OS
ÍDOLOS DE BACON E ALGUMA SOCIOLOGIA JURÍDICA DO COTIDIANO
Marcelo Cavalcante *
“Por onde
passo deixo rastro, deito fama, / desarrumo toda a trama, / desacato o
satanás.” Lero-lero. Edu Lobo
A preocupação
basilar de Francis Bacon, no Novum
Organon - obra sempre citada entre as que fundam a ciência moderna -, se
traduz na necessidade de se exorcizar os ídolos, para que o conhecimento
científico se desenvolva sob critérios rigorosos de controle, previsão e causa
eficiente. A análise baconiana tipifica os enganos da razão como sendo “de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a
mente humana: Ídolos da Tribo, Ídolos da Caverna, Ídolos do Foro e Ídolos do
Teatro”. (BACON, 1973: 27).
É neste
sentido que considera:
“Os maiores embaraços e extravagâncias do
intelecto provêm da obtusidade, da incompetência e das falácias dos sentidos. E
isso ocorre de tal forma que as coisas que afetam os sentidos preponderam sobre
as que, mesmo não o afetando de imediato, são mais importantes. Por isso, a
observação não ultrapassa os aspectos visíveis das coisas, sendo exígua ou nula
a observação das invisíveis” (BACON,1973: 31).
Em seguida,
prescreve a necessidade de desalojar os ídolos: “todos devem ser abandonados e abjurados (...) (como) espécie de expiação e purgação da mente”
(Bacon, 1973: 43/44).
Ao contrário da proposta de Bacon de exorcizar os “ídolas” através do
rigor científico, nos dias presentes, a ciência está sendo utilizada para a
produção dos mesmos, uma vez que a sacralidade do signo “ciência” é
constantemente utilizada, pelos homens - que lançam mão de artifícios
ideológicos, via manipulação da realidade - como instrumento de legitimação do
poder e manutenção de hegemonia política. Nesta quadra se concretiza a idéia de
que “quanto maior é o poder, maior é a
tentação de implementá-lo pelo caminho mais curto: a violência. Isso significa
amputar da pessoa a liberdade” (BARTHOLO JR. 1988: 106).
Falando sobre estratégias da aquisição do “poder simbólico”, Bourdieu
observa que o que está estruturalmente em jogo no “campo intelectual” é a luta
pelo “monopólio da definição legítima”.
Ou seja, a luta pelo direito de “legitimamente” falar em nome da “verdade
verdadeira” e “mesmo as mais negativas, podem ser utilizadas estrategicamente em
função dos interesses materiais e também simbólicos do seu portador”
(BOURDIEU, 1989: 112).
Como observa o
filósofo Burtt, autor de As bases
metafísicas da ciência moderna, a exemplo dos demais ramos da ciência, a
produção e execução das normas jurídicas não se constituem em exceção, não
escapando ao:
“Estranho dualismo entre a teoria e a prática
esse de nós, modernos – os elétrons são as únicas coisas reais, mas, no
entanto, por meios da ciência aplicada, o mundo dos elétrons foi reduzido como
nunca a um meio para a realização de fins ideais! O mundo natural é, afinal,
mais o lar e o teatro da mente do que seu tirano invisível, e o homem,
expressando as funções da razão e do espírito, reúne em um só foco muito mais
do saber e da fertilidade criativa do universo do que todo o objeto espaço-temporal
de sua contemplação ansiosa” (BURTT, 1983: 253).
Despida do seu
ideário humanístico, concretamente ocorre que:
“A racionalidade científica transforma-se em
ideologia logo que se impõe como a única forma de racionalidade: trata-se então
duma miragem mantida a serviço de opções políticas que essa miragem serve
simultaneamente para justificar e dissimular. O dogma da racionalidade
científica é uma mistificação” (ROQUEPLO, 1979: 154).
A ciência, sem
sombra de dúvidas, demonstrou ser o mais eficaz método de interferência na
natureza e na realidade. Sob o preceito de causa eficiente, tem demonstrado
inesgotável potencial de solução de problemas e apresentado exponencial
expansão em todos os campos do interesse humano. Entretanto, não consegue
tornar a vida dos homens mais digna, mais feliz ou mais justa, pois sob o seu
período de hegemonia detectamos grandes sofrimentos, privações e iniqüidades,
sob o signo da produção da morte e do pavor. Isso se dá na medida em que esta
estrutura científico-tecnológica se submete aos imperativos políticos e por
eles é condicionada. Desta forma, o enorme potencial de eficácia e eficiência
da produção científico-tecnológica está condicionado a interesses que
preconizam uma eficiência precisa e absoluta no desenvolvimento de armas de
destruição, ao mesmo tempo que prescreve a ineficiência e ineficácia da
execução indiscriminada e pontual das normas legais.
Há que se
observar algumas cândidas e escancaradas razões para a crise do sistema
judiciário brasileiro, como observa um decano do jornalismo brasileiro:
“Quando o judiciário não funciona bem num país,
muito mais também não funciona o direito. Em particular, é bem plausível
imaginar que o grau de aperfeiçoamento judiciário de um país tenha relação com
seu nível de corrupção. (...) Seja como for, independentemente de indicadores
estatísticos, é conhecimento geral que o sistema judiciário brasileiro é lento,
funciona melhor para os ricos do que para os pobres, é mais azeitado para o
poder econômico do que para o comum dos mortais e é pouco exposto ao escrutínio
público (...) um pouquinho de racionalidade administrativa, quando aplicada,
opera maravilhas. Mas, na média geral brasileira, o judiciário é evidentemente
afetado por ineficiências que só favorecem a impunidade daqueles envolvidos com
a corrupção e com a evasão tributária. O assunto, que vai muito além de casos
tópicos como o do TRT-SP, decerto mereceria mais atenção” (ABRAMO, 2000: p. A3).
O objetivo
ético-moral das leis está ancorado na idéia de justiça. De certa forma, neste
arcabouço repousa as justificativas da existência do aparato jurídico, mesmo
porque, o próprio estado moderno “... tem
o papel específico de legitimar a ordem existente, de assegurar a lealdade
pública ao sistema, de representar simbolicamente o interesse universal, em
contraposição ao particular” (SOUZA, 2001: 12). Por outro lado,
internamente, no bojo da estrutura judiciária, ocorrem desdobramentos em sua
ação, que desvirtuam os fundamentos e mesmo a razão de ser da idéia original de
justiça.
Grosso modo,
podemos distinguir a existência de uma estrutura judiciária presa a uma
dualidade de interesses. Sob um aspecto, refém dos interesses do poder, do
estado e de classe; e de outro, buscando garantir os preceitos da cidadania, a
lisura das normas pactuadas e estabelecidas. Sob a inspiração do primeiro
aspecto, temos um aparato judiciário de recorte técnico-operativo, voltado a
meios e fins de objetividade meramente factual. De outro, temos uma busca de
justiça, e/ou solução das lides, sob inspiração de igualdade e equidade, ou
seja, um conjunto de normas que, apesar de elaborada por homens e interesses
determinados, após em vigor, ganha autonomia de aplicação indistinta.
O
que ocorre é que a lógica interna do aparato judiciário, em seu desenrolar
cotidiano, acaba por se impor aos que nele trabalham (juízes, juristas,
advogados, universidades, serventuários da justiça) e sedimenta na sociedade
uma idéia de que “isso é assim mesmo”.
1 - Falseamento da regra
Tomemos, como
analogia ao campo jurídico, o jogo de futebol e vejamos até onde é possível
distorcer suas regras, sem descaracterizá-lo.
Pode ocorrer,
e decerto esta hipótese é bem mais corriqueira do que desejaríamos acreditar,
que em determinado jogo, o árbitro tenha sido subornado e que atue como um
“soprador de apito”, cometendo “erros” propositais sempre em favor de uma
determinada equipe. Neste caso, apesar dos veementes e inflamados protesto dos
torcedores da equipe prejudicada, não se pode negar que houve efetivamente uma
partida de futebol.
Outra hipótese
também corriqueira e nefasta para o esporte é quando determinados jogadores são
subornados para facilitar as ações dos adversários. Nestes casos, a platéia
assiste indignada o goleiro de uma agremiação falhar bisonhamente, defensores
serem facilmente vencidos e atacantes errarem jogadas primárias, tudo de forma
inexplicável. Neste caso, apesar da reação inconformada dos torcedores, do
quebra-quebra após o jogo e mesmo de agressões generalizadas, não se pode negar
que houve efetivamente uma partida de futebol.
Imaginemos,
ainda, uma partida na qual outros tipos de violações foram cometidas. Por
exemplo, uma das equipes tem as medidas de suas traves estreitadas para as
dimensões mínimas de meio metro quadrado e a adversária tem as suas ampliadas
para vinte metros de largura por quatro de altura; os atletas da equipe já
privilegiada, durante o jogo, podem, a qualquer momento conduzir a bola com as
mãos, enquanto os da equipe adversária só podem usar a perna esquerda para
contatá-la; além do que, os integrantes da equipe podem usar apito e arbitrar o
jogo, cabendo aos adversários apenas acatar as decisões de tais marcações; e,
finalmente, a equipe privilegiada pode entram em campo com dezoito jogadores
enquanto a outra só pode inscrever oito jogadores, sendo que dois deles têm que
ser necessariamente paraplégicos. Neste caso extremado, além dos absurdos
hipotéticos propostos, não se poderia afirmar que houve um jogo de futebol.
Decerto que
esta última hipótese formulada será, muito justamente, considerada uma
extravagância do autor, uma vez que é totalmente destituída de propósito, mas
absurdos “similares” ocorrem na esfera do direito internacional e também no
campo jurídico brasileiro. Este absurdo ganha foros de legitimidade e se
consagra enquanto procedimento encontrável.
Sob o aspecto
filosófico da justiça, a total ausência de regras contém mais justiça que o
estabelecimento de regras que não são cumpridas por segmentos a ela submetidos.
Saber que existo numa sociedade onde impera a lei do mais forte me dá mais
tranqüilidade que os enganos de que vivo numa sociedade submetida a regras, mas
que estas são corriqueiramente falseadas. Mais perverso que a barbárie pura e
simples, é o ludíbrio que facilita as iniqüidades dos mais fortes. A falsa
proteção desarma a possibilidade do mais fraco desenvolver mecanismos de
auto-defesa, artifícios de sobrevivência.
2 - Direitos e não deveres
Imaginemos um
grupo de homens que resolve criar um novo tipo de jogo. Para tanto elegem um
líder e a ele é delegado o poder de criar as regras. Este líder, apesar de sua
condição, também participará do jogo, e desta forma, ao poder decidir as
regras, estará automaticamente com imensas vantagens sobre os demais. Ocorre
que após tudo acertado e as regras criadas e estabelecidas, exatamente o líder,
pelo seu desempenho pífio no jogo, resolve não cumprir as regras estabelecidas,
aliás, regras criadas e estabelecidas por ele. Deste nosso exemplo fictício,
algumas coisas ficam cristalinas. Primeiramente, constatamos que o líder não
tinha os predicados mínimos para exercer a liderança. Em segundo lugar, nos
convencemos que se trata de um incompetente e finalmente, que possui sérios
desvios de caráter, ao tentar burlar as regras que ele mesmo criou por
delegação de todos. Este caso imaginado bem serve de exemplo para o que vem
ocorrendo no Brasil com relação pífio desempenho do poder público em quase
todas as áreas.
O Estado de
Direito pressupõe um pacto onde todos, indistinta e compulsoriamente, se
submetem às leis. Apesar de existir um didatismo que estabelece uma hierarquia
entre elas, na qual a Constituição está situada no topo, o espírito da
legalidade nos ensina que as leis e normas instituídas de acordo com as
condições e formalidades pactuadas devem ser observadas, respeitadas, exigidas,
defendidas e cumpridas. Não se pode manter um edifício tão complexo – as
relações sociais – deixando-se que prevaleça a possibilidade de arbítrio, por
quem quer que seja, ou de privilégio entre determinados diplomas legais. Sob
esta perspectiva, lei é lei e deve ser cumprida. Ponto final. Caso isto não
seja observado com rigor, inviabiliza-se o princípio da igualdade de direitos
no interior de uma sociedade. Não é admissível ou tolerável a aceitação da
possibilidade da existência de leis que são rigorosamente cumpridas ao lado de
outras que são encaradas com permissividades e omissões, leis que “não pegam”,
e ainda outras que não passam da condição de “letras mortas”. Estas últimas são
leis que ninguém questiona a legitimidade e legalidade, mas que simplesmente
não são cumpridas e quem quiser que se queixe ao bispo.
Este estado
deplorável de coisas se apresenta deveras agudo na medida em que internaliza um
duplo caráter de degradação – subjetivo e objetivo – nas relações sociais. Uma
lei desrespeitada desmoraliza a fonte do poder e as demais.
De todos os
entes que compõem uma sociedade moderna, o governo, por força de suas próprias
atribuições legais, é o que menos tem justificativas, sob todos os aspectos,
para deixar de cumprir as leis. É o poder constituído quem debate, aprova, cria
e executa as leis no país. É o Estado o único detentor do monopólio legal da
violência legítima. Diante do argumentado e lembrando a questão inicial, onde
encontrar justificativas ou perdão para aqueles que autorizados pela sociedade
para criar leis que regulem as relações sociais, não as cumprem?
Apesar de
impotente, a sociedade observa desconfiada e mesmo enojada, a desenvoltura com
que o poder público, assenhoreado de parruda arrogância, descumpre as leis por
ele mesmo criadas e aprovadas.
O Brasil é um
país no qual, muitas vezes, juizes e desembargadores não cumprem os prazos
processuais estabelecidos em lei. Esta prática vem sendo incorporada ao
cotidiano forense como uma “coisa natural”. Os prazos judiciais estão
capitulados em lei e, portanto, deveriam ser rigorosamente cumpridos. Quando
questionados por raras e tímidas representações, os magistrados alegam excesso
de trabalho. O paradoxal é que, em casos idênticos, o cidadão comum não pode
argüir a mesma justificativa para se eximir de cumprir determinadas leis. Ai
dele se fizer a mesma alegação com o fito de não atender a uma determinação
judicial.
Não há como
olhar o nosso sistema judiciário e não esbarrar com as suas imensas e
flagrantes iniqüidades. O sistema judiciário brasileiro prima por uma absurda e
inaceitável promoção da desigualdade legal entre iguais. Corroboram para tanto,
a morosidade, o desaparelhamento do judiciário como um todo, a ineficiência
programada das promotorias e defensorias públicas e os inumeráveis e
inenarráveis jeitinhos que propiciam a tendenciosa aplicação da lei em sua
extensão legítima, para a sociedade como um todo.
O país tem
assistido perplexo um verdadeiro festival de espertezas, verdadeiros atentados
ao espírito de justiça e às normas sociais. Estas espertezas jurídicas podem
ser justificadas pela existência de dispositivos que as permitem, mas não
convencem ninguém. Ao ver o juiz Nicolau conseguir uma prisão domiciliar sob a
escusa de motivos de saúde, o brasileiro fica a imaginar quantos milhares de
outros presos pobres estão doentes sem ter o mesmo benefício. Aliás, não é
segredo para ninguém que temos uma quantidade enorme de apenados que, apesar de
já terem cumprido as suas penas, continuam detidos em função da falta de um
papel, de um mero trâmite burocrático.
Fernando
Henrique Cardoso, ex-presidente da república, em recente pronunciamento,
reputou o sistema judiciário como inadequado e ineficiente. Os congressistas
não se fartam de tecer críticas duras a este sistema, chegando o senador Pedro
Simon a afirmar que a perdurar este estado de coisas, o país será inviável.
Ministros, desembargadores e juízes reconhecem que o sistema necessita de
urgentes reformulações.
Disso tudo, se
depreende que existe uma unanimidade sobre a ineficiência, ineficácia e dos
males que o sistema judiciário vigente tem acarretado para a sociedade em
geral. Se todos estão acordes de que este sistema é absurdo, por que ele
perdura?
ABRAMO,
Cláudio Weber. Judiciário e corrupção,
Folha de S. Paulo, 12/11/2000, p. A3.
BACON, F. Novum
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BARTHOLO JR., Roberto S. “Da Vida Provisória”, In. Ciência
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HUSSEINI, Marta G., “Controle social do judiciário”. In Acorda Brasil, 2002. Disponível em www.acordabrasil.com.br
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crítica da ciência (Org. Jorge Dias de Deus), Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1979.
SOUZA, Carlos Eduardo Baesse, O capitalismo contemporâneo: o papel do Estado e o problema das crises.
Resumo:
O presente texto procura lançar subsídios para a discussão da crise e
reforma do Judiciário sob a perspectiva de uma maior eficiência em seu
desempenho junto ao usuário, entendendo que tal questão não se esgota na
modificação de leis.
Palavras-chave:
Estado, ciência e tecnologia, judiciário, justiça, poder.
* Marcelo Cavalcante é graduado em Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), M. Sc. (COPPE/UFRJ) e pesquisador da FESO; publicou os livros: Saga dos perplexos, Sol rente e Antologia dos esquecidos.