A LUTA CONTRA O ÁGORA: A SUBVERSÃO PÓS-MODERNA DOS VALORES INTEGRATIVOS
DA POLIS
Luiz Carlos de Barros Penteado*
“Filosofar sobre a ação equivale a questionar
as legitimidades edificadas pelos homens, a tentar dar a palavra àqueles aos
quais não resta senão o dilaceramento do grito para fazerem ouvir alguma coisa”.
Christian Ruby
O processo da formação política dos povos
que habitaram a extremidade meridional da península balcânica, na região compreendida
entre o litoral jônico e a planície ática, pode ser e já foi enfocado sob aspectos diversos,
geralmente ligados às idéias dos expoentes do pensamento, ali surgidos. Destes,
forneceu ao mundo, aquela primeira Grécia, uma singular concentração, e a
vitalidade da obra que deixaram está sobejamente demonstrada pelo fato de
que muitas das discussões atuais, na filosofia ou na ciência política, giram,
direta ou indiretamente, em torno dos mesmos temas, quando não das mesmas
idéias.
Porém,
se tivéssemos que destacar algum tema que, quer pela sua natureza, quer pela
sua persistência na história da formação grega, fosse essencial, poderíamos
mencionar o da arete. Werner Jaeger observa que esse conceito
remonta aos tempos mais antigos, não havendo, em nosso idioma, um termo que
lhe seja exatamente equivalente. “Mas a palavra “virtude”, na sua acepção
não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão do mais alto ideal
cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro,
talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega” (Jaeger, 2001: p. 25),
a qual, para Platão e Aristóteles, por ex., é a “unidade suprema de todas
as excelências”, de tal forma que “a arete
só pode atingir a perfeição em almas de escol” (Jaeger, 2001: p. 34).
Em sua
evolução, esse conceito migrou dos valores guerreiros dos tempos homéricos,
cingidos à condição de virtude cívica geral, tal como era incorporado pelo
antigo Estado espartano, para uma concepção da realização do homem político,
dentro da nova polis, jurídica e legal, como aquele que
obedece à lei e por ela se regula, além de também na guerra cumprir o seu
dever, em plano de igualdade, tanto subordinativa como participativa, com
todos os outros cidadãos, englobando e superando as aretai anteriores, de origem aristocrática.
Essa evolução encontrou
seu ápice em Atenas, a última das grandes cidades gregas a despontar na história,
e palco do surgimento do Estado jurídico ático. Seu espírito derivou da cultura
jônica, cujos Estados coloniais tiveram o papel de libertar as forças individuais,
inclusive no campo político, embora tenham demonstrado a aptidão necessária
para organizar essas novas forças a que deram vida, e utilizarem-nas de modo
à com elas reforçarem-se – mas as idéias políticas que ali tiveram seu nascedouro
deram origem e impulso à nova organização do Estado das cidades da metrópole.
Essas inovações foram presididas por uma dinâmica material e cultural relacionada
com dificuldades relativas à penetração profunda do interior, ocupado por
povos hostis, somadas a um incremento da segurança da navegação e ao rápido
desenvolvimento produtivo das cidades da Ásia menor, atraindo cada vez mais
as cidades costeiras para o comércio marítimo. Como conseqüência, uma parte
considerável da aristocracia rural colonial foi se tornando menos rural e
mais empresária, menos sedentária e menos ligada a terra.
O espírito de iniciativa
e a força de expansão então reinante podem ser testemunhados pelo grande número
de colônias fundadas pela cidade de Mileto, dentre outras. “Vivacidade, liberdade
e largueza de visão e iniciativa pessoal são as características dominantes
do novo tipo humano que ali nasceu”, ressalta Jaeger (2001: p. 133) referindo-se
ao novo espírito ali nascido, como decorrência da mudança das formas de vida.
Continua ele notando que “a ampliação dos horizontes e o sentimento da própria
energia abriram caminho para uma multidão de idéias ousadas. O espírito de
crítica independente com que deparamos na poesia individual de Arquíloco e
na filosofia milesiana penetrou também, por certo, na vida pública” (Jaeger,
2001: p. 133). A literatura jônica, desde épocas mais primitivas até Heráclito,
passando por Arquíloco e Anaximandro, dá diversos testemunhos que exaltam
a justiça como fundamento da sociedade humana, revelando uma alta estima pelo
direito por parte dos poetas e filósofos jônicos, a qual não precedeu a realidade,
mas foi reflexo da importância fundamental desse progresso na vida pública
de então.
Desde essa época, no entanto,
todas as manifestações do direito estavam em mãos dos nobres, responsáveis
pela administração da justiça, o que faziam de acordo com a tradição, sem
leis escritas. Porém, com o enriquecimento de cidadãos livres alheios à nobreza,
emergiram conflitos entre aqueles e esta última – uma nascente burguesia empresarial
precisava afirmar-se politicamente frente à antiga aristocracia de origem
fundiária, a qual propendeu facilmente, na defesa de seus interesses, para
o abuso político, levando o povo à exigência de leis escritas. Hesíodo foi
o precursor da reclamação universal contra os senhores venais, que, em sua
função jurisdicional, agiam com desapreço pelo direito, tendo por ele surgido
a palavra dike (direito), que se
tornou algo como um equivalente da época ao que hoje seria um lema de luta
de classes.
Enquanto themis é um termo que se reporta, principalmente, à autoridade do
direito, sua legalidade e validade, ou legitimidade, dike implica na idéia de direito enquanto cumprimento da justiça.
Dike se tornou um grito de combate numa
época que se batia pela construção do direito de uma classe que lutava por
sua afirmação político-jurídica, e que, até então, o havia recebido apenas
como lei autoritária, ou themis. Mais
e mais foi se tornando freqüente e premente o apelo a dike. Essa palavra adquiriu, ainda, uma outra acepção que a tornava
mais apta para aquelas lutas: a do sentido de igualdade. Tal matiz igualitário
do termo dike manteve-se no pensamento
grego ao longo de toda a sua história, e dele dependeu a autoridade filosófica
do Estado nos séculos seguintes aos das lutas políticas jônicas, enriquecendo-se,
com o passar do tempo, a elaboração desse conceito. Essa idéia de igualdade
caminhou da simples igualdade dos que não eram iguais - ou seja, dos não-nobres
- perante o juiz ou a lei, passando pela participação ativa do todos na administração
da justiça, atingindo a igualdade constitucional dos votos de todos nos assuntos
da polis e, ainda, a participação
igualitária de todos os cidadãos nos postos de direção, inicialmente em poder
da aristocracia.
Tão
grande foi a penetração, na vida da polis, desses novos princípios, que, ao
lado das palavras que passaram a designar os delitos que até hoje conhecemos,
como o assassínio, o rapto e o furto, cunharam os gregos o termo abstrato
dikaiosyne, surgido “da progressiva intensificação
do sentimento da justiça e da sua expressão num determinado tipo de homem,
numa certa arete”, como observa
Jaeger (2001: p. 133).
Estava dada a partida para
a evolução que conduziria, por meio de sucessivas assimilações e extensões
da idéia de igualdade, ao advento da democracia política – assim entendida,
naquele seu berçário histórico, não como um produto necessário das exigências
de igualdade de direitos e de leis escritas, as quais não são estranhas mesmo
aos Estados oligárquicos ou monárquicos - mas caracterizada como a submissão
do Estado ao domínio, não da lei, mas da massa dos cidadãos. No decorrer do
tempo, os gregos mais e mais se aproximariam dessa forma de governo, através
de uma série de graus intermediários, ao longo dos quais a igualdade de todos
sob e perante uma lei comum, em cuja elaboração todos tinham a possibilidade
de participar, inaugurou e demarcou, na polis,
uma condição fundamental para a emancipação política do demos. Essa luta apaixonada pelo direito e pela obtenção da igualdade
dos indivíduos foi sintetizada por Heráclito – “o povo deve lutar pela sua
lei como pelas suas muralhas” – e encontrou, no Agora – centro físico da polis,
e, por assim dizer, templo do seu espírito político – seu maior símbolo.
Esse
ethos alicerçou os valores integrativos
essenciais ao novo Estado constitucional helênico, e dele deu Platão a expressão
máxima, ao dizer, nas Leis, que
toda a arete está incluída no ideal
do homem justo, a justiça se substituindo à valentia e a verdadeira virtude
cívica nutrindo-se de outras quatro – a fortaleza, a piedade, a justiça e
a prudência – ainda que, na República,
vejamos a sabedoria filosófica ocupar o lugar da piedade.
Enfim, tendo a antiga pleonexia dado lugar à nova isonomia comunal
criada pela polis, não ficou esta
última limitada ao plano do direito, mas se comunicou a outros bens da existência,
originados da antiga cultura aristocrática - cuja educação consignava o “ideal
da arete que abarca o Homem inteiro
com todas as suas faculdades” (Jaeger, 2001: p. 145) - e que passaram a ser
patrimônio comum da totalidade dos cidadãos.
Se esse Estado, assim descrito,
aparenta estar num plano excessivamente idealizado, isso se deve a que a profunda
influência por ele exercida na vida dos indivíduos adveio, precisamente, da
idealidade do seu pensamento, da sua filosofia, que não era apenas um eco
abstrato num espaço vazio, mas estava profundamente integrada ao contexto
da cultura grega; uma não pode ser compreendida desligada da outra. Naquele
pensamento, o legislador era visto, também, como um educador do seu povo,
e muitas vezes ombreado ao poeta; às máximas da sabedoria poética, juntavam-se
as determinações da lei. Nesse cosmos
legal ático, a virtude dos cidadãos consistia na livre submissão de todos,
sem quaisquer distinções, à nova autoridade da lei, erigida em ethos definitivo da cidade-estado e garantia universal dos princípios
ideais da vida, através da participação de todos na existência comum. A polis
era a fonte de todas as normas existenciais válidas, medindo-se o valor do
homem e de sua conduta tão somente pelo benefício ou malefício que trouxesse
à cidade. Impunha-se a seus cidadãos vigorosa e implacavelmente, e, expressando-se
o Estado através da lei, que se converteu em rei, por meio dela centralizava
as forças e impulsos divergentes, e, mais ainda, atingia todos os aspectos
da vida moral e privada.
Nesse sentido, é verdade,
como aponta Fustel de Coulanges (2002: p. 248), que a polis
exigia muito, talvez, mesmo, tudo; mas também é verdade que dava muito. Ela
tornara-se como que um ente espiritual, o qual concentrava, como dons próprios,
os mais elevados bens da vida humana, e nessa condição os repartia entre seus
cidadãos. No seu apogeu, inaugurou a experiência política da lei e do direito,
e estruturou em conjunto o ser do Homem e o ser do Estado, levando-os a encontrar
uma nova síntese, em um plano mais elevado. “Educado no ethos da lei”, era, para o cidadão, a essência
de sua paidéia, e o próprio telos formacional da polis, como Platão tão bem expressou nas
Leis - educação na arete que enche
o homem do desejo e da ânsia de se tornar um cidadão perfeito, e o ensina
a mandar e obedecer, sobre o fundamento da justiça (Jaeger, 2001: p. 147).
Assim
construíram os homens o sonho do Ágora.
Numa
linha semelhante, um pensador de nossos dias, Christian Ruby, afirma que
“A
política não consiste em encontrar a solução técnica de um problema técnico,
mas em considerar constantemente a realização das exigências da justiça” (1998:
contracapa).
Mas
o que é, realmente, justiça?
Como
vimos, os antigos gregos relacionavam o termo “justiça” a um princípio geral
de igualdade.
Antes
de estender um pouco mais nosso breve relancear de olhos sobre essa questão,
simultaneamente tão velha e tão atual, cabe fazer nota de que não é nosso
propósito olvidar o caráter seletivo da inclusividade da polis
- ainda que não mais aristocrático - tendo em vista a exclusão dos escravos
e dos metecos. E, ainda que em princípio amplamente igualitária, a participação
política ativa não era inteiramente homogênea, havendo uma certa diferença
de grau entre a ascensão da nova classe urbana empresarial e a participação
do restante do demos. Tampouco pretendemos
negar a posterior corrupção da democracia ateniense, protagonizada por um
Estado tão legalista como despótico e opressor – a semelhança do que viria a ocorrer, no mundo,
com muitos outros governos autoritários.
Mas
também não podemos olvidar o fato de que, inobstante essas limitações, em
nenhum outro lugar ou momento da história humana, o termo “democracia” teve
um significado tão consistente.
Mas,
voltando à questão da justiça, não temos a veleidade de ignorar que, seja
ela comutativa ou distributiva, o conceito respectivo é intrinsecamente movediço,
sempre situado e datado, produto subjetivo - muitas vezes de conteúdo marcadamente
ideológico - das relações materiais efetivas dentro de uma determinada sociedade,
num dado momento histórico, ou da busca de sua superação. Tomando por base
a observação preliminar de Merleau-Ponty sobre a linguagem, para quem “o que
aprendemos em Saussure foi que os signos um a um nada significam, que cada
um deles expressa menos um sentido do que marca um desvio de sentido entre
si mesmo e os outros” (1991: p. 39), vemos que o termo “justiça” não apenas
assinala em si um desvio, mas transporta para si o significado – os desvios
- de outros signos.
No plano
jurídico, Luis Roberto Barroso nos fornece exemplo de uma conceituação de
natureza funcional, ao falar do princípio da “razoabilidade”, aplicado à solução
de lides, aduzindo que se trata de um caminho para a determinação do que seria
o justo:
“O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valorização
dos atos do poder público para aferir
se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo o ordenamento
jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o
princípio se dilui em um conjunto de proposições que não o liberam de uma
dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme a razão,
supondo equilíbrio, moderação e harmonia, o que não seja arbitrário ou caprichoso,
o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou
lugar” (1996: pp. 125-136).
Essa passagem deixa claro o caráter contingencial do conceito de justiça.
A questão de determinar o que seja “conforme a razão”, que “corresponda ao
senso comum”, se prende, por sua vez, à necessidade preliminar de saber-se
como algo vem a ser, numa sociedade, conforme e correspondente a um e outro;
qual seria o processo de instalação intersubjetiva de uma determinada noção.
Uma interessante possibilidade interpretativa, que mencionaremos apenas de
passagem, é a que Marcuse localizou, dentro da dinâmica mental apontada por
Freud como a dinâmica da própria civilização:
“...desde a primeira e pré-histórica restauração
da dominação, após a primeira rebelião contra esta, a repressão externa foi
sempre apoiada pela repressão interna; o indivíduo escravizado introjeta seus
senhores e suas ordens no próprio aparelho mental. A luta contra a liberdade
reproduz-se na psique do homem, como a auto-repressão do indivíduo reprimido,
e a sua auto-repressão apóia, por seu turno, os senhores e suas instituições”
(s/d: p. 37).
O sistema de competição generalizada e assimétrica,
inerente ao modelo liberal de civilização, impõe e generaliza sua lógica mercantil,
generalizando o conflito – o qual não é simplesmente “produtivo,” conduzindo,
como pretendem suas teses de defesa tradicionais - ligadas à “mão invisível”
de Adam Smith - a uma suposta situação aprimorada de equilíbrio. “Na verdade”,
observa Eugène Enriquez, “ele expressa a luta pelo poder, violência simbólica
e violência real, dominação de todos os instantes, sutil e insidiosa” (1991:
p. 266).
Assim, nessa ordem de idéias, o conceito de justiça
tenderá a tomar a dimensão subjetiva do processo de introjeção repressiva
a que está submetido o indivíduo, inserido no contexto das relações sociais
de dominação, expressas, por sua vez, em nossa época, pela sinergia entre
o sistema de relações de produção e consumo que nela vige e os processos de
formação, inclusão e administração de subjetividades que nela se desenvolvem.
Numa sociedade como a que hoje existe no ocidente, os indivíduos tenderão
a localizar seus conceitos dentro de uma funcionalidade produtiva e de consumo,
com as relações subordinatórias efetivando-se e despersonalizando-se dentro
da divisão social do trabalho, a qual também, simultaneamente, restringe e
arregimenta as possibilidades de prazer. No limite, como nota Marcuse, “a
sociedade emerge como um sistema duradouro e em expansão de desempenhos úteis;
a hierarquia de funções e relações adquire a forma de razão objetiva; a lei
e a ordem identificam-se com a própria vida da sociedade” (s/d: p. 91).
Essa identificação assume formas que passam, muitas
vezes, desapercebidas no seu caráter de instrumento de subordinação a um determinado
projeto de comando das relações sociais, tão profunda é a sua assimilação
no sistema geral da vida coletiva. Um clássico exemplo do que estamos gizando
pode ser encontrado na legitimação jurídica da apropriação, pelos titulares
dos meios de produção, das diversas formas de mais-valia, mediante o contrato.
Este último tende a fazer ecoar, na maioria das consciências, a tradicional
fórmula pacta sunt servanda, alicerçada na igualdade
formal dos co-contratantes. Como observa Pasukanis, “só a contínua transferência
de direitos que ocorre no mercado cria a idéia de um portador imutável destes
direitos. No mercado, aquele que obriga, obriga-se simultaneamente. A todo
momento, ele passa da condição de credor à de obrigado. Assim foi criada a
possibilidade de abstraírem-se as diferenças concretas entre os sujeitos de
direito e englobá-los sob um único conceito genético” (1989: p. 91). Pasukanis
sublinha a idéia do sujeito como sendo o elemento nuclear das relações jurídicas:
“toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da
teoria jurídica, seu elemento mais simples, indecomponível” (1989: p. 81)
Não obstante, essa redução artificial, operada pelo direito, dos homens de
carne e osso a uma figura formal da qual se abstraem suas propriedades concretas,
constitui-se também em um dos dilemas fundamentais do próprio direito. Ainda
segundo Pasukanis, “a dogmática jurídica, por conseguinte, não coloca de forma
alguma a questão de porque o homem se transformou de indivíduo zoológico em
sujeito de direito. Ela parte da relação jurídica como uma forma acabada,
dada a prior ” (1989: p. 83). A qual se torna auto-referida no quadro do
direito, não podendo ser compreendida se tomada apenas dentro de seus limites,
já que é uma criação do próprio direito – criação tão arbitrária quanto fundamental,
que o define enquanto tal. Dessa forma, o direito, legitimando a apropriação
material pelos indivíduos, constitui-se numa tecnologia política da acumulação,
tornada tão mais eficaz quanto mais introjetada está a representação ideológica
do fenômeno jurídico na ética do senso comum[1].
O emprego do termo ideologia se dá, aqui, como o sublinha Althusser, enquanto “representação
da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”(1985:
p. 85), e, nessa qualidade, como elemento integrante da estrutura de controle
da sociedade, na função de instrumento de legitimação do componente político-jurídico.
Em tal função, o discurso ideológico tem que ser coerente em si mesmo, para
não expressar as contradições existentes na base material da sociedade, porque
tem por fim representar aquela base, negando suas contradições – apresentando
o resultado do processo a que se refere como se fosse seu ponto de partida,
tomando “os efeitos pelas causas, as conseqüências pelas premissas, o determinado
pelo determinante”, como sustenta Marilena Chauí (apud Konder, 2001: p. 144). Como acentua
ainda a filósofa, a ideologia “nunca pode mostrar sua própria origem” (Konder,
2001: p. 144). Por sua vez, o discurso antiideológico seria, por assim dizer,
um contra-discurso, de negação da ideologia, pela reafirmação das contradições.
Seria, portanto, a negação da negação.
É preciso ter presente que esse indivíduo de que falamos,
embora sendo um sujeito pensante e consciente, é equipado socialmente para
uma racionalidade que lhe é imposta do exterior. Sua individualidade é relacional
e produzida reflexamente pelas suas próprias ações, no contexto da lógica
convivencial que vai sendo por ele gradativamente incorporada, ao longo de
sua passagem pelo “arquipélago de fábricas de subjetividade” (Hardt e Negri,
2001: p. 215) formado pelas diversas instituições sociais – as escolas, as
empresas, as igrejas, etc[2].
Em tais instituições estão as subjetividades em permanente produção, moldadas,
dentro das respectivas regras de subjetivização, pelos limites recíprocos
entre elas e pelas práticas materiais impostas ao sujeito em cada uma delas
(genuflexionar-se para rezar, comparecer ao local de trabalho todos os dias
num determinado horário, cumprimentar o diretor da empresa, prestar atenção
à aula), incluindo o conjunto de atitudes decorrentes da forma segmentada
(numa classe profissional definida) de sua inserção no universo de relações
de produção e consumo.
A esse conjunto se soma, nesta era chamada - à falta
de denominação mais precisa, que dela diga o que é, ao invés de dizer apenas
daquilo que deixou de ser ou que superou - pós-moderna, com efeitos que nos
parecem ainda não plenamente compreendidos, a colonização dos espaços públicos
pela mídia[3], “uma espécie
de intelectual orgânico não só surpreendente e insólito, mas ubíquo, desterritorializado,”
como a define Octavio Ianni (1996: p. 187). No seu papel autodesignado de
cartógrafa desse novo mundo, a mídia age como instância confiscatória das
possibilidades públicas da palavra e a substitui pela imposição de modelos
pré-formatados, plasmando, plasticizando e pasteurizando as relações sociais
– sejam elas políticas, culturais, históricas, etc. -, embalando-as, transformadas
em espetáculo, para consumo imediato da própria sociedade. Como assinala o
lente da USP, a mídia, em seu atual estágio, afeta decisivamente as possibilidades
de construção, afirmação e transformação da hegemonia. Como indústria cultural,
organiza e direciona o caos cultural potencialmente resultante da redução
ou desaparecimento do apoio representado pela religião objetiva, juntamente
com a eliminação dos derradeiros resíduos pré-capitalistas, bem como a diferenciação
e profunda especialização técnica e social, constituindo-se, nas suas diversas
vertentes (cinema, televisão, etc.), em um sistema no qual “cada setor é coerente
em si mesmo e todos o são em conjunto”, como notaram Horkheimer e
Adorno (1985: p. 113), já na década de 40 do século passado. Mesmo
a fragmentação sócio-cultural mais intensa de nossa era é, de alguma forma,
absorvida, reutilizada e manipulada por essa indústria, que atua como um instrumento
geral de controle das consciências individuais – “inevitavelmente, cada manifestação
da indústria cultural reproduz as pessoas tais como as modelou a indústria
como um todo” (Horkheimer e Adorno, 1985: p. 119). “O mundo inteiro é forçado a
passar pelo crivo da indústria cultural,” assinalam eles (1985: p. 118); “cada
qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde o início, não
dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha
ao trabalho... ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode
escapar adaptando-se a ele durante o ócio” (Horkheimer e Adorno, 1985:
p. 128). Seus produtos são concebidos de modo a eliminar o esforço intelectual
por parte dos espectadores, desviá-los continuamente da possibilidade de elaboração
própria da idéia do todo, administrar sua imaginação e suprimir o desenvolvimento
espontâneo do seu pensamento – “o espectador não deve ter necessidade de nenhum
pensamento próprio, o produto prescreve toda a reação (Horkheimer e
Adorno, 1985: p. 128)”.
A linguagem é vitimada nesse processo, reduzindo-se,
resumindo-se a comunicação interpessoal à transmissão do objeto imediato,
desprezando-se quaisquer acréscimos, como desimportantes ou suspeitos. “Em
nome da ciência e da utilidade, cobra-se dos falantes que explicitem seus
interesses comerciais, em vez de
discorrerem sobre os valores e a verdade”, como ressalta Konder (2001: p.
83), referindo-se aos dois pensadores alemães. Reproduz, ainda, passagem de
Adorno, em Mínima moralia, sobre
o cru utilitarismo em que os costumes decaem, suprimindo quaisquer delicadezas
no trato entre as pessoas:
“A objetividade
nas relações humanas, que acaba com toda ornamentação ideológica entre os
homens, tornou-se ela própria uma ideologia para tratar os homens como coisas”
(Konder, 2001: p. 84).
O enorme progresso tecnológico, aplicado à mídia de
nossa época e aos modos atuais de funcionamento em escala global do capitalismo,
tem introduzido importantes alterações na forma como se dá o processo da produção
de subjetividades, no sentido de definir de outra maneira o lugar de sua produção
- o qual tende a não mais se cingir a nenhum lugar específico. Como observam
Hardt e Negri, “as subjetividades ainda são produzidas na fábrica social”,
mas “hoje os cercados que costumavam definir o espaço limitado das instituições
foram derrubados, de modo que a lógica que funcionava principalmente dentro
das paredes institucionais agora se espalha por todo o terreno social. Interior
e exterior estão se tornando impossíveis de distinguir” (Hardt e Negri, 2001:
p. 217), tornando mais diáfana e indistinta a interface dialética entre ambos.
O espetáculo, que é o produto por excelência da mídia, é um lugar virtual,
ou “um não-lugar da política” (Hardt e Negri, 2001: p. 208), simultaneamente
unificado e difuso, tornando impossível distinguir lados de dentro e de fora.
Os espaços virtuais do espetáculo universalizam, sublimam e desefetivam a
noção de cunho liberal do público, com o fim desse “fora” aventando a perspectiva
de uma transformação profunda das formas de política liberal – ou mesmo o
fim destas, ao menos do modo como têm sido classicamente compreendidas.
Isso de forma alguma significa o fim do liberalismo.
Pelo contrário: significa que os meios de sua propagação, efetivação e manutenção
atingiram um estágio superior de desenvolvimento.
O processo de geração – e também de corrupção - contínua
de subjetividades, estabiliza um núcleo de comunalidade com apoio em fatores
diversos, que se reforçam reciprocamente; destes, destacaremos dois, que nos
parecem essenciais. O primeiro é a estruturação, no indivíduo, de um aparelho
de razões ordenado segundo uma lógica que identifica conhecimento com adequação
à realidade - e, portanto, com reprodução - ordem esta que não é descoberta
ou construída pelo sujeito, mas lhe é outorgada de fora, pela autoridade[4]
socialmente legitimada – seu processo de aprendizagem é, portanto, um processo
de reprodução de verdades a priori -
sendo imposta, de forma sinérgica, pelos diversos processos de subjetivização.
A origem dessa lógica, que inspira boa parte do discurso científico moderno,
está ligada a uma antiga disputa de projetos políticos, que se iniciou na
polis ática, como uma reação contra a maiêutica
socrática e a dialética platoniana. Essas escolas de pensamento cultivavam
valores integrativos através do
diálogo contínuo entre sujeitos, num processo de busca e construção comum
de verdades, sempre inconclusas e abertas para a possibilidade permanente
do novo. Contra elas se insurgiu o projeto aristotélico, de construção de
uma razão universalista, objetivista e despersonalizada, uma ordem que construía
o conhecimento como verdade-adequação, e o impunha de fora ao sujeito, ou
seja, como reprodução, e não como descoberta ou construção original, pessoal
ou coletiva[5].
O segundo fator é a re-produção do sistema de valores funcionais àquele núcleo,
salvaguardados pelo poder de coerção inerente aos organismos jurídico-estatais.
Com relação ao papel e ao modus operandi
desse sistema de valores, nota Valter Duarte Ferreira Filho, com base em Durkheim,
que
“A integração
entre os homens em sociedades, que seria a função específica dos fatos morais,
dependeria de educação formadora e incorporadora da noção de dever social
nos indivíduos e de coerção para obter uma vitória, mesmo parcial, sobre os
corpos humanos, de valores que seriam sempre estranhos à natureza de cada
um: valores sociais que iriam servir-se dos atributos de cada corpo, da desiderabilidade
que é própria de cada corpo, para desejarem em seu próprio lugar.” (1997:
capítulo 2)
Esse arquipélago de produção de subjetividades, assim
como as ilhas no oceano, se apresenta unificado, abaixo da linha visível das
ilhas aparentes, por um leito comum - a reprodução das condições de produção
através da moldagem contínua dos indivíduos em massa de consumo e força de
trabalho, submissa à divisão sócio-técnica deste e dócil às regras de dominação
estabelecidas. E, nesta era de mundialização do modelo civilizacional anglo-saxônico
– que tem por centro o individualismo liberal, apoiado na segurança do privado
- a ampla racionalização deontológica[6]
da vida social. Esse modelo civilizacional é bem definido, em sua origem,
por Ferreira Filho:
“Em
rigor, foi na Inglaterra, nos anos de 1688, 1689 e 1690, com a Revolução Gloriosa,
o juramento da Bill of Rights por Guilherme III e a publicação das principais
obras de Locke, o início da civilização. Somente a partir daqueles anos a
idéia de soberania do que então se chamava de sociedade civil veio a superar
a idéia de soberania real e veio a se realizar em instituições políticas voltadas
para garantir aquele que seria o seu mais elevado bem público: a segurança
do privado, especialmente a segurança da propriedade privada e da posse particular
de dinheiro, sua mais elevada razão revolucionária, sua mais elevada razão
de existir. Soberanos, os valores civis foram feitos os principais laços integrativos
da Inglaterra, da sua Commonwealth, caracterizando-a como sociedade civilizada
como jamais houvera outra na história.” (www.achegas.net
n0 6: 26/09/2003)
A expansão desse modelo de civilização, apoiada numa
racionalidade objetivista, universalista e despersonalizada, inteiramente
voltada para o interesse material individual, radicalizando o mercado como
elemento relacional central e a produção como meio de mantê-lo, conduziu ao
predomínio da razão técnica instrumental, a serviço da produção de objetos
materiais ou virtuais, exteriores aos sujeitos que os produzem. Mais uma vez
recorrendo a Horkheimer e Adorno, “o que não se diz é que o terreno no qual
a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente
mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade
da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de
si mesma” (1985: p. 114), que, na sua trajetória de universalização, vem tornando
supérfluo, ou secundário, o apelo a antigos procedimentos religiosos ou culturais
de legitimação do poder estatal, substituídos por “razões” pragmáticas ou
“científicas”, aparentemente autojustificadoras “nas condições “liberais”
da centralidade do mercado e do recuo do Estado”, como aduz Konder (2001:
p.129), reportando-se ao pensamento de Jürgen Habermas. Como Luckács, bem
antes de Habermas, já advertia (Konder, 2001: p. 61), a consciência tecnocrática
torna-se hegemônica: a ação prática, em todas as suas formas, tende a ser
concebida, predominantemente, em termos de uma razão instrumental de quantificação;
a quantidade decide tudo. As qualidades individuais dos seres humanos, os
valores intrinsecamente qualitativos, em torno dos quais formar-se-iam as
suas convicções, sua percepção da riqueza de diversidade da qualidade das
coisas, se não chegam a ser completamente suprimidos, como pensava Luckács,
diante do capitalismo do seu tempo, tendem a ser inseridos no processo geral
de geração de subjetividades e de instrumentalização das alteridades, apontado
por Hardt e Negri (2001).
Cria-se uma nova forma de legitimação, “que mobiliza
técnica e ciência para atender às necessidades dos seres humanos como indivíduos privados (induzindo-os,
paralelamente, a um comportamento puramente adaptativo) e os convoca a se
acumpliciarem”, nos mais das vezes por omissão, “com a direção da política
econômica que está sendo adotada” (Konder, 2001: p. 130). O sistema mantém
indefinidamente as contradições e conseqüentes antagonismos em estado de latência,
inviabilizando sua canalização em processos de transformação profunda da sociedade.
A intervenção do Estado ocorre apenas como um ato administrativo ou regulatório
do sistema, no atendimento de demandas nesse sentido emanadas da própria sociedade. Como conseqüência,
“O discurso tecnocrático se apresenta como constatação
óbvia de uma lógica evidente. As massas se deixam despolitizar, as pessoas
se autocoisificam voluntariamente. A ideologia não precisa se impor de cima
para baixo, porque funciona como se estivesse implícita na consciência da
população despolitizada” (Konder, 2001: p. 130).
Na
esteira do atual processo de mundialização do poder absoluto do capital, em
princípio hostil ao nacionalismo e à tendência deste à demarcação mais ou
menos rígida de fronteiras políticas – em cujo contexto brasileiro, resistem,
relativamente isoladas, as Forças Armadas, como ilhas solitárias de formação
de valores integrativos de cunho nacionalista -.segue a erosão da capacidade
operativa dos principais instrumentos discricionários dos Estados nacionais.
À testa daquele processo de absolutização global, encontram-se as grandes
empresas transnacionais, as quais se diferenciam das grandes companhias de
comércio e navegação dos séculos XVII e XVIII, entre outras coisas, por
não terem participação estatal
(ao menos em sentido direto) e, ao invés de terem o caráter territorial exclusivista
das segundas, serem estritamente comerciais, especializando-se funcionalmente
em linhas de produção e distribuição específicas, em territórios e jurisdições
diversas, em cooperação ou em concorrência com outras empresas símiles. Por
essa mesma razão, também não mais se caracterizam como empresas multinacionais,
as quais tendiam a operar toda ou a maior parte de suas escalas produtivas
no interior de jurisdições nacionais específicas. Essas grandes empresas transnacionais
são, na forma atual do seu crescimento, com a divisão de trabalho e de mercado
horizontais, transfronteiras e altamente fluidos em que se baseiam, um dos
mais significativos fatores isolados a minar a essência do exclusivismo territorial
estatal, ao lado da criação de um sistema de produção, intercâmbio e acumulação
em escala global, que não está sujeito a nenhuma autoridade estatal particular.
Esse sistema encontra-se amalgamado com o sistema de fluxos de capitais financeiros
internacionais altamente voláteis, o qual, juntamente com o contínuo endividamento
das nações em desenvolvimento, resulta num processo de desterritorialização
dos seus controles monetários nacionais. Esse conjunto de sistemas opera segundo
suas próprias “leis”, as quais, na prática, tem o poder de submeter os Estados
nacionais, refletindo-se, inclusive, nas respectivas ordens jurídicas internas
Estas últimas tendem, cada vez mais, a serem condicionadas pelas exigências
desse sistema, homogeneizando-se, entre os diversos países, conjuntos de normas
muito semelhantes de estímulo a “competitividade”, conduzindo ao enfraquecimento
das regulações trabalhistas – desfavorecendo os trabalhadores e favorecendo
a acumulação - e ao amesquinhamento de seus sistemas previdenciários.
Assim,
sob o peso das poderosas tecnoestruturas das corporações transnacionais, dos
organismos multilaterais, inclusive os financeiros, “que têm”, como assinala
Gilberto Dupas, “em larga medida, lógicas autônomas em relação às decisões
dos Estados nacionais” (1999: p. 14),
o qual passa a funcionar como um agente de bloqueio das quedas das taxas de
acumulação; esvazia-se sua capacidade decisória, relativamente à sua política
monetária, assim como quanto à definição de seu orçamento, a organização da
produção e do comércio, e, ainda, no que tange à tributação de empresas, com
todas as conseqüências que isso acarreta, no sentido do enfraquecimento de
suas possibilidades interventivas reais – “o espaço para a operação de políticas
públicas vê-se sensivelmente diminuído” (1999: p. 14). O constitucionalismo
do Estado-nação sofre uma profunda mudança de vetores.
Por constitucionalismo,
aqui, não estamos nos referindo ao conceito jurídico de constituição, mas
ao seu conceito material, derivando-o do adotado por Ferdinand Lassalle (1988:
p. 49), no sentido da resultante dos fatores reais e efetivos do poder que,
num determinado locus espaço-temporal,
ordenam de fato a sociedade. Não consideraremos, aqui, Estados-nação individuais,
tendo em vista que os fatores de poder mais relevantes, nesta era global,
atuam dentro de outros quadros referenciais, não estando cingidos às fronteiras
respectivas, às quais são hostis, operando tanto transnacionalmente quanto
em redes subnacionais a elas integradas. Se considerarmos, por outro lado,
que a constituição juridicamente entendida como tal, tende a ter efetividade
relativa, não expressando inteiramente em suas normas formais as relações
concretas e a dinâmica real de poder, poderemos falar na dialética existente
entre a constituição-papel e a constituição-verdade, assim como entre os respectivos
legisladores jurídicos – identificados formalmente em relação à primeira -
e os formuladores in concreto de
uma e de outra. Para os fins deste trabalho, aludimos, apenas, à constituição-verdade.
Essa constituição-verdade,
ou constituição material, nos conduz, fundindo e adaptando as idéias de Lassalle
e algumas de Antonio Negri (2002: p.7-24), ao conceito material de poder constituinte,
simultaneamente pré-formador e co-extensivo ao conceito material de constituição,
como a própria ação contraditória dos diversos fatores reais e efetivos do
poder, enquanto processo gerador de forças expansionais que, ou são reciprocamente
condicionadas na dinâmica de seu confronto, condensando-se numa vontade-síntese
que assim estrutura ou reestrutura politicamente uma determinada sociedade
em um dado espaço-tempo –um poder constituinte socialmente estabilizado -
ou atingem o desequilíbrio e a ruptura, encontrando sua síntese numa vontade
absoluta[7]
que constrói o seu próprio espaço e o seu próprio tempo – um poder constituinte
revolucionário. Podemos dizer que, em um e outro caso, o momento constitucional
assinala o ponto de menor ou maior tensão entre a arquitetura superestrutural
constituída - momento específico do ser político da sociedade – e a permanente
ação constituinte das forças sociais – cujo ser é incessante devir. Constitucionalismo,
assim, é movimento.
Os processos de controle
político que mencionamos visam assenhorear-se do devir, administrar a vontade
e neutralizar o movimento. Consoante o grau de efetividade alcançado, podem
se limitar a um movimento axial de condicionamento da constituição-papel,
funcionar como um contra-movimento, determinando a transitividade possível
entre a constituição-papel e a constituição verdade, ou se tornar uma vontade
absoluta, determinando o movimento de modo absoluto. Considerando o grau de
complexidade e de efetividade alcançados em nossa era, acreditamos tratar-se,
como Hardt e Negri (2001), dentre outros, já notaram, de uma nova forma de
exercício do poder, que transforma o Estado em administração regulatória local
de uma rede mais vasta que o transcende e engloba, instrumentalizando-o para
seu uso, e se desenvolve na cultura da impermanência, da fluidificação dos
fatos, da volatilização do agora, da vulgarização do novo, da indistinção
de limites e da fusão de espaços, constituindo, no dizer de Octavio Ianni,
“territorialidades e temporalidades desconhecidas” (1996: p. 100). Em sua
ação, não apenas gera, como incorpora, administra e corrompe[8]
subjetividades de toda ordem, fazendo-as fluir sem resistência, nutrindo-se
de suas alteridades, em seu processo de permanente expansão – expansão de
fronteiras físicas e expansão de sua força de comando interna, dentro das
fronteiras já existentes. Ela continuamente cria e legitima novas formas de
produção e consumo, expande e reforça os mecanismos de acumulação, e da sociedade
que molda podemos dizer, parafraseando Tancredi Falconeri, personagem do Príncipe
de Lampeduza (s/d: p. 28), que nela tudo está permanentemente mudando, para
que tudo permaneça como está.
Enfim, não mais estamos na era em que apenas se buscava
convencer – ou, em último caso, vencer – os indivíduos quanto à legitimidade
dessa ou daquela forma de dominação, que se pretendia absoluta; estamos ingressando
na era em que os indivíduos já não precisam ser convencidos, pois a estrutura
de comando da sociedade os domina intimamente, porque integralmente introjetada
na construção de suas subjetividades, reproduzindo-se em seu ser social. Não
mais se trata de apenas criar e propalar falsas representações das relações
dos indivíduos com suas condições materiais de existência, mas de artificializar
todo o conjunto de suas relações existenciais, envolvendo-os completamente,
do útero ao túmulo, pela saturação do tempo e das faculdades sensórias e cognitivas,
e do tempo dessas faculdades. Deixamos a era das ideologias totalitárias[9],
para entrar na era da ideologia total.
Em suma, já não mais se trata, por exemplo, de nazi-facismo
ou “socialismo real”; agora, tudo e todos estão no mercado, o mercado é a
medida e a dinâmica de tudo em todos os lugares, convertendo o mundo em espaço
liso e uniforme de objetificação mercantil da vida. Ao invés de humanizarem-se
todas as coisas, coisifica-se tudo o que é humano.
A colonização privada dos espaços públicos; o processo
de construção e administração de subjetividades, direcionado a torná-las,
em sua ampla maioria, dóceis à instrumentalização pela estrutura de comando
da sociedade, neutralizando-as politicamente; o enfraquecimento da capacidade
governativa do Estado-nação, são meios de que se vale a civilização liberal
para a sua expansão irrestrita, alicerçada não sobre a emancipação do demos, mas sobre a sua domesticação. Tudo
isso, ao mesmo tempo em que se celebra – numa espécie de sofisma global, muito
além do que sonharia qualquer Protágoras - a expansão mundializante da “democracia”[10]!
Assim destruíram os homens o sonho do Ágora.
É claro que o alargamento físico da sociedade política
impõe a invenção ou reinvenção das formas práticas de exercício participativo;
mas, se entendemos que aquilo que poderia, com propriedade, ser chamado de
democracia, representa para os homens,
para o demos, a perspectiva real
de intervenção consciente e eficaz sobre as suas próprias circunstâncias,
sua essência permanece a mesma que chega até nós, através das avenidas - e
das esquinas - do tempo e da história, desde sua criação na polis jônica e ática.
Ficam, então, as questões: esses processos, aos quais
aqui brevemente aludimos, que têm demonstrado enorme força, serão definitivos
na história da construção política das relações humanas? Terá a história chegado
mesmo ao fim? As perspectivas constitucionais da sociedade terão se esgotado
- ou, pelo menos, chegado a um impasse?
Tais processos, malgrado o império de fetiches sobre
o qual se fundam, não eliminam a miséria e a exclusão; assim, não eliminam
a tensão, origem do movimento.
Tendo em vista que a vida humana, do início até o
fim, se passa como uma existência societária, não apenas como um agregado
caótico de seres humanos, ela é um exercício político contínuo, mesmo quando
inconsciente e apenas passivo. Cumpre-nos, pois, exercitar a agudeza do olhar
e o rigor do pensar, visando a permanente dessacralização do status quo e o contínuo desvendamento da essência e dos meios de exercício
dos poderes e dos contra-poderes, que controlem, busquem controlar, ou busquem
criar meios de contraposição àqueles que controlam a sociedade dos homens
e os homens em sociedade. Vale lembrar Foucault, para quem há necessidade
do estudo não da verdade das coisas verdadeiras, mas da verdade tal qual é
produzida pelas instituições, sintetizando ao dizer que “a questão política
não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; á a própria
verdade” (1969: p.14). Tal verdade produzida pelas instituições, no sentido
que lhe dá Foucault, é, evidentemente, verdade apenas soi-disant;
ele não se refere, aqui, à verdade segundo seu conceito epistemológico clássico,
de adequação do pensamento à realidade, mas no sentido de versão, ou de ideologia. A qual, por sua
vez, contém sempre duas verdades: a verdade da sua própria existência, e a
verdade que ela, enquanto tal, encobre. O que, no processo de gerenciamento
das percepções – para nós, um problema político fundamental, talvez mesmo
o principal, de nossa era - nos conduz à necessidade de desvendar o locus daquela verdade das coisas verdadeiras,
de discernir sua topografia, por entre a geografia política das versões, das
ideologias e das ilusões.
Devemos, contudo, ao lançar nossas vistas à essa paisagem,
despir-nos de qualquer pretensão à completa neutralidade, que seria um atributo
verdadeiramente divino – ou, pelo menos, extraterrestre - tal o impossível
distanciamento que exigiria com relação ao objeto pensado, do qual nós próprios
– os seres que o pensam – fazemos parte.
A vida humana, na vastidão de suas possibilidades,
é mais ampla que qualquer sistema em que a pretendam aprisionar; assim, diversamente
do que busca aquela ordem de que falamos, que se pretende única, diremos,
ou melhor, rediremos, com Christian Ruby, “que todas as coisas são rediscutíveis,
que a política permanece por inventar, a história não se acaba” (1998: p.
144).
Diremos,
enfim, que todas as coisas são suscetíveis de serem diferentes do que são.
[1] Não obstante, no seu papel de instrumento de
resistência contra os arbítrios – e, eventualmente, contra as formas
arbitrárias de apropriação - realocado pelas instâncias coletivas organizadas
da sociedade civil, como meio de sua afirmação sócio-política, o direito possa
vir a ser, também, uma das tecnologias potenciais de inclusividade e de
igualitarismo substancial.
[2] Embora a influência própria de cada instituição -
ao menos das principais -, em países de modernidade tardia, como é o caso do
nosso, – continue grande - ainda que em declínio.
[3] Expressão que tomamos não no sentido de lugares públicos, mas como locus de expressão e ação política.
[4] Não estamos nos referindo, aqui, apenas à
autoridade formalmente constituída como tal, mas a qualquer pessoa individual
ou órgão a cujas manifestações seja socialmente reconhecida, explícita ou
implicitamente, a qualidade de magister
dixit. Como exemplo dessa segunda categoria, podemos citar o Jornal Nacional, da TV Globo.
[5] O fato de um processo de formação de
subjetividades instilar um modo de pensar objetivista não se constitui, como
pode à primeira vista parecer, em um paradoxo; as subjetividades são
conformadas, precisamente, pela sua limitação – pela contenção, pela subordinação
e pelo direcionamento de suas potências de vida.
[6] Termo que aqui empregamos no mesmo sentido em que
o faz Valter Duarte Ferreira Filho, na tese citada, como a adjetivação “de toda
ação ou teoria em que se considere apenas as conveniências humanas individuais,
sem obrigações de qualquer espécie com terceiros.”
[7] Termo aqui utilizado não em sentido idealista
ou transcendental, mas enquanto
efetividade constituinte.
[8] Não no sentido moral que vulgarmente se dá a esse
termo, mas na sua acepção latina originária de cum-rumpere, partir-se.
[9] Muito embora a eventual ampliação da margem sempre
presente de desencanto e desesperança, somadas a não-percepção de alternativas,
possa abrir caminho, mais uma vez, para totalitarismos, à direita ou à
esquerda. Especificamente no que tange ao quadro brasileiro atual, o aparente
esvaziamento das expectativas com relação à esquerda, decorrente da direção (ou
da não-direção) tomada pelo governo Lula, que pode se projetar, na percepção
majoritária do eleitorado, para toda a esquerda, e um possível processo
ampliativo da fragmentação desta última, em decorrência dessas circunstâncias,
conjugado ao quadro de violência urbana (principalmente) e rural
(eventualmente), fazem parecer mais provável, numa hipótese totalitária, uma
guinada à direita. Seria, inclusive, menos incompatível com a deontologia
neoliberal que cada vez mais fundamenta as relações sociais atuais.
[10] O art. 10 da Constituição
Federal de 1988, por exemplo, afirma que o Brasil é um “Estado Democrático de
Direito.”
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Resumo:
Os valores integrativos que alicerçaram a idéia de democracia na polis grega
– um espaço público integral, em cujo interior se desenvolvia, de forma
igualitária e consciente, a submissão à lei e a simultânea participação na sua
elaboração e também num Estado capaz de agir eficazmente – foram subvertidos
pela civilização liberal pós-moderna, levando à neutralização política do demos
e da democracia.
Palavras-chave:
democracia, polis, demos, valores integrativos, justiça, verdade,
ideologia.
* O autor
é mestrando em Ciência
Política do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.