A LUTA CONTRA O ÁGORA: A SUBVERSÃO PÓS-MODERNA DOS VALORES INTEGRATIVOS DA POLIS

 

Luiz Carlos de Barros Penteado*

 

   Filosofar sobre a ação equivale a questionar as legitimidades edificadas pelos homens, a tentar dar a palavra àqueles aos quais não resta senão o dilaceramento do grito para fazerem ouvir alguma coisa”. Christian Ruby

 

 

        O processo da formação política dos povos que habitaram a extremidade meridional da península balcânica, na região compreendida entre o litoral jônico e a planície ática,  pode ser e já foi enfocado sob aspectos diversos, geralmente ligados às idéias dos expoentes do pensamento, ali surgidos. Destes, forneceu ao mundo, aquela primeira Grécia, uma singular concentração, e a vitalidade da obra que deixaram está sobejamente demonstrada pelo fato de que muitas das discussões atuais, na filosofia ou na ciência política, giram, direta ou indiretamente, em torno dos mesmos temas, quando não das mesmas idéias.

 

Porém, se tivéssemos que destacar algum tema que, quer pela sua natureza, quer pela sua persistência na história da formação grega, fosse essencial, poderíamos mencionar o da arete. Werner Jaeger observa que esse conceito remonta aos tempos mais antigos, não havendo, em nosso idioma, um termo que lhe seja exatamente equivalente. “Mas a palavra “virtude”, na sua acepção não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega” (Jaeger, 2001: p. 25), a qual, para Platão e Aristóteles, por ex., é a “unidade suprema de todas as excelências”, de tal forma que “a arete só pode atingir a perfeição em almas de escol” (Jaeger, 2001: p. 34).

 

Em sua evolução, esse conceito migrou dos valores guerreiros dos tempos homéricos, cingidos à condição de virtude cívica geral, tal como era incorporado pelo antigo Estado espartano, para uma concepção da realização do homem político, dentro da nova polis, jurídica e legal, como aquele que obedece à lei e por ela se regula, além de também na guerra cumprir o seu dever, em plano de igualdade, tanto subordinativa como participativa, com todos os outros cidadãos, englobando e superando as aretai anteriores, de origem aristocrática.

 

Essa evolução encontrou seu ápice em Atenas, a última das grandes cidades gregas a despontar na história, e palco do surgimento do Estado jurídico ático. Seu espírito derivou da cultura jônica, cujos Estados coloniais tiveram o papel de libertar as forças individuais, inclusive no campo político, embora tenham demonstrado a aptidão necessária para organizar essas novas forças a que deram vida, e utilizarem-nas de modo à com elas reforçarem-se – mas as idéias políticas que ali tiveram seu nascedouro deram origem e impulso à nova organização do Estado das cidades da metrópole. Essas inovações foram presididas por uma dinâmica material e cultural relacionada com dificuldades relativas à penetração profunda do interior, ocupado por povos hostis, somadas a um incremento da segurança da navegação e ao rápido desenvolvimento produtivo das cidades da Ásia menor, atraindo cada vez mais as cidades costeiras para o comércio marítimo. Como conseqüência, uma parte considerável da aristocracia rural colonial foi se tornando menos rural e mais empresária, menos sedentária e menos ligada a terra.

 

O espírito de iniciativa e a força de expansão então reinante podem ser testemunhados pelo grande número de colônias fundadas pela cidade de Mileto, dentre outras. “Vivacidade, liberdade e largueza de visão e iniciativa pessoal são as características dominantes do novo tipo humano que ali nasceu”, ressalta Jaeger (2001: p. 133) referindo-se ao novo espírito ali nascido, como decorrência da mudança das formas de vida. Continua ele notando que “a ampliação dos horizontes e o sentimento da própria energia abriram caminho para uma multidão de idéias ousadas. O espírito de crítica independente com que deparamos na poesia individual de Arquíloco e na filosofia milesiana penetrou também, por certo, na vida pública” (Jaeger, 2001: p. 133). A literatura jônica, desde épocas mais primitivas até Heráclito, passando por Arquíloco e Anaximandro, dá diversos testemunhos que exaltam a justiça como fundamento da sociedade humana, revelando uma alta estima pelo direito por parte dos poetas e filósofos jônicos, a qual não precedeu a realidade, mas foi reflexo da importância fundamental desse progresso na vida pública de então.

 

Desde essa época, no entanto, todas as manifestações do direito estavam em mãos dos nobres, responsáveis pela administração da justiça, o que faziam de acordo com a tradição, sem leis escritas. Porém, com o enriquecimento de cidadãos livres alheios à nobreza, emergiram conflitos entre aqueles e esta última – uma nascente burguesia empresarial precisava afirmar-se politicamente frente à antiga aristocracia de origem fundiária, a qual propendeu facilmente, na defesa de seus interesses, para o abuso político, levando o povo à exigência de leis escritas. Hesíodo foi o precursor da reclamação universal contra os senhores venais, que, em sua função jurisdicional, agiam com desapreço pelo direito, tendo por ele surgido a palavra dike (direito), que se tornou algo como um equivalente da época ao que hoje seria um lema de luta de classes.

 

Enquanto themis é um termo que se reporta, principalmente, à autoridade do direito, sua legalidade e validade, ou legitimidade, dike implica na idéia de direito enquanto cumprimento da justiça. Dike se tornou um grito de combate numa época que se batia pela construção do direito de uma classe que lutava por sua afirmação político-jurídica, e que, até então, o havia recebido apenas como lei autoritária, ou themis. Mais e mais foi se tornando freqüente e premente o apelo a dike. Essa palavra adquiriu, ainda, uma outra acepção que a tornava mais apta para aquelas lutas: a do sentido de igualdade. Tal matiz igualitário do termo dike manteve-se no pensamento grego ao longo de toda a sua história, e dele dependeu a autoridade filosófica do Estado nos séculos seguintes aos das lutas políticas jônicas, enriquecendo-se, com o passar do tempo, a elaboração desse conceito. Essa idéia de igualdade caminhou da simples igualdade dos que não eram iguais - ou seja, dos não-nobres - perante o juiz ou a lei, passando pela participação ativa do todos na administração da justiça, atingindo a igualdade constitucional dos votos de todos nos assuntos da polis e, ainda, a participação igualitária de todos os cidadãos nos postos de direção, inicialmente em poder da aristocracia.

 

Tão grande foi a penetração, na vida da polis, desses novos princípios, que, ao lado das palavras que passaram a designar os delitos que até hoje conhecemos, como o assassínio, o rapto e o furto, cunharam os gregos o termo abstrato dikaiosyne, surgido “da progressiva intensificação do sentimento da justiça e da sua expressão num determinado tipo de homem, numa certa arete”, como observa Jaeger (2001: p. 133).

 

Estava dada a partida para a evolução que conduziria, por meio de sucessivas assimilações e extensões da idéia de igualdade, ao advento da democracia política – assim entendida, naquele seu berçário histórico, não como um produto necessário das exigências de igualdade de direitos e de leis escritas, as quais não são estranhas mesmo aos Estados oligárquicos ou monárquicos - mas caracterizada como a submissão do Estado ao domínio, não da lei, mas da massa dos cidadãos. No decorrer do tempo, os gregos mais e mais se aproximariam dessa forma de governo, através de uma série de graus intermediários, ao longo dos quais a igualdade de todos sob e perante uma lei comum, em cuja elaboração todos tinham a possibilidade de participar, inaugurou e demarcou, na polis, uma condição fundamental para a emancipação política do demos. Essa luta apaixonada pelo direito e pela obtenção da igualdade dos indivíduos foi sintetizada por Heráclito – “o povo deve lutar pela sua lei como pelas suas muralhas” – e encontrou, no Agora – centro físico da polis, e, por assim dizer, templo do seu espírito político – seu maior símbolo.

 

Esse ethos alicerçou os valores integrativos essenciais ao novo Estado constitucional helênico, e dele deu Platão a expressão máxima, ao dizer, nas Leis, que toda a arete está incluída no ideal do homem justo, a justiça se substituindo à valentia e a verdadeira virtude cívica nutrindo-se de outras quatro – a fortaleza, a piedade, a justiça e a prudência – ainda que, na República, vejamos a sabedoria filosófica ocupar o lugar da piedade.

 

Enfim, tendo a antiga pleonexia dado lugar à nova isonomia comunal criada pela polis, não ficou esta última limitada ao plano do direito, mas se comunicou a outros bens da existência, originados da antiga cultura aristocrática - cuja educação consignava o “ideal da arete que abarca o Homem inteiro com todas as suas faculdades” (Jaeger, 2001: p. 145) - e que passaram a ser patrimônio comum da totalidade dos cidadãos.

 

Se esse Estado, assim descrito, aparenta estar num plano excessivamente idealizado, isso se deve a que a profunda influência por ele exercida na vida dos indivíduos adveio, precisamente, da idealidade do seu pensamento, da sua filosofia, que não era apenas um eco abstrato num espaço vazio, mas estava profundamente integrada ao contexto da cultura grega; uma não pode ser compreendida desligada da outra. Naquele pensamento, o legislador era visto, também, como um educador do seu povo, e muitas vezes ombreado ao poeta; às máximas da sabedoria poética, juntavam-se as determinações da lei. Nesse cosmos legal ático, a virtude dos cidadãos consistia na livre submissão de todos, sem quaisquer distinções, à nova autoridade da lei, erigida em ethos definitivo da cidade-estado e garantia universal dos princípios ideais da vida, através da participação de todos na existência comum. A polis era a fonte de todas as normas existenciais válidas, medindo-se o valor do homem e de sua conduta tão somente pelo benefício ou malefício que trouxesse à cidade. Impunha-se a seus cidadãos vigorosa e implacavelmente, e, expressando-se o Estado através da lei, que se converteu em rei, por meio dela centralizava as forças e impulsos divergentes, e, mais ainda, atingia todos os aspectos da vida moral e privada.

 

Nesse sentido, é verdade, como aponta Fustel de Coulanges (2002: p. 248), que a polis exigia muito, talvez, mesmo, tudo; mas também é verdade que dava muito. Ela tornara-se como que um ente espiritual, o qual concentrava, como dons próprios, os mais elevados bens da vida humana, e nessa condição os repartia entre seus cidadãos. No seu apogeu, inaugurou a experiência política da lei e do direito, e estruturou em conjunto o ser do Homem e o ser do Estado, levando-os a encontrar uma nova síntese, em um plano mais elevado. “Educado no ethos da lei”, era, para o cidadão, a essência de sua paidéia, e o próprio telos formacional da polis, como Platão tão bem expressou nas Leis - educação na arete que enche o homem do desejo e da ânsia de se tornar um cidadão perfeito, e o ensina a mandar e obedecer, sobre o fundamento da justiça (Jaeger, 2001: p. 147).

 

Assim construíram os homens o sonho do Ágora.

 

Numa linha semelhante, um pensador de nossos dias, Christian Ruby, afirma que

 

“A política não consiste em encontrar a solução técnica de um problema técnico, mas em considerar constantemente a realização das exigências da justiça” (1998: contracapa).

 

Mas o que é, realmente, justiça?

 

Como vimos, os antigos gregos relacionavam o termo “justiça” a um princípio geral de igualdade.

Antes de estender um pouco mais nosso breve relancear de olhos sobre essa questão, simultaneamente tão velha e tão atual, cabe fazer nota de que não é nosso propósito olvidar o caráter seletivo da inclusividade da polis - ainda que não mais aristocrático - tendo em vista a exclusão dos escravos e dos metecos. E, ainda que em princípio amplamente igualitária, a participação política ativa não era inteiramente homogênea, havendo uma certa diferença de grau entre a ascensão da nova classe urbana empresarial e a participação do restante do demos. Tampouco pretendemos negar a posterior corrupção da democracia ateniense, protagonizada por um Estado tão legalista como despótico e opressor –  a semelhança do que viria a ocorrer, no mundo, com muitos outros governos autoritários.

 

Mas também não podemos olvidar o fato de que, inobstante essas limitações, em nenhum outro lugar ou momento da história humana, o termo “democracia” teve um significado tão consistente.

 

Mas, voltando à questão da justiça, não temos a veleidade de ignorar que, seja ela comutativa ou distributiva, o conceito respectivo é intrinsecamente movediço, sempre situado e datado, produto subjetivo - muitas vezes de conteúdo marcadamente ideológico - das relações materiais efetivas dentro de uma determinada sociedade, num dado momento histórico, ou da busca de sua superação. Tomando por base a observação preliminar de Merleau-Ponty sobre a linguagem, para quem “o que aprendemos em Saussure foi que os signos um a um nada significam, que cada um deles expressa menos um sentido do que marca um desvio de sentido entre si mesmo e os outros” (1991: p. 39), vemos que o termo “justiça” não apenas assinala em si um desvio, mas transporta para si o significado – os desvios - de outros signos.

 

No plano jurídico, Luis Roberto Barroso nos fornece exemplo de uma conceituação de natureza funcional, ao falar do princípio da “razoabilidade”, aplicado à solução de lides, aduzindo que se trata de um caminho para a determinação do que seria o justo:

 

“O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valorização dos  atos do poder público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo o ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de proposições que não o liberam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia, o que não seja arbitrário ou caprichoso, o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar” (1996: pp. 125-136).

 

Essa passagem deixa claro o caráter contingencial do conceito de justiça. A questão de determinar o que seja “conforme a razão”, que “corresponda ao senso comum”, se prende, por sua vez, à necessidade preliminar de saber-se como algo vem a ser, numa sociedade, conforme e correspondente a um e outro; qual seria o processo de instalação intersubjetiva de uma determinada noção. Uma interessante possibilidade interpretativa, que mencionaremos apenas de passagem, é a que Marcuse localizou, dentro da dinâmica mental apontada por Freud como a dinâmica da própria civilização:

 

 “...desde a primeira e pré-histórica restauração da dominação, após a primeira rebelião contra esta, a repressão externa foi sempre apoiada pela repressão interna; o indivíduo escravizado introjeta seus senhores e suas ordens no próprio aparelho mental. A luta contra a liberdade reproduz-se na psique do homem, como a auto-repressão do indivíduo reprimido, e a sua auto-repressão apóia, por seu turno, os senhores e suas instituições” (s/d: p. 37).

 

O sistema de competição generalizada e assimétrica, inerente ao modelo liberal de civilização, impõe e generaliza sua lógica mercantil, generalizando o conflito – o qual não é simplesmente “produtivo,” conduzindo, como pretendem suas teses de defesa tradicionais - ligadas à “mão invisível” de Adam Smith - a uma suposta situação aprimorada de equilíbrio. “Na verdade”, observa Eugène Enriquez, “ele expressa a luta pelo poder, violência simbólica e violência real, dominação de todos os instantes, sutil e insidiosa” (1991: p. 266).

 

Assim, nessa ordem de idéias, o conceito de justiça tenderá a tomar a dimensão subjetiva do processo de introjeção repressiva a que está submetido o indivíduo, inserido no contexto das relações sociais de dominação, expressas, por sua vez, em nossa época, pela sinergia entre o sistema de relações de produção e consumo que nela vige e os processos de formação, inclusão e administração de subjetividades que nela se desenvolvem. Numa sociedade como a que hoje existe no ocidente, os indivíduos tenderão a localizar seus conceitos dentro de uma funcionalidade produtiva e de consumo, com as relações subordinatórias efetivando-se e despersonalizando-se dentro da divisão social do trabalho, a qual também, simultaneamente, restringe e arregimenta as possibilidades de prazer. No limite, como nota Marcuse, “a sociedade emerge como um sistema duradouro e em expansão de desempenhos úteis; a hierarquia de funções e relações adquire a forma de razão objetiva; a lei e a ordem identificam-se com a própria vida da sociedade” (s/d: p. 91).

 

Essa identificação assume formas que passam, muitas vezes, desapercebidas no seu caráter de instrumento de subordinação a um determinado projeto de comando das relações sociais, tão profunda é a sua assimilação no sistema geral da vida coletiva. Um clássico exemplo do que estamos gizando pode ser encontrado na legitimação jurídica da apropriação, pelos titulares dos meios de produção, das diversas formas de mais-valia, mediante o contrato. Este último tende a fazer ecoar, na maioria das consciências, a tradicional fórmula pacta sunt servanda, alicerçada na igualdade formal dos co-contratantes. Como observa Pasukanis, “só a contínua transferência de direitos que ocorre no mercado cria a idéia de um portador imutável destes direitos. No mercado, aquele que obriga, obriga-se simultaneamente. A todo momento, ele passa da condição de credor à de obrigado. Assim foi criada a possibilidade de abstraírem-se as diferenças concretas entre os sujeitos de direito e englobá-los sob um único conceito genético” (1989: p. 91). Pasukanis sublinha a idéia do sujeito como sendo o elemento nuclear das relações jurídicas: “toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, seu elemento mais simples, indecomponível” (1989: p. 81) Não obstante, essa redução artificial, operada pelo direito, dos homens de carne e osso a uma figura formal da qual se abstraem suas propriedades concretas, constitui-se também em um dos dilemas fundamentais do próprio direito. Ainda segundo Pasukanis, “a dogmática jurídica, por conseguinte, não coloca de forma alguma a questão de porque o homem se transformou de indivíduo zoológico em sujeito de direito. Ela parte da relação jurídica como uma forma acabada, dada a prior ” (1989: p. 83). A qual se torna auto-referida no quadro do direito, não podendo ser compreendida se tomada apenas dentro de seus limites, já que é uma criação do próprio direito – criação tão arbitrária quanto fundamental, que o define enquanto tal. Dessa forma, o direito, legitimando a apropriação material pelos indivíduos, constitui-se numa tecnologia política da acumulação, tornada tão mais eficaz quanto mais introjetada está a representação ideológica do fenômeno jurídico na ética do senso comum[1].

 

O emprego do termo ideologia se dá, aqui, como o sublinha Althusser, enquanto “representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”(1985: p. 85), e, nessa qualidade, como elemento integrante da estrutura de controle da sociedade, na função de instrumento de  legitimação do componente político-jurídico. Em tal função, o discurso ideológico tem que ser coerente em si mesmo, para não expressar as contradições existentes na base material da sociedade, porque tem por fim representar aquela base, negando suas contradições – apresentando o resultado do processo a que se refere como se fosse seu ponto de partida, tomando “os efeitos pelas causas, as conseqüências pelas premissas, o determinado pelo determinante”, como sustenta Marilena Chauí (apud Konder, 2001: p. 144). Como acentua ainda a filósofa, a ideologia “nunca pode mostrar sua própria origem” (Konder, 2001: p. 144). Por sua vez, o discurso antiideológico seria, por assim dizer, um contra-discurso, de negação da ideologia, pela reafirmação das contradições. Seria, portanto, a negação da negação.

 

É preciso ter presente que esse indivíduo de que falamos, embora sendo um sujeito pensante e consciente, é equipado socialmente para uma racionalidade que lhe é imposta do exterior. Sua individualidade é relacional e produzida reflexamente pelas suas próprias ações, no contexto da lógica convivencial que vai sendo por ele gradativamente incorporada, ao longo de sua passagem pelo “arquipélago de fábricas de subjetividade” (Hardt e Negri, 2001: p. 215) formado pelas diversas instituições sociais – as escolas, as empresas, as igrejas, etc[2]. Em tais instituições estão as subjetividades em permanente produção, moldadas, dentro das respectivas regras de subjetivização, pelos limites recíprocos entre elas e pelas práticas materiais impostas ao sujeito em cada uma delas (genuflexionar-se para rezar, comparecer ao local de trabalho todos os dias num determinado horário, cumprimentar o diretor da empresa, prestar atenção à aula), incluindo o conjunto de atitudes decorrentes da forma segmentada (numa classe profissional definida) de sua inserção no universo de relações de produção e consumo.

 

A esse conjunto se soma, nesta era chamada - à falta de denominação mais precisa, que dela diga o que é, ao invés de dizer apenas daquilo que deixou de ser ou que superou - pós-moderna, com efeitos que nos parecem ainda não plenamente compreendidos, a colonização dos espaços públicos pela mídia[3], “uma espécie de intelectual orgânico não só surpreendente e insólito, mas ubíquo, desterritorializado,” como a define Octavio Ianni (1996: p. 187). No seu papel autodesignado de cartógrafa desse novo mundo, a mídia age como instância confiscatória das possibilidades públicas da palavra e a substitui pela imposição de modelos pré-formatados, plasmando, plasticizando e pasteurizando as relações sociais – sejam elas políticas, culturais, históricas, etc. -, embalando-as, transformadas em espetáculo, para consumo imediato da própria sociedade. Como assinala o lente da USP, a mídia, em seu atual estágio, afeta decisivamente as possibilidades de construção, afirmação e transformação da hegemonia. Como indústria cultural, organiza e direciona o caos cultural potencialmente resultante da redução ou desaparecimento do apoio representado pela religião objetiva, juntamente com a eliminação dos derradeiros resíduos pré-capitalistas, bem como a diferenciação e profunda especialização técnica e social, constituindo-se, nas suas diversas vertentes (cinema, televisão, etc.), em um sistema no qual “cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto”, como notaram Horkheimer e Adorno (1985: p. 113), já na década de 40 do século passado. Mesmo a fragmentação sócio-cultural mais intensa de nossa era é, de alguma forma, absorvida, reutilizada e manipulada por essa indústria, que atua como um instrumento geral de controle das consciências individuais – “inevitavelmente, cada manifestação da indústria cultural reproduz as pessoas tais como as modelou a indústria como um todo” (Horkheimer e Adorno, 1985: p. 119). “O mundo inteiro é forçado a passar pelo crivo da indústria cultural,” assinalam eles (1985: p. 118); “cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho... ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio” (Horkheimer e Adorno, 1985: p. 128). Seus produtos são concebidos de modo a eliminar o esforço intelectual por parte dos espectadores, desviá-los continuamente da possibilidade de elaboração própria da idéia do todo, administrar sua imaginação e suprimir o desenvolvimento espontâneo do seu pensamento – “o espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda a reação (Horkheimer e Adorno, 1985: p. 128)”.

 

A linguagem é vitimada nesse processo, reduzindo-se, resumindo-se a comunicação interpessoal à transmissão do objeto imediato, desprezando-se quaisquer acréscimos, como desimportantes ou suspeitos. “Em nome da ciência e da utilidade, cobra-se dos falantes que explicitem seus interesses comerciais, em vez de discorrerem sobre os valores e a verdade”, como ressalta Konder (2001: p. 83), referindo-se aos dois pensadores alemães. Reproduz, ainda, passagem de Adorno, em Mínima moralia, sobre o cru utilitarismo em que os costumes decaem, suprimindo quaisquer delicadezas no trato entre as pessoas:

 

“A objetividade nas relações humanas, que acaba com toda ornamentação ideológica entre os homens, tornou-se ela própria uma ideologia para tratar os homens como coisas” (Konder, 2001: p. 84).

 

O enorme progresso tecnológico, aplicado à mídia de nossa época e aos modos atuais de funcionamento em escala global do capitalismo, tem introduzido importantes alterações na forma como se dá o processo da produção de subjetividades, no sentido de definir de outra maneira o lugar de sua produção - o qual tende a não mais se cingir a nenhum lugar específico. Como observam Hardt e Negri, “as subjetividades ainda são produzidas na fábrica social”, mas “hoje os cercados que costumavam definir o espaço limitado das instituições foram derrubados, de modo que a lógica que funcionava principalmente dentro das paredes institucionais agora se espalha por todo o terreno social. Interior e exterior estão se tornando impossíveis de distinguir” (Hardt e Negri, 2001: p. 217), tornando mais diáfana e indistinta a interface dialética entre ambos. O espetáculo, que é o produto por excelência da mídia, é um lugar virtual, ou “um não-lugar da política” (Hardt e Negri, 2001: p. 208), simultaneamente unificado e difuso, tornando impossível distinguir lados de dentro e de fora. Os espaços virtuais do espetáculo universalizam, sublimam e desefetivam a noção de cunho liberal do público, com o fim desse “fora” aventando a perspectiva de uma transformação profunda das formas de política liberal – ou mesmo o fim destas, ao menos do modo como têm sido classicamente compreendidas.

 

Isso de forma alguma significa o fim do liberalismo. Pelo contrário: significa que os meios de sua propagação, efetivação e manutenção atingiram um estágio superior de desenvolvimento.

 

O processo de geração – e também de corrupção - contínua de subjetividades, estabiliza um núcleo de comunalidade com apoio em fatores diversos, que se reforçam reciprocamente; destes, destacaremos dois, que nos parecem essenciais. O primeiro é a estruturação, no indivíduo, de um aparelho de razões ordenado segundo uma lógica que identifica conhecimento com adequação à realidade - e, portanto, com reprodução - ordem esta que não é descoberta ou construída pelo sujeito, mas lhe é outorgada de fora, pela autoridade[4] socialmente legitimada – seu processo de aprendizagem é, portanto, um processo de reprodução de verdades a priori - sendo imposta, de forma sinérgica, pelos diversos processos de subjetivização. A origem dessa lógica, que inspira boa parte do discurso científico moderno, está ligada a uma antiga disputa de projetos políticos, que se iniciou na polis ática, como uma reação contra a maiêutica socrática e a dialética platoniana. Essas escolas de pensamento cultivavam valores integrativos através do diálogo contínuo entre sujeitos, num processo de busca e construção comum de verdades, sempre inconclusas e abertas para a possibilidade permanente do novo. Contra elas se insurgiu o projeto aristotélico, de construção de uma razão universalista, objetivista e despersonalizada, uma ordem que construía o conhecimento como verdade-adequação, e o impunha de fora ao sujeito, ou seja, como reprodução, e não como descoberta ou construção original, pessoal ou coletiva[5]. O segundo fator é a re-produção do sistema de valores funcionais àquele núcleo, salvaguardados pelo poder de coerção inerente aos organismos jurídico-estatais. Com relação ao papel e ao modus operandi desse sistema de valores, nota Valter Duarte Ferreira Filho, com base em Durkheim, que

“A integração entre os homens em sociedades, que seria a função específica dos fatos morais, dependeria de educação formadora e incorporadora da noção de dever social nos indivíduos e de coerção para obter uma vitória, mesmo parcial, sobre os corpos humanos, de valores que seriam sempre estranhos à natureza de cada um: valores sociais que iriam servir-se dos atributos de cada corpo, da desiderabilidade que é própria de cada corpo, para desejarem em seu próprio lugar.” (1997: capítulo 2)

 

Esse arquipélago de produção de subjetividades, assim como as ilhas no oceano, se apresenta unificado, abaixo da linha visível das ilhas aparentes, por um leito comum - a reprodução das condições de produção através da moldagem contínua dos indivíduos em massa de consumo e força de trabalho, submissa à divisão sócio-técnica deste e dócil às regras de dominação estabelecidas. E, nesta era de mundialização do modelo civilizacional anglo-saxônico – que tem por centro o individualismo liberal, apoiado na segurança do privado - a ampla racionalização deontológica[6] da vida social. Esse modelo civilizacional é bem definido, em sua origem, por Ferreira Filho:

 

            “Em rigor, foi na Inglaterra, nos anos de 1688, 1689 e 1690, com a Revolução Gloriosa, o juramento da Bill of Rights por Guilherme III e a publicação das principais obras de Locke, o início da civilização. Somente a partir daqueles anos a idéia de soberania do que então se chamava de sociedade civil veio a superar a idéia de soberania real e veio a se realizar em instituições políticas voltadas para garantir aquele que seria o seu mais elevado bem público: a segurança do privado, especialmente a segurança da propriedade privada e da posse particular de dinheiro, sua mais elevada razão revolucionária, sua mais elevada razão de existir. Soberanos, os valores civis foram feitos os principais laços integrativos da Inglaterra, da sua Commonwealth, caracterizando-a como sociedade civilizada como jamais houvera outra na história.” (www.achegas.net n0 6: 26/09/2003)

 

A expansão desse modelo de civilização, apoiada numa racionalidade objetivista, universalista e despersonalizada, inteiramente voltada para o interesse material individual, radicalizando o mercado como elemento relacional central e a produção como meio de mantê-lo, conduziu ao predomínio da razão técnica instrumental, a serviço da produção de objetos materiais ou virtuais, exteriores aos sujeitos que os produzem. Mais uma vez recorrendo a Horkheimer e Adorno, “o que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma” (1985: p. 114), que, na sua trajetória de universalização, vem tornando supérfluo, ou secundário, o apelo a antigos procedimentos religiosos ou culturais de legitimação do poder estatal, substituídos por “razões” pragmáticas ou “científicas”, aparentemente autojustificadoras “nas condições “liberais” da centralidade do mercado e do recuo do Estado”, como aduz Konder (2001: p.129), reportando-se ao pensamento de Jürgen Habermas. Como Luckács, bem antes de Habermas, já advertia (Konder, 2001: p. 61), a consciência tecnocrática torna-se hegemônica: a ação prática, em todas as suas formas, tende a ser concebida, predominantemente, em termos de uma razão instrumental de quantificação; a quantidade decide tudo. As qualidades individuais dos seres humanos, os valores intrinsecamente qualitativos, em torno dos quais formar-se-iam as suas convicções, sua percepção da riqueza de diversidade da qualidade das coisas, se não chegam a ser completamente suprimidos, como pensava Luckács, diante do capitalismo do seu tempo, tendem a ser inseridos no processo geral de geração de subjetividades e de instrumentalização das alteridades, apontado por Hardt e Negri (2001).

 

Cria-se uma nova forma de legitimação, “que mobiliza técnica e ciência para atender às necessidades dos seres humanos como indivíduos privados (induzindo-os, paralelamente, a um comportamento puramente adaptativo) e os convoca a se acumpliciarem”, nos mais das vezes por omissão, “com a direção da política econômica que está sendo adotada” (Konder, 2001: p. 130). O sistema mantém indefinidamente as contradições e conseqüentes antagonismos em estado de latência, inviabilizando sua canalização em processos de transformação profunda da sociedade. A intervenção do Estado ocorre apenas como um ato administrativo ou regulatório do sistema, no atendimento de demandas nesse sentido emanadas da própria sociedade. Como conseqüência,

 

“O discurso tecnocrático se apresenta como constatação óbvia de uma lógica evidente. As massas se deixam despolitizar, as pessoas se autocoisificam voluntariamente. A ideologia não precisa se impor de cima para baixo, porque funciona como se estivesse implícita na consciência da população despolitizada” (Konder, 2001: p. 130).

 

Na esteira do atual processo de mundialização do poder absoluto do capital, em princípio hostil ao nacionalismo e à tendência deste à demarcação mais ou menos rígida de fronteiras políticas – em cujo contexto brasileiro, resistem, relativamente isoladas, as Forças Armadas, como ilhas solitárias de formação de valores integrativos de cunho nacionalista -.segue a erosão da capacidade operativa dos principais instrumentos discricionários dos Estados nacionais. À testa daquele processo de absolutização global, encontram-se as grandes empresas transnacionais, as quais se diferenciam das grandes companhias de comércio e navegação dos séculos XVII e XVIII, entre outras coisas, por  não  terem participação estatal (ao menos em sentido direto) e, ao invés de terem o caráter territorial exclusivista das segundas, serem estritamente comerciais, especializando-se funcionalmente em linhas de produção e distribuição específicas, em territórios e jurisdições diversas, em cooperação ou em concorrência com outras empresas símiles. Por essa mesma razão, também não mais se caracterizam como empresas multinacionais, as quais tendiam a operar toda ou a maior parte de suas escalas produtivas no interior de jurisdições nacionais específicas. Essas grandes empresas transnacionais são, na forma atual do seu crescimento, com a divisão de trabalho e de mercado horizontais, transfronteiras e altamente fluidos em que se baseiam, um dos mais significativos fatores isolados a minar a essência do exclusivismo territorial estatal, ao lado da criação de um sistema de produção, intercâmbio e acumulação em escala global, que não está sujeito a nenhuma autoridade estatal particular. Esse sistema encontra-se amalgamado com o sistema de fluxos de capitais financeiros internacionais altamente voláteis, o qual, juntamente com o contínuo endividamento das nações em desenvolvimento, resulta num processo de desterritorialização dos seus controles monetários nacionais. Esse conjunto de sistemas opera segundo suas próprias “leis”, as quais, na prática, tem o poder de submeter os Estados nacionais, refletindo-se, inclusive, nas respectivas ordens jurídicas internas Estas últimas tendem, cada vez mais, a serem condicionadas pelas exigências desse sistema, homogeneizando-se, entre os diversos países, conjuntos de normas muito semelhantes de estímulo a “competitividade”, conduzindo ao enfraquecimento das regulações trabalhistas – desfavorecendo os trabalhadores e favorecendo a acumulação - e ao amesquinhamento de seus sistemas previdenciários.

 

Assim, sob o peso das poderosas tecnoestruturas das corporações transnacionais, dos organismos multilaterais, inclusive os financeiros, “que têm”, como assinala Gilberto Dupas, “em larga medida, lógicas autônomas em relação às decisões dos Estados nacionais” (1999: p. 14), o qual passa a funcionar como um agente de bloqueio das quedas das taxas de acumulação; esvazia-se sua capacidade decisória, relativamente à sua política monetária, assim como quanto à definição de seu orçamento, a organização da produção e do comércio, e, ainda, no que tange à tributação de empresas, com todas as conseqüências que isso acarreta, no sentido do enfraquecimento de suas possibilidades interventivas reais – “o espaço para a operação de políticas públicas vê-se sensivelmente diminuído” (1999: p. 14). O constitucionalismo do Estado-nação sofre uma profunda mudança de vetores.

 

Por constitucionalismo, aqui, não estamos nos referindo ao conceito jurídico de constituição, mas ao seu conceito material, derivando-o do adotado por Ferdinand Lassalle (1988: p. 49), no sentido da resultante dos fatores reais e efetivos do poder que, num determinado locus espaço-temporal, ordenam de fato a sociedade. Não consideraremos, aqui, Estados-nação individuais, tendo em vista que os fatores de poder mais relevantes, nesta era global, atuam dentro de outros quadros referenciais, não estando cingidos às fronteiras respectivas, às quais são hostis, operando tanto transnacionalmente quanto em redes subnacionais a elas integradas. Se considerarmos, por outro lado, que a constituição juridicamente entendida como tal, tende a ter efetividade relativa, não expressando inteiramente em suas normas formais as relações concretas e a dinâmica real de poder, poderemos falar na dialética existente entre a constituição-papel e a constituição-verdade, assim como entre os respectivos legisladores jurídicos – identificados formalmente em relação à primeira - e os formuladores in concreto de uma e de outra. Para os fins deste trabalho, aludimos, apenas, à constituição-verdade.

 

Essa constituição-verdade, ou constituição material, nos conduz, fundindo e adaptando as idéias de Lassalle e algumas de Antonio Negri (2002: p.7-24), ao conceito material de poder constituinte, simultaneamente pré-formador e co-extensivo ao conceito material de constituição, como a própria ação contraditória dos diversos fatores reais e efetivos do poder, enquanto processo gerador de forças expansionais que, ou são reciprocamente condicionadas na dinâmica de seu confronto, condensando-se numa vontade-síntese que assim estrutura ou reestrutura politicamente uma determinada sociedade em um dado espaço-tempo –um poder constituinte socialmente estabilizado - ou atingem o desequilíbrio e a ruptura, encontrando sua síntese numa vontade absoluta[7] que constrói o seu próprio espaço e o seu próprio tempo – um poder constituinte revolucionário. Podemos dizer que, em um e outro caso, o momento constitucional assinala o ponto de menor ou maior tensão entre a arquitetura superestrutural constituída - momento específico do ser político da sociedade – e a permanente ação constituinte das forças sociais – cujo ser é incessante devir. Constitucionalismo, assim, é movimento.

 

Os processos de controle político que mencionamos visam assenhorear-se do devir, administrar a vontade e neutralizar o movimento. Consoante o grau de efetividade alcançado, podem se limitar a um movimento axial de condicionamento da constituição-papel, funcionar como um contra-movimento, determinando a transitividade possível entre a constituição-papel e a constituição verdade, ou se tornar uma vontade absoluta, determinando o movimento de modo absoluto. Considerando o grau de complexidade e de efetividade alcançados em nossa era, acreditamos tratar-se, como Hardt e Negri (2001), dentre outros, já notaram, de uma nova forma de exercício do poder, que transforma o Estado em administração regulatória local de uma rede mais vasta que o transcende e engloba, instrumentalizando-o para seu uso, e se desenvolve na cultura da impermanência, da fluidificação dos fatos, da volatilização do agora, da vulgarização do novo, da indistinção de limites e da fusão de espaços, constituindo, no dizer de Octavio Ianni, “territorialidades e temporalidades desconhecidas” (1996: p. 100). Em sua ação, não apenas gera, como incorpora, administra e corrompe[8] subjetividades de toda ordem, fazendo-as fluir sem resistência, nutrindo-se de suas alteridades, em seu processo de permanente expansão – expansão de fronteiras físicas e expansão de sua força de comando interna, dentro das fronteiras já existentes. Ela continuamente cria e legitima novas formas de produção e consumo, expande e reforça os mecanismos de acumulação, e da sociedade que molda podemos dizer, parafraseando Tancredi Falconeri, personagem do Príncipe de Lampeduza (s/d: p. 28), que nela tudo está permanentemente mudando, para que tudo permaneça como está.

 

Enfim, não mais estamos na era em que apenas se buscava convencer – ou, em último caso, vencer – os indivíduos quanto à legitimidade dessa ou daquela forma de dominação, que se pretendia absoluta; estamos ingressando na era em que os indivíduos já não precisam ser convencidos, pois a estrutura de comando da sociedade os domina intimamente, porque integralmente introjetada na construção de suas subjetividades, reproduzindo-se em seu ser social. Não mais se trata de apenas criar e propalar falsas representações das relações dos indivíduos com suas condições materiais de existência, mas de artificializar todo o conjunto de suas relações existenciais, envolvendo-os completamente, do útero ao túmulo, pela saturação do tempo e das faculdades sensórias e cognitivas, e do tempo dessas faculdades. Deixamos a era das ideologias totalitárias[9], para entrar na era da ideologia total.

 

Em suma, já não mais se trata, por exemplo, de nazi-facismo ou “socialismo real”; agora, tudo e todos estão no mercado, o mercado é a medida e a dinâmica de tudo em todos os lugares, convertendo o mundo em espaço liso e uniforme de objetificação mercantil da vida. Ao invés de humanizarem-se todas as coisas, coisifica-se tudo o que é humano.

 

A colonização privada dos espaços públicos; o processo de construção e administração de subjetividades, direcionado a torná-las, em sua ampla maioria, dóceis à instrumentalização pela estrutura de comando da sociedade, neutralizando-as politicamente; o enfraquecimento da capacidade governativa do Estado-nação, são meios de que se vale a civilização liberal para a sua expansão irrestrita, alicerçada não sobre a emancipação do demos, mas sobre a sua domesticação. Tudo isso, ao mesmo tempo em que se celebra – numa espécie de sofisma global, muito além do que sonharia qualquer Protágoras - a expansão mundializante da “democracia”[10]!

 

Assim destruíram os homens o sonho do Ágora.

 

É claro que o alargamento físico da sociedade política impõe a invenção ou reinvenção das formas práticas de exercício participativo; mas, se entendemos que aquilo que poderia, com propriedade, ser chamado de democracia, representa para os homens, para o demos, a perspectiva real de intervenção consciente e eficaz sobre as suas próprias circunstâncias, sua essência permanece a mesma que chega até nós, através das avenidas - e das esquinas - do tempo e da história, desde sua criação na polis jônica e ática.

 

Ficam, então, as questões: esses processos, aos quais aqui brevemente aludimos, que têm demonstrado enorme força, serão definitivos na história da construção política das relações humanas? Terá a história chegado mesmo ao fim? As perspectivas constitucionais da sociedade terão se esgotado - ou, pelo menos, chegado a um impasse?

 

Tais processos, malgrado o império de fetiches sobre o qual se fundam, não eliminam a miséria e a exclusão; assim, não eliminam a tensão, origem do movimento.

 

Tendo em vista que a vida humana, do início até o fim, se passa como uma existência societária, não apenas como um agregado caótico de seres humanos, ela é um exercício político contínuo, mesmo quando inconsciente e apenas passivo. Cumpre-nos, pois, exercitar a agudeza do olhar e o rigor do pensar, visando a permanente dessacralização do status quo e o contínuo desvendamento da essência e dos meios de exercício dos poderes e dos contra-poderes, que controlem, busquem controlar, ou busquem criar meios de contraposição àqueles que controlam a sociedade dos homens e os homens em sociedade. Vale lembrar Foucault, para quem há necessidade do estudo não da verdade das coisas verdadeiras, mas da verdade tal qual é produzida pelas instituições, sintetizando ao dizer que “a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; á a própria verdade” (1969: p.14). Tal verdade produzida pelas instituições, no sentido que lhe dá Foucault, é, evidentemente, verdade apenas soi-disant; ele não se refere, aqui, à verdade segundo seu conceito epistemológico clássico, de adequação do pensamento à realidade, mas no sentido de versão, ou de ideologia. A qual, por sua vez, contém sempre duas verdades: a verdade da sua própria existência, e a verdade que ela, enquanto tal, encobre. O que, no processo de gerenciamento das percepções – para nós, um problema político fundamental, talvez mesmo o principal, de nossa era - nos conduz à necessidade de desvendar o locus daquela verdade das coisas verdadeiras, de discernir sua topografia, por entre a geografia política das versões, das ideologias e das ilusões.

 

Devemos, contudo, ao lançar nossas vistas à essa paisagem, despir-nos de qualquer pretensão à completa neutralidade, que seria um atributo verdadeiramente divino – ou, pelo menos, extraterrestre - tal o impossível distanciamento que exigiria com relação ao objeto pensado, do qual nós próprios – os seres que o pensam – fazemos parte.

 

A vida humana, na vastidão de suas possibilidades, é mais ampla que qualquer sistema em que a pretendam aprisionar; assim, diversamente do que busca aquela ordem de que falamos, que se pretende única, diremos, ou melhor, rediremos, com Christian Ruby, “que todas as coisas são rediscutíveis, que a política permanece por inventar, a história não se acaba” (1998: p. 144).

 

Diremos, enfim, que todas as coisas são suscetíveis de serem diferentes do que são.

 

 



[1] Não obstante, no seu papel de instrumento de resistência contra os arbítrios – e, eventualmente, contra as formas arbitrárias de apropriação - realocado pelas instâncias coletivas organizadas da sociedade civil, como meio de sua afirmação sócio-política, o direito possa vir a ser, também, uma das tecnologias potenciais de inclusividade e de igualitarismo substancial.

[2] Embora a influência própria de cada instituição - ao menos das principais -, em países de modernidade tardia, como é o caso do nosso, – continue grande - ainda que em declínio.

[3] Expressão que tomamos não no sentido de lugares públicos, mas como locus de expressão e ação política.

[4] Não estamos nos referindo, aqui, apenas à autoridade formalmente constituída como tal, mas a qualquer pessoa individual ou órgão a cujas manifestações seja socialmente reconhecida, explícita ou implicitamente, a qualidade de magister dixit. Como exemplo dessa segunda categoria, podemos citar o Jornal Nacional, da TV Globo.

[5] O fato de um processo de formação de subjetividades instilar um modo de pensar objetivista não se constitui, como pode à primeira vista parecer, em um paradoxo; as subjetividades são conformadas, precisamente, pela sua limitação – pela contenção, pela subordinação e pelo direcionamento de suas potências de vida.

[6] Termo que aqui empregamos no mesmo sentido em que o faz Valter Duarte Ferreira Filho, na tese citada, como a adjetivação “de toda ação ou teoria em que se considere apenas as conveniências humanas individuais, sem obrigações de qualquer espécie com terceiros.”

[7] Termo aqui utilizado não em sentido idealista ou  transcendental, mas enquanto efetividade constituinte.

[8] Não no sentido moral que vulgarmente se dá a esse termo, mas na sua acepção latina originária de cum-rumpere, partir-se.

[9] Muito embora a eventual ampliação da margem sempre presente de desencanto e desesperança, somadas a não-percepção de alternativas, possa abrir caminho, mais uma vez, para totalitarismos, à direita ou à esquerda. Especificamente no que tange ao quadro brasileiro atual, o aparente esvaziamento das expectativas com relação à esquerda, decorrente da direção (ou da não-direção) tomada pelo governo Lula, que pode se projetar, na percepção majoritária do eleitorado, para toda a esquerda, e um possível processo ampliativo da fragmentação desta última, em decorrência dessas circunstâncias, conjugado ao quadro de violência urbana (principalmente) e rural (eventualmente), fazem parecer mais provável, numa hipótese totalitária, uma guinada à direita. Seria, inclusive, menos incompatível com a deontologia neoliberal que cada vez mais fundamenta as relações sociais atuais.

[10] O art. 10 da Constituição Federal de 1988, por exemplo, afirma que o Brasil é um “Estado Democrático de Direito.”

 

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Resumo: Os valores integrativos que alicerçaram a idéia de democracia na polis grega – um espaço público integral, em cujo interior se desenvolvia, de forma igualitária e consciente, a submissão à lei e a simultânea participação na sua elaboração e também num Estado capaz de agir eficazmente – foram subvertidos pela civilização liberal pós-moderna, levando à neutralização política do demos e da democracia.

 

Palavras-chave: democracia, polis, demos, valores integrativos, justiça, verdade, ideologia.

 

* O autor é mestrando  em   Ciência   Política   do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.  

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