LITERATURA
E HISTÓRIA, GÊNEROS DISCURSIVOS E POLIFONIA EM ESTAÇÃO DAS CHUVAS, JOSÉ
EDUARDO AGUALUSA
Iza Quelhas*
I
O objetivo deste
artigo1 é o de problematizar algumas relações
entre literatura e história construídas a partir das estratégias discursivas
que compõem a narrativa de Estação das
chuvas, de José Eduardo Agualusa. Tais estratégias dramatizam as
possibilidades da memória discursiva e os saberes acionados pelos
interdiscursos que afetam o sujeito e seus processos de significação.
No atual cenário de
ausência quase total de informações, com credibilidade e legitimidade, sobre os
acontecimentos sociais e políticos que mobilizaram uma história recente de
Angola e dos demais países de língua portuguesa no território africano, a
produção literária, ao articular a função e força do texto literário como
denúncia, ocupou o lugar da verdade histórica, tendência também presente nas
atuais leituras dos textos literários africanos. O próprio Agualusa admitiu,
numa de suas entrevistas em circulação na Internet,
em seu site pessoal, haver recebido inúmeras informações e dados sobre a
personagem principal do romance em estudo, tais leitores asseguravam haver
conhecido de fato, na vida real, a poeta Lídia do Carmo. Os leitores
identificaram as marcas da verdade histórica na ficção sobrepondo-as à verdade
poética da literatura, e reconheceram Lídia do Carmo Ferreira como uma
personagem não ficcional. Tal leitura, por sua vez, é amplamente explorada
pelos escritores contemporâneos, inclusive na literatura brasileira e na
literatura portuguesa, trazendo à tona algumas questões decisivas entre as
literaturas e os grupos sociais, obliteradas nos estudos literários atuais.
Retomar, de forma criativa o estudo do ethos
de cada escritor, os projetos ético e estético nos seus entrelaçamentos, pode
ser uma via interessante de acesso aos processos ficcionais, idéias e formas de
ver, de ler e de se posicionar no mundo, portanto, construir e disseminar
valores.
Inserido entre os
escritores mais lidos da produção literária angolana na atualidade, o autor
privilegia um certo tom testemunhal, presente desde as primeiras publicações da
literatura africana produzida por gerações anteriores a sua. O que foi
evidência de engajamento dos escritores nas lutas pela independência torna-se uma
estratégia para imprimir verossimilhança as suas narrativas, e também um
dispositivo eficaz para dissimular as fronteiras entre a literatura e a
história em tempos neoliberais.
Esclareço que a partir
do texto ficcional selecionado, privilegio, portanto, os seguintes tópicos:
a)
a
utilização de gêneros discursivos e suas vozes, a materialidade de textos e
seus formatos que viabilizam a imagem da voz, não apenas de personagens, mas
dos próprios gêneros;
b)
a
dramática situação do leitor contemporâneo que, munido de variadas informações
e amplos recursos, confronta-se com fluxos de sentidos que deslizam entre o
ficcional e o histórico, evidenciando-se as estratégias discursivas, o construto.
Pode-se afirmar que os
sentidos da narrativa romanesca produzem-se mesmo na arena de discursos (BAKHTIN, 1997), ao focalizarem as formas de
engendramento e produção da verdade poética e suas linhas de interseção com a
produção da verdade histórica. Se a fala viva de um enunciado é sempre
acompanhado de uma atitude responsiva
ativa, o gênero discursivo do romance implica uma atitude responsiva ativa de ação
retardada (BAKHTIN, 1997: 290-291), potencialmente eficaz na construção das
memórias e identidades sociais. Os leitores confrontam-se com o que se mostra e
esconde, desafiando pela urgência da inserção dos sujeitos leitores nas
questões contemporâneas uma produção de sentidos que reinvente as fronteiras do
verdadeiro e do não-verdadeiro, a partir da compreensão dos processos de
verossimilhança.
II
José Eduardo Agualusa,
desde 1989, com a publicação de A conjura,
apresentou uma produção ficcional perpassada pela reflexão sobre um passado
colonial presentificado na historiografia contemporânea. Nascido na cidade de
Huambo, planalto central de Angola, é jornalista e residiu no Brasil, na cidade
do Rio de Janeiro, durante algum tempo: "José Eduardo Agualusa nasceu na cidade do Huambo, planalto central de
Angola, a 13 de dezembro de 1960. Estudou agronomia e silvicultura em Lisboa"
(SALGADO, 2000).
Com Estação das chuvas, a ênfase recai nos
embates entre gêneros e discursos, geralmente ocultos por práticas
autoritárias. A protagonista, Lídia do Carmo Ferreira, poeta e intelectual,
participa da construção de um sonho, um projeto de nação e sua independência. A
imagem da nação é apresentada através da narração das vozes das personagens,
inclusive a do narrador. Este funciona como uma personagem que se move entre
temporalidades e espacialidades distintas, à cata de informações — textos,
entrevistas, citações de poemas, trechos de diários, recortes de jornais etc. —
que constróem e ao mesmo tempo revelam a fragilidade de sua onipotência: são os
textos, as memórias discursivas que dão carne
e osso à personagem Lídia. Ao deslocar o eixo e suas possibilidades de
construção de sentidos para uma multiplicidade de autores e seus enunciados, a
instância autoral focaliza o outro em suas manifestações linguajeiras, trazendo
também para a representação do eu que
narra uma alteridade internalizada na imagem do híbrido no mesmo.
A imagem do híbrido em
Mikhail Bakhtin está ligada à de alteridade, vislumbrada pelo filósofo nos
diálogos socráticos como uma das raízes do romance, também presente nos estudos
sobre os gêneros. Sobre a língua e o processo de aprendizagem, afirma Bakhtin:
"A língua materna — a composição de
seu léxico e sua estrutura gramatical —, não a aprendemos nos dicionários e nas
gramáticas, nós a adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e
reproduzimos durante a comunicação verbal viva que se efetua com os indivíduos
que nos rodeiam" (BAKHTIN, 1997: 301). A linguagem verbal e as
relações interpessoais destacam a concepção de um outro que não está apenas no
outro, no diferente, mas sim no próprio sujeito categorizado gramaticalmente
como um eu. Se a literatura é uma
forma de pensar a realidade, desconstruí-la, compreendê-la mesmo nas suas zonas
de sombra e opacidade, pode-se afirmar que Agualusa, em Estação das chuvas, concretiza um "tipo especial de linguagem que permite ver as coisas que estão
obscurecidas em outros tipos de discursos" (BRAIT, 1999: 22). Uma das
formas de ver é o que sobressai como estratégia: as vozes que funcionam na
narrativa como um "princípio
arquitetônico da prosa romanesca" (Idem), o múltiplo e o diverso.
III
Desde o subtítulo
romance de Estação das chuvas,
focaliza-se o deslizamento de sentidos das identidades, literárias ou não, o
que potencializa as vozes na narrativa. No Sumário, destacam-se os seguintes
títulos: Agradecimentos; O princípio: A poesia; A busca; O exílio; O dia
eterno; A euforia; O medo; A fúria; O fim. Cada uma dessas partes é composta
por capítulos numerados, mas sem títulos, de extensão irregular. Em
Agradecimentos, o autor reconhece que o livro "deve muito a alguns amigos,
que me apoiaram durante o trabalho de pesquisa e documentação, ou se dispuseram
a partilhar comigo as suas memórias", seguido de uma lista de nomes de
poetas, romancistas, professores, enfim, intelectuais e personagens que atuaram
com variadas intensidades nas lutas pela independência de Angola. O livro é
dedicado "em memória de Mário Pinto de Andrade", também apresentado
como personagem no romance. É significativa a referência a este escritor que
produziu e organizou textos importantes para a divulgação do que se produzia em
língua portuguesa no espaço africano. No prefácio de uma antologia organizada
pelo também conhecido como Mário de Andrade, destaco o seguinte trecho,
significativo para a compreensão do que se pensava ao trazer ao conhecimento do
grande público textos de autores africanos ainda desconhecidos naquele momento:
“Os critérios das nossas antologias têm variado em função
do objetivo que nos propusemos atingir, no momento da sua elaboração. Data de
1953 o aparecimento em Lisboa do primeiro Caderno de Poesia Negra de Expressão
Portuguesa, organizado em colaboração com Francisco José Tenreiro. Nele figuram
seis poetas: Alda do Espírito Santo e Francisco José Tenreiro (S. Tomé),
Agostinho Neto, António Jacinto e Viriato da Cruz (Angola) e Noémia de Sousa
(Moçambique). Justamente aqueles que no contexto da época representavam a
vanguarda literária desses países, tanto pelo conteúdo dos seus poemas como
pelo papel desempenhado nos movimentos culturais de caráter nacionalista. (...)
Este material, procedente de fontes dispersas e de inéditos que nos foram
comunicados, sofreu naturalmente o manuseio subjetivo de uma leitura, na
permanente pesquisa dos tesouros de essência que a verdadeira poesia nos
revela” (ANDRADE,
1977: 1-2).
As palavras de Mário
de Andrade explicitam procedimentos de análise, escolha de textos e fontes,
recortes, enfim, o quê e o como parte significativa da produção
literária africana de língua portuguesa foi publicado. É evidente que Agualusa,
ao elaborar seu romance em estudo neste artigo, também explicita o percurso de
construção narrativa, valendo-se da personagem que narra para trazer ao
primeiro plano a importância do discurso
sobre o discurso do outro. Em Estação
das chuvas, é narrado um episódio
em que Lídia e Mário de Andrade divergem ideologicamente. A citação compõe um
pouco da importância das práticas discursivas na construção das memórias e
justifica a extensão do trecho em destaque:
“Começou tudo com uma grande discussão sobre a negritude. Mário Pinto de
Andrade pretendia incluir alguns poemas de Lídia numa coletânea de poesia negra
de expressão portuguesa. (...) Lídia, porém, não sentia que fosse negra a sua
poesia.— É um equívoco — tentou explicar a Mário de Andrade. Aquilo que eu
escrevo não tem especialmente a ver com o mundo negro. Tem a ver com o meu
mundo, que é tanto negro quanto branco. E sobretudo é o meu mundo! Se quiseres
incluir trabalhos meus muda o nome da antologia para "Caderno de Poetas
Negros", mas ainda assim será um disparate, como fazer um "Caderno de
Poetas Altos" ou uma "Coletânea de Poesias das Mulheres Obesas" (...)
Lídia era uma mulher de coração atento e meticuloso. Pesou as palavras antes de
responder: — No fundo, — disse — a verdade é que eu não me identifico com a
negritude. Compreendo a negritude, estou solidária com os negros do mundo
inteiro e gosto muito dos poemas de Senghor e dos contos de Diop, mas sinto que
o nosso universo é outro. Tu, como eu ou o Viriato da Cruz, todos nós
pertencemos a uma outra África; àquela mesma África que habita também nas
Antilhas, no Brasil, em Cabo Verde ou em São Tomé, uma mistura de África
profunda e da velha Europa colonial. Pretender o contrário é uma fraude”
(AGUALUSA, 2000: 80-81).
A referência a
Gilberto Freire, assim como à recepção problemática de suas idéias pelos
intelectuais africanos, ocorrida também por parte da comunidade intelectual
brasileira, num momento em que a questão da identidade nacional cobrava
atitudes mais definidas e menos retóricas em relação às práticas coloniais,
perfaz também um cenário ideológico e textual, onde a cor da pele categoriza até
mesmo a poesia, necessidade histórica de inserir a especificidade das etnias na
abstração própria do universal. A personagem Lídia, imagem da intelectual
mestiça não pela cor da pele mas por sua formação histórica produtora também de
subjetividades, vincula-se aos mundos em confronto, ao mesmo tempo em que
enfrenta embates outros com aqueles que supostamente seriam os seus parceiros e
interlocutores. No romance, os capítulos desenham o percurso de uma busca,
tanto do narrador em direção a Lídia, intelectual e ativista nos movimentos
pela independência, quanto da busca empreendida por Lídia de um sentido para a
sua própria vida ou para o seu texto?
Na fisionomia gráfica
e de potencialidade semântica do romance, destaco o fato de os títulos de
capítulos serem seguidos, via de regra, por uma ou duas epígrafes compostas por
trechos de discursos de políticos, artigos publicados em periódicos, fragmentos
de poemas, diários ou correspondência particular de algumas das personagens.
Também se insere a transcrição de uma frase inscrita numa parede de prisão, da
cela J, Estabelecimento Prisional de São Paulo, Luanda, 1977: "Eu poderia...!"(AGUALUSA, 2000:
215), seguida de um trecho de carta escrita por Lídia Ferreira a Mário de
Andrade, em Lisboa, 30 de abril de 1981: "Não sei tudo. Houve coisas que eu nunca quis saber" (Idem).
No capítulo 4, do
romance em estudo, coloca-se em termos temáticos e estratégicos os laços
possíveis entre a literatura e a história, o que evoca um tempo em que eram
"considerados ramos da mesma árvore
do saber" (HUTCHEON, 1991: 141-162). No entanto, nesse tempo
buscava-se formas de interpretar as experiências, mantido o objetivo ou
propósito didático de dar sentido e nobreza ao homem. Tais objetivos não se
mantêm no romance de Agualusa; pelo contrário, ao problematizar as práticas que
legitimam as identidades do histórico e do literário também questiona a noção
de centro, de origem e de estabilidade nas produções e interpretações
produzidas por sujeitos nas formas de saber e poder instituídas.
Nas palavras do
narrador, Lídia "gostava de contar
histórias de sua infância. Uma impressionou-me muito porque não era possível.
Mais tarde espantei-me ao descobrir várias referências a esse caso nos jornais
da época" (AGUALUSA, 2000: 41) Uma dessas histórias apresenta, como
acontecimentos e não produtos da imaginação, uma seqüência de mulheres
assassinadas, com seus corpos "horrivelmente mutilados", como
registrou o repórter d' A Província de Angola. O detalhe é que "os corpos estavam cortados rente ao umbigo"
(AGUALUSA, 2000: 42). De início, as suspeitas de autoria recaem sobre a gente
negra, reforçadas pelas "práticas canibalescas, as selvagens orgias dos
pretos do mato", depois deslocam-se para um lorde inglês, como na citação:
“Conforme 'Vitorino Espírito Santo, em artigo posterior a esse, escrevia
que 'um crime tão refinado, tão imaginoso, tão cheio de mistério e sedução, não
pode ser honestamente imputado ao vulgo. O povo, o preto bárbaro, mata com a
simplicidade das bestas simples: desfere a pancada, crava a navalha e foge.
(...) Um crime desta natureza requer a ciência de um homem instruído e a
sensibilidade de um lorde inglês. Eu conheço o nome do culpado e aqui o revelo
— Jack, o Estripador” (AGUALUSA, 2000: 43).
A ironia latente nos
recortes que especulam a autoria dos crimes evidencia a discriminação racial
como um processo de subestimação do outro até mesmo na realização de crimes,
considerados de certa forma sofisticados demais para o povo, o preto bárbaro. Nas lembranças de Lídia,
o suposto verdadeiro assassino apareceria mais tarde. Era um pescador de
sereias:
“... matava-as e a seguir cortava-lhes a aparência humana,
que depois enterrava em grandes valas comuns. As caudas, rejeitadas pela
população de Luanda, salgava-as, vendi-as a fubeiros [comerciantes do mato] do
interior, os quais as revendiam depois como se fossem de bacalhau. O homem foi
solto ao fim de poucas semanas. Lídia ouviu dizer que ele fugiu de Luanda
escondido no porão de uma traineira e que se instalou depois em Moçâmedes, onde
montou uma agência funerária” (AGUALUSA, 2000: 44).
O capítulo seguinte
assinala a data de julho de 1994, e um local, parte do percurso do narrador em
busca de referências sobre Lídia, em Porto Alexandre, em Tombwa, extremo sul de
Angola. Nessa data, o narrador apresenta um encontro com aquele que poderia ser
o protagonista da história contada por Lídia e por ele confirmada em periódicos
locais. O diálogo entre o narrador e o homem, de "mãos magras" e
"gestos cansados": "O
homem levantou as mãos num gesto de desalento — O que é que você quer?
Cortaram-nas para fazer lenha. A tarde caía rápida sobre o deserto. Olhando
pela porta, lá para fora, viam-se as sombras a crescer. Um cão passou rosnando,
de cabeça baixa (seria o medo?). 'Já tive bastante dinheiro', continuou o
homem. 'Fui pescador.' Riu-se:— Pescava sereias."(AGUALUSA, 2000:
45-46).
O processo de busca
coloca o narrador num lugar em que as sombras crescem: as fronteiras do
verossímil? Os limites tênues que perpassam continuamente a literatura, a
história e a vida? Na parte intitulada "A busca", Lídia afirma o
seguinte: "Já não sei quem fui, quem
sou. Já não sei o quanto de mim é, não a vida, mas aquilo que da vida em algum
livro eu li" (AGUALUSA, 2000: 67). Se o discurso é efeito de sentidos entre
locutores (ORLANDI, 1999: 21), pode-se compreender a dimensão das
subjetividades em seus processos de identificação. Ao percorrer o fio da busca
o narrador, em trânsito, traz ao plano dos acontecimentos episódios que
transitam entre mundos diferentes, o fabular
e o real, testemunhando com seus
olhos capazes de reconhecer o valor das sombras e a relatividade da verdade
instituída.
As várias vozes, os
vários registros e suas fontes textuais, no romance tornam atuais as reflexões
de Barthes e Rifaterre, citados por Linda Hutcheon: "... a intertextualidade substitui o relacionamento autor-texto, que foi
contestado por um relacionamento entre o leitor e o texto, que situa o locus do
sentido textual dentro da história do próprio discurso" (HUTCHEON,
1991: 166).
Em Estação das chuvas, a intertextualidade
é uma estratégia decisiva para o efeito de pluralidade de vozes e
temporalidades distintas. Tal estratégia também elucida as práticas narrativas
na figura de um narrador em trânsito, sempre em busca de algo que parece ser o
próprio motor da história e da própria linguagem. Nas palavras de Eni P.
Orlandi, "a condição da linguagem é
a incompletude. Nem sujeitos nem sentidos estão completos, já feitos,
constituídos definitivamente. (...) Essa incompletude atesta a abertura do simbólico,
pois a falta é também o lugar do possível" (ORLANDI, 1999: 52).
A condição da
linguagem — a incompletude — na literatura, principalmente, problematiza não
apenas as práticas de interpretação mas a concepção de leitor e suas leituras.
IV
Uma das afirmações
recorrentes nos estudos teóricos pós-modernos é a de que tanto a literatura e a
história são construtos lingüísticos, "altamente
convencionalizados em suas formas narrativas", assim como nada
transparentes e marcadamente intertextuais (HUTCHEON, 1991: 141). Desde os
estudos de Mikhail Bakhtin, destacou-se a importância do estudo de textos na
área das ciências humanas. Na visão de Bakhtin, as ciências humanas não se
referem a "um objeto mudo ou a um
fenômeno natural, referem-se ao homem em sua especificidade. O homem tem a
especificidade sempre (falar), ou seja,
de criar um texto (ainda que potencial). Quando o homem é estudado fora do
texto e independentemente do texto, já não se trata de ciências humanas (mas de
anatomia, de fisiologia humanas etc.)" (BAKHTIN, 1997: 334). A função do narrador, em
Estação das chuvas, evidencia o quanto as nossas memórias discursivas,
textuais, formam verdades, conceitos e instituem a legitimação de saberes,
crenças, certezas, dúvidas e toda a possibilidade de produção de sentidos que
sustentam a condição humana. A novidade é que esse narrador dá corpo a um verbo
que aglutina pólos importantes de significação do romance: o ato de buscar e o percurso daquele que, ao
mostrar como construiu a narrativa e
as personagens, desloca o olhar dos leitores em direção a um foco em processo
de deslizamento constante. Tal processo projeta a imagem de leitores como
posições em determinadas conjunturas sociais, o que é amplamente estudado pelos
teóricos da Análise de Discurso. Mas se a literatura no século XIX sustentou-se
pelo exercício de sua função enciclopédica, trazendo respostas e explicações no
domínio discursivo às comunidades de leitores, provavelmente pela não
popularização ainda do discurso científico em grande escala; em fins do século
XX, Agualusa aponta na direção de um saber que revela a si mesmo, um metasaber,
portanto, constituído pela e na linguagem. A aproximação entre os
estudos da teoria literária, da lingüística e da análise de discurso é decisiva
para a abordagem de textos que problematizam os limites da linguagem, das
tipologias textuais e dos conceitos disciplinares.
No Brasil, por
exemplo, com tão escassos conhecimentos sobre a história das comunidades em
África, até mesmo nas de língua portuguesa, a literatura ainda aciona funções
do século XIX, ao mesmo tempo em construção dos saberes e o quanto esses
procedimentos engendram leitores e suas leituras. Em Estação das chuvas, o
leitor é um leitor problematizador de
sua formação ideológica, ao reconhecê-la produzida pelo atravessamento de
discursos e práticas de leituras. Tal como na narrativa, tudo aquilo que se lê
— desde uma frase na parede até um trecho de diário ou de uma carta — aciona
uma leitura significativa, elos de sentidos que dão coesão e coerência ao
literário a partir da compreensão de leitor e suas práticas interpretativas
como produtoras de sentidos e não meras receptoras de textos.
“Aviões cegos bombardearam as florestas do Norte durante quase seis
semanas. Na sua fuga desesperada para o Zaire, Tiago de Santiago da
Ressurreição André viu os quimbos [aldeias] arrasados pela fúria portuguesa, os
rios e as florestas devorados pelo fogo do napalm. Próximo de Nova Caipemba,
disse-me ele, encontraram um bosque feito inteiramente de uma mesma cinza e dentro
dele algumas cubatas também de cinza, e dentro das cubatas, esteiras e
moringues; e utensílios diversos, tudo de cinza. Presos aos raminhos das
árvores havia centenas de pequenos pássaros, igualmente de cinza morta, com as
suas alegres canções de chuva cristalizadas na ponta dos bicos. As bombas dos
portugueses tinham travado o curso do tempo sobre o bosque, fechando aquele
instante aflito numa redoma de cinzas.(...) Então todo o bosque se começou a
desmoronar, com um demorado rumor de chuva mansa, e com ele os pássaros e as
cubatas e a utensilagem doméstica, e em breve nada havia em redor a não ser uma
larga planície de cinza idêntica” (AGUALUSA, 2000: 109-110).
Num cenário cujo
espectro da morte apresenta uma sucessão de cadáveres — o cadáver, esta coisa horrível, este "não sei quê sem nome em
nenhuma língua" — a imagem da
guerra também pode ser vista como a potencialização da vida em processo de
luta. Ainda com Edgar Morin, em "estado
de guerra, a sociedade se endurece então sobre si mesma, como aqueles
unicelulares que tomam a forma cristalóide; ela se blinda" (MORIN,
1997: 41). Tomado como metáfora de texto e não de discurso, a imagem do cadáver
é o que finda, o não sei quê sem nome em
nenhuma língua. O exercício do
leitor no romance em estudo é o de transformar o texto em discurso, num
processo que é o da escrita e o da escuta simultaneamente. Sob os signos da
ironia, da desigualdade, da diferença e da morte, coexistentes e simultâneos,
como tudo o que está justaposto, a forma romanesca captura o olhar do leitor e
o move incessantemente em direção não à luz, mas às sombras da linguagem. Os
pássaros, com suas canções cristalizadas, cobertos de cinzas como tudo aquilo
que os cerca, metaforizam (a metáfora também é uma forma de deslizamento) os
sujeitos cujas vozes só podem ser escutadas, lidas, se o leitor compreender o
diverso sob as aparências do mesmo. Nada mais será idêntico sob esse céu. O
espetáculo da morte oculta uma nação, suas personagens e lutas. Muitas dessas
lutas, desses eventos, só podem ser trazidos à superfície da palavra escrita
e/ou falada pelo discurso literário. Cabe ao leitor atravessar a espessura das
cinzas e ler não apenas as vozes polifônicas das personagens mas também as dos
gêneros discursivos.
Bibliografia:
AGUALUSA, José Eduardo. Estação das chuvas - romance. Rio de
Janeiro: Gryphus, 2000.
ANDRADE, Mário de (Org.) Antologia temática de poesia africana 1.
Na noite grávida de punhais. Lisboa: Sá da Costa, 1977.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria
Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
_______________. Questões de literatura e de estética - a
teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: HUCITEC, 1988.
BRAIT, Beth. "As vozes
bakhtinianas e o diálogo inconcluso", p.11-27. In: BARROS, Diana Luz
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polifonia, intertextualidade. São
Paulo: EDUSP, 1999.
FIORIN, José Luiz. "Polifonia
textual e discursiva". p. 30-36. In. BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN,
José Luiz (Org.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo:
EDUSP, 1999.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no
College de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de
Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. História,
teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MACHADO, Irene. O romance e a voz: a prosaica dialógica
de Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: FAPESP, 1995.
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Trad. Cleone Augusto Rodrigues. Rio de Janeiro:
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ORLANDI, Eni P. A análise de discurso. Princípios &
procedimentos. Campinas, São Paulo: Pontes, 1999.
SALGADO, Maria Teresa. "José
Eduardo Agualusa - uma ponte entre Angola e o mundo". In: CAMPOS, Maria do
Carmo Sepúlveda; SALGADO, Maria Teresa (Org.). África & Brasil: Letras em laços. Rio de Janeiro: Atlântica,
2000, p. 175-195.
SEGATTO, José Antonio; BALDAN, Ude (Org.). Sociedade e
literatura no Brasil. São Paulo: Unesp, 1999.
Resumo:
Este artigo problematiza as
relações entre a literatura, história e leituras, a partir da utilização de
gêneros discursivos, da materialidade de textos e de seus formatos que
representam a imagem da voz no romance Estação
das chuvas, do escritor angolano José Eduardo Agualusa.
Palavras-chave: discurso literário
e discurso histórico; literatura angolana; gêneros discursivos e polifonia.
Iza Quelhas
*
Iza Quelhas é doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, desde 1996. Desde 1997, atua como professora adjunta de
Literatura Brasileira na Faculdade de Formação de Professores da UERJ.
Desenvolve pesquisa sobre memórias e leituras; integrante do Programa
Prociência da UERJ, desde novembro de 2000.
1
Uma primeira versão deste artigo foi apresentada durante os trabalhos do Grupo
de Trabalho Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa no XVIII
Encontro Nacional da ANPOLL, realizado de 24 a 28/06/2002, na UFRGS, em
Gramado, RGS, sobre o tema Memórias e projeções.