ACCOUNTABILITY E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA SEGUNDO A DEMOCRACIA, O LIBERALISMO E O REPUBLICANISMO


Dimas Enéas Soares Ferreira*


“Precisa ainda o príncipe de viver sempre com o povo, mas pode prescindir perfeitamente dos grandes (...)”

Nicolau Maquiavel

 

A democracia política, chamada por Robert Dahl de poliarquia, é um fenômeno muito recente na América Latina. Podemos afirmar isso porque as condições básicas para a existência de um regime politicamente democrático são, hoje, plenamente satisfeitas na maior parte dos Estados latino-americanos, isto é, autoridades são eleitas por meio de eleições livres e justas, o sufrágio é inclusivo e universal, os cidadãos têm o direito de se candidatar aos cargos eletivos, há liberdade de expressão, informação alternativa e liberdade de associação (Dahl, 1989).

Há também uma crescente demanda na região pela implantação de mecanismos de accountability, ou seja, mecanismos que possibilitem a responsabilização daquelas pessoas que ocupam cargos públicos, sejam eleitos ou não, por seus atos à frente das instituições do Estado. Podendo ser entendida como a prestação de contas dessas mesmas pessoas perante a sociedade, sendo de dois tipos: vertical, quando essa prestação de contas se dá por meio das eleições e das reivindicações sociais através da liberdade de opinião e de associação, bem como pelo livre acesso às informações, sendo para isso necessária a existência de uma mídia livre. Portanto, se há uma accountability vertical, há democracia. E a horizontal, que é mais difícil de ser obtida, pois envolve “a existência de agências estatais que têm autoridade legal e estão realmente dispostas e capacitadas para empreender ações que vão desde o controle rotineiro até sanções legais ou inclusive impeachment, em relação a atos e/ou omissões de outros agentes ou agências do Estado que podem, em princípio ou presumidamente ser qualificadas como ilícitas” (O’Donnell, 2000: 01).

Mas, podemos dizer que quando ocorre a fraqueza dos mecanismos de accountability horizontal, temos também a indicação de que os elementos liberais e republicanos da democracia também são fracos? Para responder a essa questão é preciso discutir os principais elementos constitutivos dos Estados democráticos de direito contemporâneos. Esses novos Estados democráticos resumem três paradigmas, isto é, a democracia política, o liberalismo e o republicanismo. É claro que hoje há uma tendência muito forte em reduzir os regimes políticos ditos democráticos em somente dois grandes eixos paradoxais, ou seja, liberalismo versus democracia e liberalismo versus republicanismo.

O liberalismo defende que o Estado não tem o poder de restringir alguns direitos, especialmente aqueles relativos à esfera privada. Já o republicanismo acha que os indivíduos devem se sujeitar às leis e trabalhar em prol do bem comum buscando reafirmar sua cidadania, mesmo que para isso tenham que secundarizar ou, até mesmo, abandonar seus próprios interesses privados. Tanto o liberalismo como o republicanismo procuram diferenciar o público do privado, entretanto o fazem de forma totalmente díspares. Segundo os defensores do liberalismo, é na esfera privada que os indivíduos têm condições de alcançar o “pleno desenvolvimento humano”. Para eles, o Estado deve apenas resguardar as liberdades da esfera privada sem, em momento algum, se ver tentado a invadir esse mesmo espaço. Por outro lado, os republicanos acham que o “pleno desenvolvimento da vida humana” se dá mesmo é na esfera pública. Assim, a total e exclusiva entrega à busca do bem comum exigiria das pessoas um alto grau de altruísmo.

Para O’Donnell (1998) “o liberalismo é basicamente defensivo”, ao passo que o republicanismo é elitista porque acredita que somente os virtuosos e altruístas podem dirigir ou gerir a coisa pública em detrimento da defesa de seus interesses particulares e/ou privados. A teoria democrática não confere razão nem ao liberalismo, nem ao republicanismo, pois crê que os indivíduos podem muito bem conciliar sua vida privada com a gestão da coisa pública, como na Grécia de Péricles, quando os cidadãos de Atenas dedicavam um dia de trabalho para participar das decisões políticas da polis (Hansen, 1991), dessa forma todos os cidadãos podiam participar, do mais rico ao mais pobre homem livre de Atenas. A democracia, portanto, parte do princípio que qualquer cidadão pode participar das deliberações, podendo e tendo o direito de tomar decisões conjuntas com outros cidadãos sobre temas em que se achem capazes.

Se a democracia então é ateniense, o republicanismo é romano e italiano (repúblicas italianas da Baixa Idade Média), e o liberalismo é inglês e francês (Locke e Rousseau). Essas três tradições políticas são essenciais às democracias modernas, mas ao mesmo tempo se chocam, especialmente porque divergem e, até mesmo, se conflitam quando se trata de responder a questões relativas aos “direitos e deveres políticos, à participação política e ao caráter da cidadania e da sociedade civil” (O’Donnell, 1998: 33).

Não existem restrições à esfera pública ou à esfera privada imposta pela democracia. O que a democracia crê como imprescindível é que, no caso das eleições, vença sempre a maioria sem a necessidade de haver uma unanimidade entre os cidadãos, mas se o princípio básico de que “cada cidadão vale um voto” realmente é o que prevalece, então a vontade coletiva deve se sobrepor às vontades individuais e das minorias. Por outro lado, a democracia, diferentemente do republicanismo, não acha que somente os virtuosos, os altruístas e os que se dedicam exclusivamente à gestão da coisa pública podem exercer o governo, pois para ela todos são iguais e capazes de governar. A democracia nos moldes atenienses ou segundo os parâmetros de Rousseau deve ser não representativa pura e simplesmente, mas direta e participativa. Aí então esbarramos nos pressupostos do liberalismo que entende que os indivíduos devam se defender do controle e da intervenção estatal junto à esfera privada, e do republicanismo que só vê nos cidadãos dotados de virtude cívica a capacidade de gerir a coisa pública, sobrepondo, portanto, a esfera pública à esfera privada.

Enfim, mesmo com toda essa distância entre os elementos paradigmáticos que constituem essas três tradições históricas e políticas, há pontos em que elas se aproximam possibilitando uma convivência razoavelmente condizente com as necessidades de gestão de um Estado democrático de direito voltado para o bem comum. A democracia busca tornar iguais todos os cidadãos perante a lei e perante o Estado, já o republicanismo procura tornar a lei e a ordem constitucional[i] instituições importantes perante os cidadãos, além disso, encarrega-se de buscar a constante responsabilização dos homens públicos na condução e na gestão político-administrativa do Estado. Finalmente, o liberalismo participa desse processo defendendo ardorosamente as liberdades individuais e a propriedade no âmbito da esfera privada. Assim, tem-se um Estado no qual nenhum indivíduo pode se colocar acima das leis e onde todos têm o direito à participação nas decisões políticas e à cobrança de suas respectivas implementações e resultados, ou seja, têm o direito a mecanismos de prestação de contas denominados de accountability. Um Estado onde as liberdades são preservadas a todo custo.

No caso específico do Brasil, a poliarquia criada a partir de 1988 tem um componente democrático mais forte que outros componentes como o liberal e o republicano. Além disso, é claro, o Estatismo é outro forte componente de nossa poliarquia, talvez até mais forte que a própria democracia. Nesse sentido, o Partido dos Trabalhadores tenta, através de seus governos, introduzir na poliarquia brasileira os outros dois componentes fundamentais, isto é, a virtude cívica do republicanismo e o fortalecimento da esfera privada com o liberalismo, especialmente quando se coloca a preocupação com o [ii]respeito aos contratos. Fato esse que se explica pelo caráter político e ideológico do partido com forte cunho social-democrata e, também, pela implementação de salva-guardas democráticas e republicanas como o Orçamento Participativo. Dessa forma, procura transformar a deliberação pública participativa e popular no âmbito da gestão pública como mecanismo de accountability horizontal. Segundo O’Donnell (1998), isso se dá quando há agências estatais autorizadas e dispostas a supervisionar, controlar, retificar e/ou punir ações ilícitas de autoridades localizadas em outras agências estatais. Sendo que, nas poliarquias contemporâneas, além das instituições clássicas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, também há outras instituições, na esfera pública ou da sociedade civil, responsáveis pela fiscalização da prestação de contas e do controle social. Instituições essas que, no seu conjunto, compõem uma extensa rede compromissada com a cobrança sobre as ações do Estado e de sua burocracia. Realizando o controle social sobre as propostas de políticas e de investimentos públicos, criando um clima de responsabilização dos governantes e do estamento burocrático quanto às suas ações enquanto tal. 

 

Notas

1 - Para um dos mais tradicionais políticos brasileiros, o trabalhista Leonel Brizola, “os republicanos foram sábios quando colocaram aquela questão da Ordem na bandeira. A ordem é uma questão de defesa nacional” (Jornal do Brasil, p. A2, 22 de agosto de 2003).

 

Referências Bibliográficas:

DAHL, Robert. (1989), Democracy and its Critics. New Haven, Yale University Press.

HANSEN, M. H. (1991), The Athenian Democracy in the Age of Demosthenes. Oxford, Oxford University Press.

O’DONNELL, Guilhermo (1998), “Accountability Horizontal e Novas Poliarquias”. Lua Nova, 44: 27-52.

_____________________ (2000), “Notas sobre várias Accountabilities”, in Borrador, Buenos Aires, Universidade Torquato Di Tella.

 

Resumo: um dos aspectos mais importantes dos regimes democráticos modernos é a prestação de contas dos atos do poder público para com a sociedade civil, é o que a ciência política chama de accountability. A participação política popular é um dos aspectos mais importantes da accountability, por isso, deve ser analisada sob a ótica do liberalismo e do republicanismo.

 

Palavras-chave: accountability, participação política, democracia, liberalismo e republicanismo.

 

* O Autor é professor dos cursos de História e Turismo na Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC), no Centro de Estudos Superiores Aprendiz e na Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR) em Barbacena/MG. Pesquisador junto à Pró-Reitoria de Pesquisa e Extensão (PROPE) da UNIPAC. Mestrando em Ciências Sociais – Gestão de Cidades – pela PUC, Belo Horizonte/MG.

e-mail: dimassferreira@uol.com.br

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