DRAMATURGIA DE PAULO DE OLIVEIRA VIEIRA
A PARTIR DAS OBRAS POÉTICAS DE JUVENILLE PEREIRA
MÚSICAS DE EDUARDO ROSA
OUVE-SE
UMA MÚSICA QUE TOMA CONTA DE TODO O AMBIENTE. COMEÇAM
A SER PROJETADOS VÁRIOS SLIDES ALUSIVOS AO PERÍODO 1930/35.
VOZES
1934!
VASCO
LEVA A TAÇA DO CAMPEONATO!
EM 16
DE JULHO É PROMULGADA A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA!
17 DE
JULHO...
VIVA
GETÚLIO!
PELA VIA INDIRETA, O DOUTOR GETÚLIO DORNELLES VARGAS É
RECONDUZIDO À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA!
ERA A
ANTE-VÉSPERA DO GOLPE DE 37!
O
SANEAMENTO CHEGA OU NÃO CHEGA NA BAIXADA FLUMINENSE?
HITLER,
MUSSOLINI, SALAZAR... NA EUROPA SOPRAVAM OS
VENTOS DO AUTORITARISMO!
HITLER
SURGE PARA SALVAR A EUROPA!
NAZISTA!
NAZISTA!
NO
BRASIL, OS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS FAZEM GREVE PELA PRIMEIRA
VEZ!
SÃO
DEZENOVE HORAS NA CAPITAL DA REPÚBLICA!
É
CRIADA A HORA DO BRASIL!
ACONTECE
O 1º CONGRESSO INTEGRALISTA!
DEUS,
PÁTRIA E FAMÍLIA!
FASCISTAS!
FASCISTAS! SÃO TODOS UNS FASCISTAS!
CONFLITO
NA PRAÇA TIRADENTES!
POETAS, ARTISTAS, OPERÁRIOS...
OS
COMUNISTAS ESTÃO SENDO PERSEGUIDOS!
E A
POESIA SOCIAL?!
É
ANUNCIADA A FALÊNCIA DA ARTE POÉTICA!
CESSAM
OS SLIDES.
NILLE
Ah! ah! ah! ah! Eu, poeta?! Pobre “Nille”! Fazer poesia, justamente agora, que os nossos homens de
letras anunciam a falência da arte poética? Com franqueza! Que besteira! Pobre
Nille... Que juízo farão de mim os literatos tan-tan-tan dos nossos dias!?
VOZES
-É
BOM RECOLHER O QUE RESTA...
-O
QUE HOUVE?
-ESTÃO
RECOLHENDO TUDO.
-E
AGORA?
-VÃO
QUEIMAR TUDO. SALVE O QUE PUDER...
-SÃO
ORDENS?...
-A
POLÍCIA POLÍTICA ESTÁ FAZENDO A BUSCA...
-ESTÃO
PROIBINDO QUALQUER MANIFESTAÇÃO?...
-ESTE
É UM LIVRO VERMELHO, CAMARADA!...
VOZ
EM
JANEIRO, NO EXPLOSIVO ANO DE 1935, JUVENILLE PEREIRA PUBLICA “PAIOL”. TRATA-SE
DE UM POETA TOTALMENTE DESCONHECIDO EM NOSSOS DIAS. EM NENHUMA COLETÂNEA
JUVENILLE PEREIRA É CITADO. AS BIBLIOTECAS NÃO POSSUEM UM ÚNICO EXEMPLAR DO “PAIOL”.
OS ESTUDIOSOS DO PENSAMENTO SOCIAL, POLÍTICO E LITERÁRIO DESCONHECEM A
EXISTÊNCIA DESTE POETA PROLETÁRIO.
CENA I: ANTES
O
poeta em outro plano.
NILLE
Leitor, antes de escrever “Paiol”, pensei muito.
Não seria justo que eu pensasse nos prós e contras como pensei, ao escrever um
livro de versos no momento em que os tais homens de letras anunciam a falência
da arte poética? E ainda mais, ao declarar que não há, não houve, nem haverá
nunca falência da arte poética? Quanta cousa não te invadiria a cabeça,
nesse momento, hein leitor? Quantos medalhões não percorreriam o teu cérebro?
Ah! Leitor. Agora vejamos aqui uma cousa:
Que foi que eu fiz? Queres saber? Contar-te-ei já. Abri bem os olhos. Tomei
algumas doses de coragem. E comecei a querer saber por que o Brasil anda tão
mal, se dizem que isto aqui é uma grande terra. Por que o povo brasileiro é tão
analfabeto. Por que anda sempre cheio de bichos, sempre doente, sempre molengo.
Por que devíamos e devemos tudo. Por que... Por que... Por que... ?
CENA II: IDENTIDADE
Em
outro plano, Uma mulher e um homem. Ela está sentada e ele apoia a cabeça no
colo dela. Ouve-se uma música.
MULHER
É Homem! Filho do Homem. Nascido no tempo de
aquarius, mugiram os bois, e no oco do mundo ecoou a verdade. É Homem em sangue
trazido - disseram mil anjos baixados à Terra. Filho da carne é o que és.
Narciso sem asas hás de ser. Em cismas perenes teu peito ferido manchado em ais
manterás. Louvado seja Deus!
HOMEM, que se levanta do colo da mulher.
Sou homem? O filho do homem em sangue trazido do
ventre, em aquarius nascido?(pausa) Massificado é o que sou no
mundo selvagem da hora que passa. Incógnito vivo. Feito por homem em mulher,
padronizaram-me a dor, o sangue, o canto, a morte, o coito... Meu nome?
Matrícula 1.194.472. Sou sigla. Fizeram-me sigla. Sigla ou símbolo quem sabe?(pausa)
Meu nome é João, meu nome é Antônio, meu nome é Silva, meu nome é José,
meu nome é Cantú, meu nome é...
MULHER, que neste momento está distante.
Meu nome é Joana, meu nome é Margarida, meu nome é
Maria, meu nome é Silva, meu nome é
Ana...
NILLE , que está num outro plano.
Meu nome é Nille, apenas Nille... Surgi de espasmos
sem dores. Nasci sem alma liquidificada que foi em cativeiros sociais
extremos... Sombra já fui. Nem fui, nem sei se fui... Nasci assim... Não nasci
assim, nem sei enfim...(pausa) Melancólicos sons invadem-me
a alma. Mãos de crianças erguem-se aos ventos. Mulheres sem lábios e homens sem
face em espirais de sangue e em catacumbas erguidas entre ais e orquestrações
sinistras espicaçam os céus... O Homem ou os lobos sociais? A cruz e a espada?
Símbolos... Contradições a proclamar: fome, miséria, desamores...
logo em seguida.
Milênios trouxeram-me ao mundo atômico de hoje. Fui
água, fui pedra, serpente, pecado original, venial... Pecado social afinal,
jamais homem integral. Filho da máquina e da impostura a tudo, nem céus nem
terras formam o meu habitat...Filho dos dias de hoje que sou, vivo a vida das
máquinas. Sou máquina infernal sepulcral. Tenho a explosão social. Filhos?
Mato-os antes da morte chegar. Não tenho dias, nem sonhos, nem noites, nem
amanhecer...nem primaveras tenho... São máquinas os meus frutos outonais. Meu
fim? As minhas horas são cifras. Cifras e máquinas a minha mulher. Máquinas e
cifras são meu pai, minha mãe, meu irmão... Meus ventos? Poluição. Minha sorte?
Devastação. Meu norte? Degradação. Meus signos? Ontem a revolução industrial,
hoje a atômica desintegração...Angustiados e esquizofrênicos os homens da minha
civilização...
CENA III: AS COLOSSAIS GRANDEZAS DO
BRASIL
Ouve-se
uma canção patriótica. O Homem e a Mulher iniciam um passeio cênico que deve
sugerir um hasteamento de bandeira. A canção cessa. O passeio cênico também.
Silêncio.
HOMEM, com um diploma nas mãos.
Saí do ginásio!...
NILLE, para o público.
Saí do ginásio com a cabeça cheia de besteiras...
cheia de grandezas... cheia de
mentiras... Saí do ginásio, crendo que o Brasil era um colosso. Saí do
ginásio, crendo que o brasileiro era um vadio, um indolente, um
preguiçoso. E um dia, depois que fiquei
grande, tomei um trem, peguei num lápis e num bloco de papel e fui ver de perto
as colossais grandezas do Brasil...E vi que o Brasil é um colosso mesmo... em fome, em miséria, em
opressão. E que o Brasil falado no ginásio não existiu.
Neste
momento, num outro plano inicia-se um paralelo de diálogos.
HOMEM, que está carregando uma mala.
Existe, sim, desde 1500, um montão de terras que
não pertencem ao brasileiro, e um
montão de escravos, de oprimidos, de famintos,
de miseráveis que cruzam o Brasil de norte a sul.
NILLE, para o público.
E conforme o bicho do estrangeiro ia correndo – o
trem – nas linhas do estrangeiro, movido pelo combustível do estrangeiro, nos
campos empenhados ao estrangeiro, fui vendo as colossais grandezas do Brasil.
HOMEM, para a Mulher.
E vi terras e mais terras. E vi rios e mais rios. E
vi matas e matas. E vi caça e lenha à beça. E vi um montão de camponeses sem
trabalho, apodrecendo em vida, porque as terras são dos banqueiros
estrangeiros, estão hipotecadas ao estrangeiro, e não podem ser exploradas pelo
brasileiro por conveniência dos latifundistas, dos exploradores feudalistas, e
dos internacionais imperialistas. E vi um montão de miseráveis morrendo de
fome, enquanto o peixe e a caça apodrecem bem perto da colônia. E vi um montão
de terras no abandono, de um coronel qualquer, sem que ninguém pudesse nelas
trabalhar... porque é privada a propriedade e está na lei feudal assegurada. E
vi colonos doentes, empesteados, febrís e opilados, morrendo de fome e sede,
sem recursos, porque não tiveram trabalho durante o ano, e não puderam pagar o
boticário da fazenda. E vi mulheres de barriga à boca, descalças, quase nuas,
morando no rancho porco da colônia e tendo filhos em cima do chão duro. E vi
meninos e meninas revestidos de pelancas, andar léguas e léguas, no calcanha,
porque o gado paga imposto ao transitar na estrada do governo.
NILLE
Ainda não havia corrido um terço do Brasil e já
estava com o caderno cheio, a cabeça vazia, as pernas tremendo, e a cara hipotecada,
sem que eu nunca tivesse visto um real das negociatas brasileiras feitas com os
banqueiros do estrangeiro. Mas, as colossais grandezas do Brasil, aprendidas no
ginásio do ministro, entupiram-me a cabeça. E, mais uma vez voltei à faina para
esclarecer melhor a minha estupidez. E outra vez, de lápis e papel em punho,
peguei um navio (do estrangeiro) para admirar outras grandezas do Brasil tão
decantadas no ginásio do ministro.
HOMEM
Fui ver de perto os flagelados brasileiros. E vi
também, no norte do Brasil, negros e índios trabalhar para americanos,
ingleses, padres, e outras organizações semi-feudais, sem nada receber por tão
humilhante escravidão. E vi os desgraçados serem massacrados ao não suportar
mais tão miserável opressão. E só assim, mais uma vez compreendi as colossais
grandezas do Brasil tão decantadas pelos magnatas.
NILLE
Já não havia mais lugar no meu bloco para notas. E
já o meu lápis não escrevia. E já a minha cabeça não pensava. E já uma revolta
eu alimentava. E vim para a cidade para ver se não via mais tanta maldição.
CENA IV: SOCIEDADE CARNAVALESCA
CLAMOR DOS DESGRAÇADOS
Ouve-se
ao longe um bater de surdo e outros instrumentos de percussão em ritmo
carnavalesco. Deve se empunhar um estandarte que consta “SOCIEDADE CARNAVALESCA
CLAMOR DOS DESGRAÇADOS”.
MULHER / HOMEM
Corri os quatro cantos da cidade.
Cruzei as ruas do Rio.
E vi homens
maltrapilhos
- quase nus -
Conversando com mocinhas
- mal
vestidas -
na
imundície dos taiobas.
E soube
que eles eram os fabricantes
dos
tecidos que enfeitam as mulheres ricas,
os homens
de bem
e os
filhos dessa gente pulha
que
maneja a indústria no Brasil.
Corri os
quatro cantos da cidade.
Cruzei as
ruas do Rio.
E vi
homens descalços,
de chapéu
sujo e esburacado,
de cabelo
grande e barba por fazer.
E soube
que eles eram sapateiros,
barbeiros,
chapeleiros...
Todos
escravos dessa gente pulha
que
maneja a exploração nacional.
Corri os
quatro cantos da cidade.
Cruzei as
ruas do Rio.
E vi
dentro das ruas da cidade,
ferreiros,
cozinheiros,
pedreiros,
jornaleiros,
doutores,
arquitetos,
marceneiros,
carpinteiros,
engenheiros,
enfim,
o
batalhão dos explorados.
E vi que
todos reclamam direitos,
pão,
trabalho,
assistência,
medicação.
Corri os
quatro cantos da cidade.
Cruzei as
ruas do Rio.
E na gare
da Central
encontrei colonos deitados sobre a plataforma
da
Empresa do Governo.
E soube
que eles haviam trocado
a miséria dos campos
pela
miséria da oficina.
Corri os
quatro cantos da cidade.
Cruzei as
ruas do Rio.
E vi que
dois milhões de oprimidos
trabalham
noite e dia para os dois mil patriotas
que
manejam o governo do Brasil.
E vi que
a massa de famintos está em toda parte.
E vi e
ouvi o “clamor dos desgraçados”.
E vi que
os milhões de proletários
já não
suportam mais a humilhação,
a
maldição,
a exploração.
Corri os
quatro cantos da cidade.
Cruzei as
ruas do Rio.
E só
assim eu pude ver e ouvir,
de perto,
“o clamor
dos desgraçados”...
que corre
os quatro cantos da cidade.
Neste momento os sons dos instrumentos misturam-se
com as vozes dos intérpretes num crescendo, repetindo mais uma vez a última
estrofe da poesia até que termina o passeio cênico com um clamor.
HOMEM, que silenciosamente se distancia e diz com
amargura.
Mas no Brasil a desgraça está em toda parte... E na
cidade vi operários maltrapilhos, roubados, assalariados, escravizados, sem
assistência médica, sem assistência jurídica, sem assistência social, sem
direitos, sem saúde, sem casa, sem comida, sem nada. E vi proletárias parir nas
oficinas. E vi menores trabalhar durante 12 horas. E vi a polícia-política
espancar trabalhadores porque pediam mais salário. E vi honestos marinheiros,
honestos militares e honestos soldados, subalternos, curvarem-se perante superior bem desonesto. E então,
depois que conheci as colossais grandezas do Brasil, em fome, em miséria, em
opressão, nunca mais olhei para o edifício do ginásio, nunca mais compreendi o
13 de Maio, nunca mais acreditei na independência do Brasil.
NILLE, num outro plano.
Ah! Leitor. E sabes por que farias tais
comentários? E sabes por que ficarias duvidando da tua convicção como eu
fiquei? É porque não acreditas como eu nos tais homens de letras dos nossos
dias. É porque sabes como é triste esta situação.
CENA V:
EM DIREÇÃO À FÁBRICA.
Ouve-se uma música ao longe. Penumbra. Entra a Mulher
que caminha calmamente e canta.
Noite
ainda.
Escuridão.
Horror.
E oiço o
ranger fúnebre da marcha!...
E o bando
proletário marcha em direção à fábrica.
Noite
ainda.
Escuridão.
Horror.
E moças e
meninas arrepiam-se,
de quando
em quando,
pelo
cortar do frio!...
E o bando
proletário marcha em direção à fábrica.
E o bando
proletário marcha em funeral!...
Noite
ainda.
Escuridão.
Horror.
E tudo
passa pela mente do explorado,
que,
de manhã,
parte em
direção à fábrica,
para
morrer chibateado pela escravidão feudal-burguesa!...
Noite
ainda.
Escuridão.
Horror.
E oiço o
ranger fúnebre da marcha
que o
bando proletário toca,
de manhã,
quando,
em
funeral,
marcha em
direção à fábrica!...
O espaço já está iluminado. Ouve-se uma sirene de
fábrica e sons de máquina.
NILLE
1º ato da
tragédia proletária denominada fábrica. Hora da entrada! Todos em forma.
Os atores formam uma máquina.
HOMEM
E alguns, porque chegaram muito cedo, estão
sentados na calçada... moram lá no fim do mundo, prá lá de Machambomba!... E o trem, o bonde, ou a barca, obriga-os a
chegar com antecedência de quase uma
hora... E eles, mal dormidos depois da viagem infame do carro “santa casa” da
Central, aproveitam um pouco... e sentados na calçada dormem, apoiados nos
braços esqueléticos... E confundem-se com a sujeira da sarjeta!...
MULHER
Pobres diabos! Pobres trabalhadores, explorados e
oprimidos!...
HOMEM
Mas, o guante rebentará um dia, e então!?...
Ouve-se novamente a sirene.
NILLE
Bate o segundo. E nem mais um fica sentado.
HOMEM
Todos de pé...
MULHER
E um de cada vez entrega a chapa ao apontador da
empresa, tipo ruim, mesquinho, tipo padrão do pequeno burguês, que nada faz,
mas que explora e intriga como um real inquisidor.
NILLE
E o bando proletário entrou. Pum!... – fechou-se a
porta. Na hora exata.
HOMEM
Nem mais nem menos um minuto. Nem há esperas nem
desculpas. É ordem expressa da gerência.
MULHER
E o maganão da empresa, orgulhoso de ser justo,
fazendo cumprir as suas ordens miseráveis, empina o ventre num tom de
fidalguia.
NILLE
2º ato da tragédia proletária... Resume-se na vida
interna da indústria, nas suas ordens superiores...
MULHER
Nas horas para tudo, nas ordens para tudo, nas
vezes para tudo. E até na vez do proletário ir à latrina. E não é permitido
conversar, cuspir, fumar, bocejar, fazer nada que contrarie o mestre e o
contra-mestre. Só pode trabalhar feito
uma besta. E, ai do pobrezinho que não apronta a tarefa regular...
HOMEM
Rua. Olho da rua, tenha 20 ou 30 anos de bons
serviços. “E apele para quem quiser, porque o proletário não tem direitos nem
sabe o que quer”.
MULHER
Brada o gerente em altas vozes.
NILLE
3º ato da tragédia proletária: hora do almoço!
HOMEM
Que coisa horrível ver-se o almoço do proletário!
Burgueses miseráveis! Exploradores vis que fazem do homem que trabalha e que
produz uma vítima da fome, da tísica, da sorte e de tudo que maldiz! Depois do
apito regular que marca a hora do almoço, a turma de oprimidos abandona os
postos de trabalho. E cada um apanha um embrulho de jornal, uma latinha, um
troço qualquer. E todos sentam-se distantes uns dos outros. E todos sentados na
sarjeta.
NILLE
E este é o ato em que a burguesia chama “hora
santa”, hora sagrada do almoço...
MULHER
Quarenta minutos transcorreram. E terminada a hora
do almoço, o bando proletário volta à luta até a hora da saída.
NILLE
4º ato da tragédia: 16 horas.
Ouve-se novamente a sirene.
HOMEM
Hora de abandonar o matadouro. Agitam-se todos num
vai e vem danado. E meninos, meninas, velhos, velhas, mulheres, homens e
garotos, pulam, correm, saltam e aprestam-se depressa. É que o trem parte às 4
e 16; a barca às 4 e 20; o bonde às 5. E todos saem aos grupos, aos gritos, aos
pulos, aos empurrões. E todos saem maltrapilhos, cabeludos, sujos, descalços,
quase nus. Meia hora depois só a pequena burguesia permanece no escritório, com
o maganão da empresa, bufando de ter usurpado muito o braço do homem que
trabalha e que produz.
NILLE
Cai o pano. Fábrica, tragédia social que o século
marcou. (pausa) E daí em diante fui vendo a vida do brasileiro, fui me
tornando um desgraçado. Fui perdendo os amigos velhos. Fiz-me poeta. E poeta
doido – dizem eles. Acabemos com o tan-tan-tan ridículo e incompreensível de
quase todos esses homens de letras. E está curada a tal falência da arte
poética. Falidos estão eles! Falido está o regime que os alimenta! Falida está
a arte de classe que eles querem sustentar. Mas dizer-se que a arte poética
está falida? São bem corajosos os imortais de nossa época!
CENA VI:
A CASA
HOMEM
Depois de abandonar o matadouro vão todos prá
casa...
MULHER
Casa? Não, o proletário não tem casa! Quatro paus
fincados no terreiro, cobertos de capim, de barro e terra, sem portas, sem
janelas, sem ar, sem luz, sem água e sem latrina não merecem o título de casa.
Isso é covil, degredo, prisão. Qualquer coisa. Menos casa.
HOMEM
Mas, os cafetões que o exploram, os politiqueiros
de todos os matizes, os piratas de casaca, nacionalistas, patrioteiros, cornos
convencidos, beleguins inveterados e gozadores da usurpação social, estes sim,
têm casa. Mas o homem que trabalha, e que se vende na oficina, no campo, na
“vida”, na movimentação da máquina burguesa, por um salário que não deixa
sobras para comprar um pão inteiro, este não tem casa...
NILLE
Dar-se o título de casa ao barracão de querosene,
ao pardieiro da favela, ao barracão de pau-a-pique da serra do Bangú, no
inferno, no cafundó...
HOMEM
Casa? Não. Eles – os maganões da exploração – eles
sim, têm casa de morar, de banho, de estudo, de inverno, de verão, de comer, de
dormir e até de Detenção. Mas o proletário?
MULHER, que canta.
Tem covil,
tapera,
um troço qualquer
feito de quatro paus fincados no terreiro
e cobertos de capim
de barro e terra,
sem portas,
sem janelas,
sem ar,
sem luz,
sem água,
sem latrina,
sem nada.
CENA VII
: COMPANHEIROS.
NILLE, num outro plano.
Maria, por que casar com João, se eles não te
deixam ter vinho, nem pão, nem mesa, nem lar?
MULHER, num outro plano com o HOMEM.
João, por que casar, se não tens pão, nem vinho,
nem mesa, nem lar? ...
NILLE, ainda em outro plano.
Viva a rosa, a flor, o mar, a dor, o amor. E por
que não os olhos fundos, profundos, infindos de Rosa-Maria, infância-rosa-flor
em lágrimas, em dor, sem mar, nem amor? E por que não as mãos puras, impuras, futuras,
maternal-angelicais das prostitutas dissolutas pelos que vivem a fome, a
guerra, o estupro, a execração, vivandeiros imundos, infecundos, nauseabundos?
Viva a rosa-mãe-parida, a rosa-mãe-solteira, a rosa-mãe-sarjeta dos becos,
favelas, cortiços, cantinas, amadas, desamadas, pretas ou não!
HOMEM, para a MULHER.
Há rosas em meus olhos e lírios nos teus. Há roxos
sofridos em meu ser e liláses agostos em teu ser. Amar-te é o meu pecado eterno
até morrer, e viver o verde da esperança o teu maior sofrer. Vivendo viveremos
temporais sem fim. Amar-te é viver outonos infinitos os meus. Amar-me é
renascer em mim lírios e rosas que trazes nos olhos que hoje dizes meus.
MULHER
Ah! Caminheiro, onde estão os teus pés?
HOMEM
Perdi-os num dia de agosto.
MULHER
E as tuas mãos, onde tens?
HOMEM
Às meretrizes em prantos, num outono de ais, dei-as
num ontem qualquer.
MULHER
Onde estão os teus olhos?
HOMEM
Cancelei-os quando os chicotes raciais fundiram o
norte e o sul, o leste e o oeste em pontos cardeais que no amanhã chamar-se-ão
rosa-carne, rosa-sangue, rosa-homem, rosa-rosa.
MULHER
Onde estão os teus ouvidos?
HOMEM
Foram estourados pelos orquestradores sinistros de
ruídos marciais.
MULHER
E o teu coração, o que dele fizeste?
HOMEM
Entreguei-o aos lobos para ser devorado nos festins
mercenários do sexo.
MULHER
E os teus bens? Onde estão?
HOMEM
Levaram-nos em nome da lei. E com eles angústias
sustentam.
MULHER
Do que te alimentas?
HOMEM
Não sei se somente de paz, não sei se somente de
amor.
MULHER
Quisera-te em mim, amado, desamado, renegado...
HOMEM
Ah! Falei-lhe em amor, deu-me os olhos. Falei-lhe
em amor, deu-me os lábios, os seios, o ventre. Entrelaçamo-nos, e caminhando
sobre pedras, mares e vulcões, sem promessas de fidelidade até a morte
afirmamos não nos separarmos enquanto nos amarmos.
MULHER
E o que será do amor? Surgiste no outono e as tuas
mãos sensuais prometiam amor-sonho, amor-carne, amor-amor. Em desejos
naufraguei, em idades me perdi e em primaveras despertei...
HOMEM
Mulher, vem comigo. Há lama em teus pés e poeira
nos meus. Há dor em meu peito e gemidos no teu. Levanta os teus braços, bem
junto dos meus. Dá-me de ti o que resta. Dar-te-ei o que sobra de mim.
Caminhemos. Assim, passo a passo, ombro a ombro. Em frente. Em busca de sol, de
noites de lua, de mel, de estrelas. Sendo apenas isso, isso apenas, eu e tu, tu
e eu, companheiros.
NILLE, junto às suas recordações.
As coisas do mundo passaram por mim... No tempo do
mundo, as coisas do mundo passaram por mim. Por mim passaram as coisas do
mundo, meus olhos, meus pés, meu sofrer... Paz que no mundo não fui.
CENA
VIII: O DISCURSO
O HOMEM se prepara para um discurso.
HOMEM
Como seremos recebidos pela classe dominante? A classe dominante faz
tudo, aliás, tudo arcaico, tudo velho, tudo rotineiro...
MULHER
Por isso que não acreditam que os da nossa classe
sejam capazes de produzir alguma coisa.
HOMEM
Mas muito em breve tudo irá acabar. Novas formas
trarão vida, independência, liberdade...
MULHER
Quem dará ouvidos a tais verdades? Você sabe que só
eles podem emitir idéias... E que as nossas não são recebidas com simpatia por
estes monopolizadores.
HOMEM
Por que não podemos dar um suspiro sem o Tio Sam e
o John Bull dar consentimento? Por que a “brasileira” mata tanta gente? Por
que?...
MULHER
Porque tudo resume-se na exploração do homem pelo
homem!
HOMEM
E a sociedade atual retrata-se ali, na zona da
prostituição! E ali vê-se, pois, representada, essa sociedade corrompida. (pausa)
Hoje, pelo máximo de desigualdade a que chegamos, uma nova sociedade se
delineia nos quatro cantos da terra. Por ela sabe-se tudo ou quase tudo que
fizeram nossos antepassados. Por ela sabemos como viveram os nossos algozes. E
como sofreram os nossos semelhantes. Não se concebe que, enquanto a população
sofre todas as amarguras impostas por uma minoria escorchante, os mandantes
sonhem, gozem a vida, escandalizem-se, prestigiem-se, vendam-se, embriaguem-se
e depois nos contem histórias insuportáveis e canalhíssimas ! E se ousam ainda
nos contar tais imoralidades, incompreensíveis até para os que morrem de fome
por não ter um pedaço de pão, não é justo que esses mandantes sejam condenados
por excesso de cretinice e cinismo?
NILLE, que está num outro plano, também se
prepara para um discurso.
Mas isto não quer dizer que a arte poética esteja
falida. Isto quer dizer que as imagens literárias, depois de terem tido a sua
época, estão sendo revividas pelos nossos atuais artistas. Isto quer dizer que
a arte poética sofre o sinal dos tempos, justamente por estar monopolizada por
uma classe. Isto quer dizer, somente, que falidos estão os exibidores desses
roídos modelos artísticos. Logo, não procede a tão anunciada morte da arte em
geral, e principalmente da arte poética. Procede a certeza de que teremos uma
arte revolucionária, dinâmica, social, que exprima em linhas retas o desespero
que nos assoberba, nossa vontade de produzir, nossa consciência social, e acima
de tudo, como somos oprimidos por uma classe parasitária. Quem fez no Brasil, em
nossos dias, poesia social capaz de refletir o dinamismo que o século alimenta?
NILLE, continua com seu discurso.
Não mais
podemos tolerar que as belezas do pecado original continuem estupidificando os
nossos descendentes. E então, o único caminho a seguir, seria matar a arte
poética em nome da higiene e da moral dos nossos filhos. Precisará o leitor de mais detalhes para
compreender a razão da tal “falência da arte poética?” E a arte não viveu
sempre assim? E a arte não foi sempre o reflexo da luta entre opressores e
oprimidos? Fui me tornando um desgraçado. Fui me tornando um mau patriota.
Tornei-me ateu. E é isso que temos: miséria. E é preciso que penses como eu
penso. Que sintas como eu sinto. Que sofras como eu sofro. Que escorraces, como
eu escorraço os mandantes.... A arte nada tem a ver com esses cínicos. A arte
tomará rumo. A arte continuará sempre. Porque a arte, como a evolução, não
retrocede. Avança sempre. E muito em breve teremos homens que façam viver a
verdadeira arte dos nossos dias. Falemos claro às massas, e teremos despertada
a poética nos seus mais variados aspectos. E ela continuará tendo o fulgor que
sempre teve. E que terá sempre. “A arte é linguagem, e quem fala quer ser
compreendido”.
HOMEM, que agora está já discursando.
E cada um de nós que sofre, que sente, e que já não
tem mais tempo para perder poderá acreditar no que dizem esses governantes?
Poderá aceitar o que escrevem, se a desigualdade social contemporânea priva-nos
de tudo o que eles dizem? Poderá aceitar as suas lamúrias, as suas descrições
gosmentas, os seus amores piegas e as idéias desses parasitas? Poderá aceitar,
sem repulsa, a descrição que fazem da felicidade, da vida, e de tudo que não
sentimos, nessa terra de analfabetismo, de fome, de casa de cômodos, de tuberculose,
de miséria, de dor, de famintos e de flagelados?
HOMEM, que continua inflamando o seu discurso.
Os nossos sentimentos. As nossas aspirações de
milhões de analfabetos, de famintos, e de desgraçados que já não suportam mais
os melosos acordes desses mandantes enquanto a chibata canta nas nossas costas
de oprimidos, ao roncar da máquina e da nossa consciência de classe.(pausa)
MULHER, que está distante.
Parte um grito, uma onda de revolta, uma terrível
maldição que já amedronta a burguesia...
HOMEM, inflamando mais o seu discurso.
E esse grito parte do batalhão social, do batalhão
dos operários, dos explorados, dos
oprimidos e famintos. E amanhã, meretrizes e famintos, famintos e meretrizes,
sem nenhum direito nesse prostíbulo atual, onde a classe dos exploradores goza
prazerosamente a vida, despertarão,... E todos passarão a ter direitos e
deveres... desaparecerão as classes... desaparecerão os famintos...(pausa)
No Brasil, enquanto apodrece arroz, feijão, banha, batata, carne, frutas, nos grandes
armazéns locais, e que enquanto os magnatas de São Paulo e do governo, mandam
queimar milhares de sacas de café prá especular melhor, valorizar mais rápido e
melhor gozar da exploração, milhares de homens são fuzilados pela polícia dos
governadores porque atacam feiras, trapiches e mercados, para arranjar o que
comer, depois de desonrados da cabeça aos pés pelo senhor explorador...
(ouvem-se pisadas fortes da chegada da polícia. O
homem continua discursando intercaladamente com NILLE)
NILLE
No céu, e com o seu olho bem vermelho, o sol inunda
a terra de calor, de vida e de energia. Põe em tudo uma tonalidade linda,
admirável, bela. E a massa levanta-se de um maldito pesadelo! E a multidão
quebra o silêncio: ABAIXO A GUERRA! E tudo
resplandece. E as bandeiras rubras tremulam no espaço. E tudo é vida,
agitação, fulgor. SÓ ESTÁ TREMENDO O EXPLORADOR. SÓ ESTÁ NERVOSO O FEUDALISTA.
SÓ RUGE DE RAIVA O IMPERIALISTA. A ‘internacional’ estoura. E até a
natureza se inquieta. E a multidão palpita! ABAIXO O IMPERIALISMO QUE NOS TRAZ
PRESOS À OPRESSÃO! E cada vez mais tudo se contorce numa ânsia de chegar ao
fim, de alcançar o sol, de libertar a terra, de engrandecer o homem, de se
precipitar na luta. ABAIXO A REAÇÃO! ABAIXO O INTEGRALISMO, OS OPRESSORES E TODOS
OS FARSANTES! E tudo canta, e tudo
vibra, e o sol torna-se rubro. Mais rubro. Bem rubro. (neste momento ouvem-se disparos
de tiros. Silêncio. O HOMEM é atingido) Eis quando de um covil imundo
parte um tiro. E outro, logo depois. E
mais outro. E outro, ainda. A multidão defende-se. Todos correm.
(O Homem já está caído, morto)
MULHER, que vem correndo.
O que há? O que houve? (ela olha para o homem estendido)
Malditos! Traidores! Assassinos! Assassinos! Morra a fome, a guerra, a paz
armada, os hermafroditas sociais, o lava-pés, a salvação da alma, os desamados,
a ira, a gula, o ódio, a fúria... Trabalhadores firmes! Abaixo o imperialismo!
Abaixo a reação! Abaixo o integralismo! Trabalhador, adiante! Abaixo a
exploração!... (junto ao Homem tentando levantá-lo) Não sei se os teus braços
enfermos me podem abraçar, se destruídos ficaram desde quando nasceste. Não sei
se os teus olhos sem cor divisam amor, se ungidos em fogo o foram no instante
fatal do nascer. Não sei se encontras amor num selvagem viver em que todos são
coisas em noites sem luas e sem amanhecer...
NILLE
E, leitor... Debruça-te na atual desagregação do
mundo! E o que verás?!...
Ouve-se ao longe uma música. Uma imensa lua
vermelha é iluminada. A Mulher realiza um ritual fúnebre para o morto.
MULHER, numa prece de revolta.
Não creio em Deus! Não creio em nada que suplante a
natureza! Não creio nesse fantasma sobrenatural!... Nesse ídolo de barro...
nesse pai que assassinou o filho e consentiu que Abrahão – o cáften de Sara –
prostituísse virgens tal como diz a Bíblia! Não! Não creio em Deus! Não creio
que haja um ser supremo à nossa semelhança retratado, que conduza esses milhões
de mundos e dite leis à soberana natureza! Não creio que houvesse um construtor
de homens!... E muito menos creio que, num simples sopro do ídolo de barro, nos
fosse concedida a vida!... Não creio que um pai não castigasse os filhos
miseráveis que exploram e vendem o suor dos seus irmãos, se esse mesmo pai vingou-se de Adão e espezinhou Caim!... Não! Não creio que
haja um ser supremo capaz de proteger o renegado Hitler!... Não creio que
milhões de homens (filhos do mesmo pai) morram de fome na sarjeta enquanto os
demais filhos gozam, e gozam em nome desse pai, desse fantasma sobrenatural!...
Não! Não creio em Deus! Creio somente em mim... ínfimo grão da majestosa
Natureza! Creio somente na força da matéria! Creio somente nesta vida que é
matéria animada e inanimada! Creio, somente, na sábia lei da evolução. E nada
mais existe além! E Deus não passa de um fantasma que a todos espanta com suas
penas infernais, mas que fora incapaz de assassinar o seu mais trágico rival: a
luta entre as classes sociais! Não! Não creio em Deus! Não creio em nada que
suplante a Natureza!
(A lua vermelha fica ainda iluminada. Aos poucos
tudo vai ficando na penumbra)
NILLE, num outro plano.
Foi fazendo tais observações que escrevi Paiol.
Mesmo porque, se eu não pertenço aos colégios artísticos, se eu afirmo que a
arte poética não faliu, não está em falência, nem falirá nunca, não seria justo
que eu procurasse contribuir para esclarecer a nossa situação de dúvida? O que
vejo e o que sinto? Foi o que pretendi fazer com a poesia, quando a pintura, a
escultura, o romance, a sociedade e até as formas de governo mudam de rumo
pelas necessidades e determinações econômicas. Foi o que pretendi fazer com
ela, procurando dar-lhe rumo capaz de refletir o desespero dessa maioria que
sofre. (silêncio)
Não posso mais contar o que sofre o oprimido! Não
posso mais contar o terror espalhado... Não posso mais contar a sorte dos que
pedem pão... E a sorte dos que mostram o que é a guerra! Posso contar, somente,
que os presídios estão cheios, as ruas enlutadas, a liberdade engaiolada e a
massa operária assassinada!... E nada mais posso contar. E nada mais... porque
se não eu também perco a vida!...
(um slide é projetado com a frase: NILLE,
Rio, 1935. Acendem-se as luzes)
Abril de 2002