Conheci
Marcos Almir Madeira em uma reunião da Academia Niteroiense de Letras no ano
de 1998. Depois da sessão tive a oportunidade de lhe dar uma carona até São
Francisco e durante o trajeto conversamos e trocamos telefones.
Depois
disso, sempre mantivemos muito contato e tornamo-nos amigos. No mês de abril
de 2003 liguei e perguntei se ele escreveria um artigo para o Jornal da OAB-Niterói,
prontamente disse para eu passar no P.E.N. Clube do Brasil dez dias
depois.
Chegando
ao P.E.N. Clube, eu o aguardei observando a maravilhosa vista da Baia
de Guanabara. Ao me receber, ele deu uma lida no texto e assinou. Em seguida,
conversamos um pouco, tirei várias fotos e me despedi com um abraço. Mais
do que advogado, sociólogo, professor e ensaísta; o homem Marcos Almir Madeira
deixa saudade em um jovem como eu, por sempre estar disponível a aprender
e a falar, a ouvir e a ensinar.
Leonardo Petronilha
O DIREITO SOCIAL NO BRASIL*
Marcos Almir Madeira**
A história política do país, em
termos de ensino em diferentes níveis e mesmo de abordagens, em livros e
revistas especializadas, tem feito algumas vítimas. Em certos casos, não creio
que por malícia ou partidarismo estreito. Mas a verdade final é que se tem
passado para as camadas jovens uma visão incompleta, fruto de certa ótica
unilateral dos acontecimentos e dos homens que os marcaram. Entre esses está
Getúlio Vargas, cujo suicídio enlutou o Brasil majoritário.
Meus netos e outros jovens do meu
convívio formam exemplo: o Vargas que lhes aparece em certos compêndios, ou na sala de aula, é o leader do
Estado Novo; conseqüentemente, o ditador que desfechou o golpe de 1937. E isso,
tão só, é o que sabe a maioria dos rapazes e das moças, condenados eles e elas,
à ignorância programada. Ficam sem
saber que a ação política do leader é a soma de duas etapas inteiramente
opostas, como expressão de uma filosofia do poder e da visão social do ato
político. Silencia-se freqüentemente sobre o Vargas de 1930, chefe de uma
revolução de profundidade, democrática em essência e a que deve o Brasil um
largo processo de retificação política, social, econômica e educacional;
processo, a bem dizer, de alongamento da norma democrática.
Revolução, sabemos, é a quebra de
padrões ou complexos culturais; por isso mesmo, mudança, troca de
métodos ou técnicas de serviço e de produção.
Antes de 30, era corrente em boa
parte das nossas elites a conclusão, entre delirante e grotesca, de que a
questão social no Brasil vinha a ser um “caso de polícia”. A isso respondeu a
Revolução liderada por Vargas com a criação do ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio. Era a resposta do espírito cristão de reforma e de
justiça extensiva. Resposta, portanto, do Estado dinâmico ou protagonista ao
Estado espectador, passivo, imobilista. E será surpreendente recordar que
enquanto a nossa primeira Constituição republicana, de 1891, não continha um só
dispositivo sobre capital e trabalho, nossa Igreja Católica, sábia e sólida,
lançava, no mesmo ano, aquele genuíno código de direitos sociais, que foi
Encíclica Rerum Novarum, obra mater do Papa Leão XIII. Ele madrugara para a
Questão Social; nós, neste trópico, ardendo de contradições e nesta América
Latina, eriçada de injustiças, já naquela altura dormíamos, deitados em
berço esplêndido... de costas para a realidade social que já o Vaticano
absorvera tão lucidamente. Aliás, o sentido de solidariedade, de justiça e a
tendência para a proteção ou o socorro aos mais fracos (os excluídos de
hoje), Getúlio Vargas já bem revelava em sua mocidade. É João Neves da Fontoura
quem conta, numa das suas Orações dispersas, editadas em Lisboa; o
colega Getúlio, após ter pronunciado certo acusado, surpreendeu o júri
com um redondo pedido de absolvição. Fundamentou a inovação estrepitosa com o
argumento de que a sua função “não implicava no dever de pedir sistematicamente
a aplicação da pena”. E confessava que “apreciara erroneamente as circunstâncias
de fato, tanto mais quanto o réu era um desvalido, que só fora defendido
pelo benefício da assistência judiciaria”. Não estaria aí, para a consciência
social do Promotor, o sistema nervoso ou o coração do problema? Seja como seja,
o gesto do novo bacharel desmonta o pressuposto ou mesmo a increpação de
demagogia, partida daqueles que muitos anos mais tarde viriam lançar contra ele
o mesmo labéu, já então por sua política trabalhista, na presidência da
República. Mas a verdade inteira é que as idéias solidaristas, em termos
nítidos de convergência para a recuperação social do operariado e a reparação
de injustiças históricas, já haviam feito ninho em sua sensibilidade, naquele
ano longínquo de 1906, quando publicou, ainda quinto-anista de Direito, na
revista Panthum, uma crônica que merece o qualificativo de eloqüente,
mas vem a ser, antes de tudo, uma aguda reflexão crítica sobre o alcance
sociológico do romance de Zola. Aqui está um dos tópicos mais expressivos do
pequeno ensaio escrito pelo moço de São Borja: “Ninguém melhor que Zola tinha o
sentimento da conflagração das massas e sabia objetivar no romance o movimento
das multidões. O arrojo coletivo desses operários, individualmente humildes,
educados na passividade cega da obediência, como que desagregam de si parcelas
de energia.
O fundo idealista, que nele (em
Zola) permanecera, ressurge na radiosa apoteose de uma humanidade futura,
redimida e glorificada pelo trabalho, pela ciência e pela justiça. Observando
as classes inferiores, deu ao romance essa larga feição social, amenizada de
uma grande dose de bondade humana”.
Não terá o presidente de 1930
confirmado o estudante de 1906?...
Eis a mais inesperada das
coerências... Inesperada e sadia.
*Este
artigo foi publicado no Jornal da OAB-Niterói (Ano VIII, n° 58, Junho de 2003)
e também autorizado para ser publicado em achegas.net.
**Foi Presidente
do P.E.N. Clube do Brasil (Centro Brasileiro da Associação Mundial de Escritores),
Membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico.