O HOMEM DA ILHA DE VERA CRUZ, NA CARTA DE CAMINHA

 

Aluizio Alves Filho*

 

Pelas informações contidas na célebre carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I, cognominado “O Venturoso”, foi de Diogo Dias, identificado como almoxarife de Sacavem e definido como homem “gracioso e de prazer”, a iniciativa de patrocinar o que pode ser imaginado como o prelúdio do primeiro arrasta-pé na Terra Nova, congregando intrépidos navegantes e nativos da região. Segundo Caminha, no quinto dia do descobrimento, quando os portugueses exploravam o litoral do que viria a ser posteriormente conhecido como baía Cabrália, após navegarem por ribeira “de muita água e muito boa”, o comandante Pedro Álvares Cabral ordenou o desembarque na cabeceira de um rio. Os nativos, que “eram muitos”, receberam os visitantes de braços abertos “dançando e folgando uns ante outros, sem se tomarem pelas mãos”.  Diogo Dias, que levava consigo “um gaiteiro nosso com a sua gaita” - que faz lembrar o “coqueiro que dá coco”, da Aquarela do Brasil, de Ari Barroso - pediu-o para tocar e em seguida “meteu-se com eles a dançar tomando-os pelas mãos”. Ainda informa o missivista que os nativos “folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita”.

Segundo uma versão bastante popularizada, o escrivão da frota cabralina, antigo mestre da casa da moeda da cidade do Porto, tratou o descobrimento com eufemismo. Teria dourado a pílula com o propósito de agradar o rei, à quem, no final da missiva, solicita um favor pessoal:  mande vir da ilha de São Tomé, Jorge de Osório, meu genro”. Ora, por suas belezas e riquezas naturais a região descoberta não precisa ser tratada de forma eufêmica, como é indicativo a quantidade dos que a decantaram e decantam séculos depois de Caminha. Apenas num único particular não devemos acreditar na sinceridade das considerações contidas na carta de Caminha. Quando logo após escrever que não tem o propósito de “enfeitar nem enfear” o que lhe compete narrar, desculpa-se por ser o que para bem contar e falar, o saiba pior que todos fazer”, e roga ao rei para que tome sua “ignorância por boa vontade”.  Pelo contrário, parece uma benção do céu que a frota cabralina tenha contado com o serviço desse sagaz Pero, que vai e caminha pelo litoral da então Ilha de Vera Cruz fixando com invulgar engenho e arte as impressões do que pensa, sente e vê. Caminha legou-nos não um frio documento de nossa história pátria, mas sim um testemunho vivo e emocionante, autêntica certidão de batismo do homem e da Terra Nova.

É na qualidade de escrivão da armada que tinha por destino Calicute, na Índia, onde deveria assumir o posto de contador dos negócios portugueses na feitoria a ser fundada naquela cidade, que Caminha escreve ao rei. É, portanto, como funcionário qualificado da coroa, por obrigação profissional e nos limites de sua competência que, a exemplo do capitão-mor e de outros capitães, informa sobre a boa nova. Deixa esta intenção patente logo ao início da carta ao observar que não fará considerações sobre aspectos técnicos como “marinhagem e singradouros do caminho”, ponderando que são os “pilotos que devem ter esse cuidado”. Sobre a viagem, apenas cita datas e localiza acidentes geográficos relacionando-os aos acontecimentos que dá por relevantes. Lamenta e contabiliza, sem entrar em aspectos técnicos, a perda da nau de Vasco de Ataíde, que soçobrou na altura das ilhas de Cabo Verde.

Na carta de Caminha há genéricos comentários sobre a flora e uma breve avaliação sobre a potencialidade econômica da Terra Nova que os portugueses, sem de longe ter como imaginar sua real dimensão continental, supõem ser uma ilha que tem de 20 a 25 léguas de costa. Tendo em vista que a posse de substantivas quantias de metais preciosos era o centro de gravidade do sistema econômico da época, Caminha preocupa-se em informar ao rei sobre as razões da suspeita dos navegantes de que tais metais pudessem existir na terra achada, mas conclui enfaticamente: “nela até agora não pudemos saber que haja ouro nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro, não lho vimos”. Insinuando a oportunidade de Portugal vir a colonizar a ilha de Vera Cruz, o escrivão pondera:  Esta terra senhor (...) é por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos (...) em tal maneira é graciosa que querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem”. A carta também contém algumas informações sobre a fauna. Caminha fala em pombas seixas, rolas, papagaios verdes, aves pretas com o bico branco e os rabos curtos, grossos camarões, etc. Mais o que concretamente deixa o escrivão boquiaberto são os nativos que habitam aquela dita ilha de Vera Cruz. O modus vivendi e o caráter do homem da Terra Nova é o tema dominante da longa missiva que o antigo mestre da balança da Casa da Moeda do Porto endereça ao venturoso D. Manuel I.

A crença na existência de monstros marinhos e de terras exóticas habitadas por criaturas disformes povoou, durante séculos, a imaginação do velho mundo. De uma forma ou de outra dessas crenças já nos dão notícias Homero e Platão, para nomear apenas dois clássicos gregos lidos e relidos até os dias presentes. Segundo Afonso Arinos de Melo Franco, “a origem do mito dos monstros mais ou menos humanos ou dos homens mais ou menos monstruosos, perde-se nas brumas da antigüidade ocidental” (Franco: 1976; p. 3). É bem provável que tenham sido os fenícios os pioneiros no estabelecimento do comércio marítimo regular entre a Ásia e o Mediterrâneo que, inicialmente, séculos antes de Cristo, espalharam as primeiras notícias sobre terras exóticas, monstros marinhos e criaturas disformes. Em parte como forma de valorizar os produtos que comerciavam, amedrontando e desencorajando possíveis rivais europeus, em parte pelo próprio assombro do alto mar, com alucinações em noites de breu e tantas armadilhas que hão de ter ceifado incontáveis vidas.

À 9 de março, com cerca de 1500 tripulantes comandados pelo senhor de Belmonte, 13 caravelas partiram do porto de Palos, em Lisboa, rumo a Calicute - há pouco mais de 500 anos. Na véspera, em homenagem aos navegantes, houve missa, procissão e festejos com a presença do rei, dos poderosos e da arraia miúda. Ao final, a massa entoou a “Balada da Partida“. Lenços brancos confundiam-se com lágrimas, esperanças, saudades, estandartes cristãos e bandeiras lusitanas. Durante luas e luas os intrépidos navegantes rasgaram o mar Tenebroso. Cerca de um mês e meio após a partida, à 21 de abril, depararam com vegetação costeira, sentindo o gosto de terra à vista. Se Cabral tinha a intenção de encontrá-la é coisa que ao certo, provavelmente, jamais saberemos, tantos e bem fundamentados são os argumentos contra e a favor.

À 22 de abril, quarta-feira, aves “fura-buxos” sobrevoaram as embarcações e logo após os navegantes avistaram um monte “mui alto e redondo” que, por estar na semana de Páscoa, “o capitão deu o nome de monte Pascoal e à Terra da Vera Cruz”. Dali ao desembarque foi como um fechar e abrir de olhos.

Quando Caminha bem abriu os olhos o que tinha diante de si era radicalmente diverso do que o bestiário medieval fixara na alma européia. Ao que se saiba, era a primeira vez que lusitanos e tupiniquins ficavam vis-à-vis. No lugar de monstros dantescos o escrivão viu seres humanos, reza nas Sagradas Escrituras, feitos a imagem e semelhança do Criador. “Nosso Senhor  lhes deu bons corpos e bons rostos como a bons homens” - escreve extasiado o escrivão!

Uma vez que os portugueses não reproduziram o equívoco de Cristóvão Colombo que julgou ter chegado à Índia e não a um mundo novo, Caminha em nenhum momento refere-se aos nativos da Vera Cruz como índios. Classifica-os como “pardos, maneira de avermelhados”. Mil vezes repete que são belos, limpos e sadios. Toma a nudez dos nativos como sintoma de pureza, inocência e ingenuidade, provavelmente tendo por paradigma que nus estavam os homens no paraíso, antes de pecarem. “Andam nus, sem nenhuma cobertura, e estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto”.

Referindo-se ao primeiro encontro entre os nativos e os navegantes, observa um estudioso que Caminha fixou o acontecimento para “a posteridade nos mínimos detalhes” (Bueno: 1998; p. 95).

Ainda, que de forma breve, algumas condições históricas e sociais - além das anteriormente insinuadas - que balizam e dão forma ao mais famoso relato do escrivão, necessitam ser examinadas. Em primeiro lugar é necessário ter em mente que escrevendo na virada do século XV para o XVI, Caminha não poderia ter se valido do conceito de cultura ao tentar posicionar e compreender os nativos que tinha perante os olhos. Este conceito, que possibilitou grande desenvolvimento na antropologia contemporânea, era inteiramente desconhecido à época dos descobrimentos ultramarinos, só vindo a ser concretamente elaborado na primeira metade do século XX em função de trabalhos, hoje clássicos, publicados por Leo Frobenius, Ruth Benedict e Ralph Linton, entre outros.

Em segundo lugar, e pela mesma razão anteriormente indicada, Caminha não poderia orientar-se pelas falaciosas teorias da superioridade racial. Essas só foram ganhando forma a medida em que o tráfico negreiro foi sendo incrementado ao longo do século XVI e subsequentes, “como fórmula preciosa para justificar o domínio branco sobre o resto do mundo” (Leite; 1969, pág.28).  O pai do chamado “racismo científico” - hoje inteiramente desacreditado - foi o conde francês Arthur Gobineau que em meados do século XIX, dentre outras sandices, afirmou que a raça branca possuía o monopólio da beleza e da inteligência.

No caso de Caminha, como diz a sabedoria popular: “era uma no cravo e outra na ferradura”. Na ferradura, pois não ter o culturalismo entre as teorias referenciais de sua época era estar desprovido de uma ferramenta fundamental para compreender objetivamente o  sistema de valores e as instituições que orientavam a ação social dos tupiniquins. Era como aventurar-se no breu do Tenebroso sem conhecer a bússola, as estrelas e o astrolábio. No cravo, pois estar longe do espectro de Gobineau & Cia era poder ver o outro, desnudo sob seus olhos, sem ter que medi-lo pela deformante lente do preconceito racial.

É impregnado de inevitável eurocentrismo, mas com grande argúcia, que o escrivão, valendo-se da observação direta, de comparações e analogias, narra ao Venturoso os costumes e o caráter do  povo que tem ao alcance de sua vista. Comparando-os aos portugueses, referindo-se a técnica, avalia tratar-se de “gente bestial e de pouco saber”, observando que os nativos além de não conheceram ferro, “não lavram, nem criam, nem há aqui boi nem vaca, nem cabra nem ovelha, nem galinha”. Entretanto, Caminha suspeita que na alimentação dos nativos está o segredo de seu vigor físico e aparência saudável, ao escrever: “nem comem senão desse inhame que aqui há muito, e dessa semente e frutos que a terra e as árvores de si lançam; e com isso andam tão e tão rijos e tão nédios, que o não somos tanto, com tanto trigo e legumes comemos”. Com o propósito de tornar mais facilmente inteligível sua descrição de povo até então desconhecido pelos lusitanos, Caminha estabelece algumas analogias entre ambos. Por exemplo, procede dessa forma para explicar as habitações dos tupiniquins, definindo-as como: “umas choupaninhas de rama verde de tetos muito grandes como dentre Douro e Minho”.

Caminha ainda tece outras ricas considerações sobre hábitos e utensílios utilizados pelos nativos. Mas é sobretudo quando reflete e descreve o breve convívio dos portugueses com os homens da Vera Cruz que a carta atinge o ápice, aflorando qualidades dos nativos, tais como:

1)  Cooperação. Em várias passagens da missiva Caminha menciona formas de ajuda prestada espontaneamente pelos nativos aos visitantes, como ao carregarem lenha e colocá-la nos batéis. Em relação ao fato, o escrivão comenta que os nativos “labutavam com os nossos e tinham muito prazer”.

 2) Respeito. Referindo-se a primeira missa oficiada na Terra Nova, por Frei Henrique Soares, no ilhéu da Coroa vermelha, em 26 de abril, domingo de Páscoa, Caminha destaca que o respeito foi o denominador comum do procedimento adotado por parte dos muitos nativos presentes ao santo ofício.

3) Confiança no próximo. Caminha estima que ao fim de poucos dias os nativos “andavam mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles”. Estima também: “são muito mais nossos amigos do que nós deles”.

Importante registrar que as avaliações de Caminha sobre procedimentos dos nativos são similares as de outros navegantes que estiveram no Novo Mundo no mesmo contexto histórico da frota cabralina. Não se trata, portanto, de avaliação isolada e meramente subjetiva. Cristóvão Colombo, descobridor da América (1492), define os nativos da ilha de Guanaani como “mansos e pacíficos”. Vicente Pinzón, que velejou pelo rio Amazonas meses antes da estadia de Cabral na baía que hoje leva seu nome, fala em “gente mansa e sociável”. Nos primeiros relatos sobre contatos entre europeus e nativos predominam menções sobre o procedimento amigável e cordato dos habitantes do Novo Mundo. Em regra, as exceções ocorrem em relatos de navegantes que tentaram seqüestrar e escravizar nativos, que responderam as violências dos algozes no mesmo tom.

Vale frisar que as referências feitas no parágrafo anterior são apenas em relação aos primeiros contatos. Posteriormente, vieram os colonizadores e, em decorrência, a destruição sistemática de vidas e culturas, com a escravização de negros e nativos. Como “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, tanto se utilizou a palavra “índio” para definir qualquer tribo nativa do Novo Mundo que a denominação acabou triunfando. Os próprios nativos acabaram introjetando a classificação imposta pelos colonizadores, sendo “índio’’ termo largamente consensual em nossos dias.

Historicamente, os índios mantiveram diferentes relações com diversos grupos de imigrantes que, esperançosos, para essas terras americanas vieram, construindo um país e uma nova nacionalidade. Fruto de tantos contatos e idealizações, os índios foram e são representados de diversas maneiras. Como numa produção cinematográfica norte-americana, os índios ora fazem o papel de mocinhos - livres, puros, bons -, ora fazem o papel dos bandidos - vadios, ferozes, indolentes. Em ambas circunstâncias, de forma estereotipada, servem como arquétipo para construções de identidades antípodas do povo brasileiro. No primeiro caso, simbolizam suas grandezas, no segundo, suas mazelas. Os índios podem ser tanto colocados no paraíso quanto no inferno.

Jean-Jacques Rousseau, em “O Contrato Social” (1762), valeu-se de livros de viajantes e cronistas que focalizavam qualidades positivas dos índios do Novo Mundo para fundamentar a sua teoria do “bom selvagem”, vendo no pacto feito em torno da bondade natural a única forma possível dos homens fundarem uma associação política concretamente legítima, regida pelos princípios da liberdade, fraternidade e igualdade. Thomas Morus (“A Utopia”) e Tommaso Campanela (“A cidade do Sol”), entre outros pensadores da modernidade, também tiveram nativos e terras do Novo Mundo como argamassa de suas quiméricas propostas de reforma social. Inversamente, os adeptos do colonialismo mil vezes fundaram e justificaram a exploração de homens e a rapinagem de terras e riquezas americanas com base na ideologia da inferioridade natural de negros, índios e de povos miscigenados.

Ao redigir a missiva ao Venturoso não haveria Caminha de poder suspeitar dos incontáveis desdobramentos práticos e teóricos do feito português, com as surpresas que o devir sempre traz. O escrivão ao menos tornaria a ver a sua “santa terrinha”. Ele não fazia parte da tripulação de nenhuma das quatro caravelas que cobertas de especiarias e glórias regressariam à Portugal. Pero Vaz de Caminha faleceu em Calicute.

A carta de Caminha, ao lado da relação do piloto anônimo e da carta do mestre João Farás, é um dos raros documentos do descobrimento que chegaram até nós. As labaredas de um grande incêndio em Lisboa, em 1580, incumbiram-se de devorar a maior parte.

Quase ao final da carta, Caminha, que estimara os nativos como “gente boa e de boa simplicidade”, após louvar as qualidades da terra, sugere ao rei: “porém o melhor fruto, que nela se pode fazer será salvar esta gente e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar”.

Após as recentes comemorações do quinto centenário da descoberta do Brasil, pode-se dizer que o melhor fruto e a principal semente a ser plantada nesta terra, ainda é a sugerida por Caminha. Oxalá um dia os ecos da sugestão que o escrivão da frota cabralina deu ao rei, em priscas eras, ressoem concretamente: “salvar esta gente (...) gente boa e de boa simplicidade”.

Gente que os índios, como parte do todo, tantas vezes simbolizam - o povo brasileiro!

 

Bibliografia:

BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral RJ: Editora Objetiva, 1998.

------------------------ Náufragos, traficantes e degredados: as primeiras expedições ao Brasil RJ: Editora Objetiva, 1998.

CAMINHA, Pero de Vaz. Carta a el rey D. Manuel. Edição ilustrada e transcrita para o português contemporâneo e comentada por Maria Angela Vilela. SP: Ediouro, 1999.

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O índio brasileiro e a revolução francesa. 2a. ed. RJ: Livraria José Olympio Editora, 1976.

LEITE, Dante Moreia. O caráter nacional brasileiro. 2a. ed., SP: Editora pioneira, 1969.

 

Resumo:

Trata-se de uma releitura da carta de Pero Vaz de Caminha que tem como propósito situá-la histórica e sociologicamente com o objetivo central de refletir sobre a maneira que o escrivão da armada cabralina define os habitantes do Novo Mundo.

 

Palavras-chave: Descobrimento. Carta de Caminha. Identidade nacional.



* O autor é doutor em Sociologia (FLACSO/UnB). Coordenador do Programa de Mestrado em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Mestrado em Direito Político do Instituto Metodista Bennett.


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