre o que foram em termos de movimento de massas as eleições dos anos de 80,
as dos anos 90 e a recente eleição presidencial fala em favor disso. Do mesmo
modo, falou em favor disso a escolha de Fernando Henrique como candidato desses
valores, posto que se dispunha muito mais a ser ator do que político. Uma vez
dominantes os valores, eles só precisam de atores fiéis às suas prescrições.
Durante os seus oito anos de governo, Fernando Henrique teve o
privilégio de contar com uma coalizão partidária que lhe deu no Congresso o
respaldo legislativo necessário para minimizar o controle sobre os seus atos.
Além disso, contou com o instituto da medida provisória, do que usou e abusou.
Não tem o direito de se queixar de obstáculos postos diante dele aqui no
Brasil. Não há dúvida: ele foi muito mais responsável pelo que aconteceu em seu
governo do que em geral o são os presidentes constitucionalmente eleitos.
Contou com liberdade para os poderes executivos de que dispunha como só
costumam ter os ditadores. Daí porque, não tendo a quem culpar por aqui, culpou
a situação internacional pelos problemas que complicaram ainda mais a vida do
país, não poucos, que uma generosa Imprensa nem sempre noticiou, e quando
noticiou nem sempre enfatizou.
Assim, ele foi o maior responsável pelo processo entreguista de
privatização de empresas estatais, pela conseqüente perda de comando nacional
em setores produtivos estratégicos, pelo oferecimento de um capitalismo sem
riscos para investidores estrangeiros na medida em que deles passou o país a
cada vez mais depender, pelo exemplar ressarcimento das empresas de energia
elétrica por meio de aumento destinado a compensar a frustração de suas
expectativas de lucro no período do “apagão”, pelo socorro paternalista aos
bancos privados, pela reforma da Previdência completamente prejudicial aos
segurados e aos contribuintes, pela confiança dada aos que pretendem impor
progressivamente no país a aceitação de contratos de trabalho à margem da CLT,
pelo sucateamento das universidades públicas, pelo estímulo dado à melhoria das
universidades particulares e à competição entre elas com a adoção do “provão”,
pela pressão contra o ensino público e gratuito em todos os níveis, pela perda
desastrosa de sua qualidade, pelo aumento da carga tributária dos assalariados
e dos autônomos, pelo desvio das finalidades da CPMF, pelas dificuldades dos
hospitais públicos, pelas muito insuficientes iniciativas de combate à
criminalidade, pelos esforços para adaptar o Brasil a uma existência de
endividamento perpétuo e por tudo que juntando-se a isso indica a ação de um
agente civilizador na Presidência da República.
Desse modo, tendo-se a história do Brasil em perspectiva, o governo
Fernando Henrique Cardoso pode ter sido a consolidação do domínio da
civilização no país. Foi para chegar a isso que combateram Getúlio ainda no
Estado Novo, que outorgaram uma Constituição em 1946, que voltaram a combater
Getúlio quando ele voltou a ser presidente pelo voto direto, que tentaram com
Jânio Quadros inverter a tendência eleitoral, que só aceitaram João Goulart em
regime parlamentarista, que foram ao golpe de estado para excluir os inimigos
políticos, que alguns protestaram quando os militares tomaram o comando da
ditadura, que outros aceitaram calados o projeto de reciclagem de valores e
usando os meios de comunicação de massa de modo não explícito fizeram valer os
seus e não os dos militares, que lutaram pela volta das eleições diretas para a
Presidência, que lutaram por uma nova Constituição, que aceitaram eleger
Fernando Collor de Mello, por ser uma das poucas alternativas de vitória contra
os candidatos de tendências opostas, que o derrubaram porque não cumpriu o
papel prescrito, embora não dito, e que, enfim, elegeram Fernando Henrique
presidente para depois o reelegeram.
Porém, as forças heterogêneas que o elegeram foram aos poucos
descobrindo que ele e o seu partido pretendiam o monopólio do comando. Todos os
que tiveram alguma esperança de alternância nesse comando e agiram para isso
foram sendo afastados. Como se pudesse ser o dono absoluto da majoritária massa
que o elegeu e fazer como bem entendesse o seu sucessor, Fernando Henrique
arvorou-se em não ser mais ator para a coalizão partidária que a repartia com
ele. Por isso, a se acreditar nas pesquisas, há muito a massa eleitoral que o
elegeu não estava mais coesa. Boa parte dela tanto o rejeitava quanto rejeitava
o seu candidato. Esperava apenas para definir a que candidato iria conceder o
seu poder decisivo. As urnas confirmaram.
Enfim, nada disso foi devido a ter elaborado um projeto próprio. Foi
porque confiou no poder dos acordos por meio dos quais submeteu o país. E a
razão de ter chamado os candidatos à sua sucessão para uma entrevista pode
muito bem ter sido para lhes mostrar os enormes compromissos que ele deixa para
serem cumpridos e tornam inviável qualquer tentativa de mudança dos rumos do
país em curto prazo. Fernando Henrique não fez o seu sucessor. Mas, de fato,
pouco lhe importa. Há muito ele entregou essa sucessão aos gerentes do
capitalismo internacional. Em todo esse processo, ele preferiu ser ator para os
descendentes diretos dos autores da civilização original.
Resumo:
O artigo põe em confronto dois significados da
palavra “civilização” e toma um deles para indicar valores políticos de origem
inglesa cuja história no Brasil vem desde algumas influências subordinadas
tanto no Império quanto nos primeiros períodos republicanos, passando por
organização, lutas e reciclagem em seu favor até o seu momento de maior
realização nos oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso.
Palavras-chave: civilização, individualismo,
reciclagem, valores.
[1]Mill, Stuart, On
Liberty, Great Books, London, Enciclopædia Britannica, 1952, v. 43, pg. 311
[2]Polanyi, Karl, A Grande Transformação,
tradução de Fanny Wrobel, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1980, pg. 23
[3]O Brasil passou todo o período imperial sem ter um
Código Civil e levou cerca de um quarto de século no período republicano para
tê-lo elaborado e sancionado. Instituição chave da civilização, posto que trata
dos seus principais objetos: “os direitos e as obrigações de ordem privada
concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações”, ainda está por ter um
estudo da história das tentativas de fazê-lo e dos seus impedimentos.
[4]Ver a dissertação de mestrado de Aloysio Carvalho: O
Governo Médici e o Projeto de Distensão Política. Rio de Janeiro. IUPERJ.
Mímeo. 1989.
[5]”A Constituição acabou com a cara do povo, como
define o seu presidente, confirmando grandes avanços sociais, ampliando
direitos individuais e coletivos, ousando, criando, inovando”. Apresentação de
Villas-Bôas Corrêa in: Nova Constituição Brasileira, Rio de janeiro,
Gráfica JB, 1988.
* Mestre em Ciência Política, Doutor
em Economia, Professor de Ciência Política da UERJ e da UFRJ.