CINEMA, TERROR E IDEOLOGIA1

 

Eurico de Lima Figueiredo*

                                                                                            

         Há algo de novo no fronte ideológico do império norte-americano: o cinema. Claro, não se trata de uma novidade em termos meramente tecnológicos. Afinal, faz mais de um século que  Louis Lumiére exibiu pela primeira vez, em  28 de dezembro de 1895, no boulevard  des Capucines, em Paris, o resultado  de suas magníficas descobertas. Claro, e mais uma vez ainda, não se trata de nenhuma novidade histórica. Todos os impérios, em todos os tempos, procuraram impor seus desígnios tanto através de seu poderes econômico, político e militar e - no que aqui mais de perto interessa -  ideológico. As artes e as ciências, as religiões e as filosofias sempre serviram a esse propósito. Trata-se de armas tão  sutis e refinadas quanto mortíferas: atacam por cima, invadem a cabeça. 0 que é novo  não decorre  da ação ideológica propriamente dita, tão antiga quanto os impérios, repita-se. A novidade surge, por um lado, em função das constantes descobertas tecnológicas e, por outro, das modificações da correlação de forças no plano das relações internacionais onde os EUA ocupam estratégica posição. Nas telas, o vilão de hoje pode ser o herói de ontem, e vice-versa. Rambo III (1988) é um bom exemplo. Localizado no Afeganistão, um personagem que tem tudo para ser Osama Bin Laden, hoje procurado “vivo ou morto”, é aliado do principal protagonista, Sylvester Stallone, na guerra em que o herói americano luta ao lado do povo afegão contra os invasores soviéticos.      

 Com o passar dos tempos, o cinema não  se transformou, apenas, na expressão por excelência da sétima arte, grande beneficiária dos  avanços das ciências e das técnicas, das artes e dos saberes em geral. Metamorfoseou-se no mais formidável instrumento de captação ideológica dos povos. Constituiu-se no mais portentoso centro de irradiação hegemônica da maneira de viver, pensar e sentir dos donos do poder imperial. O cinema – ao comando da luz, câmera, ação! - instalou-se na terra encantada do imaginário humano. Permitiu ao império, o império dos sentidos e das paixões. Exerceu seus ofícios tanto ali - no centro do poder - como aqui - nos subúrbios da periferia. Vem se desincumbindo de sua missão no melhor dos ambientes possíveis. Desarmado e receptivo – mascando chicletes, sorvendo sua coca-cola, comendo pipoca o espectador ingere a ideologia, absorve a hegemonia no plano mais determinante da vida humana: o inconsciente. E isso acontece não só nas salas de projeção, mas também na lugar onde supõe estar mais protegido: sua própria casa. Os filmes da TV aberta e a cabo, assim como os disponíveis nas locadoras, cumprem notável papel coadjuvante.

Hollywood seduziu-se  pelos mitos que ele mesmo criou, antes de exportá-los para toda parte. Imbuindo-se deles, pretendeu convencer, com autenticidade, a todos os demais. Se John Wayne transformou-se no intérprete máximo da epopéia moderna, a conquista do western, ou, para muitos, o próprio cinema americano por excelência, o outro John, o Ford, foi o maestro da sinfonia épica em celulóide. John Wayne , no entanto, é mais do que a  síntese complexa e sublimada do cowboy. Encarna arquétipos profundos da psique americana. Ele é um homem simples e ingênuo como Pluto,  aventureiro e destemido como Mickey Mouse,  decente e justo como Donald, não deixando de ser, entretanto,  igualmente rude, franco e determinado como ... John Wayne. Seus sucessores, como  por exemplo Bruce Willis e Harisson  Ford,  não têm o seu carisma nem sua presença. Reprisam, entretanto, alguns traços característicos dessa psicologia profunda do herói hollywoodiano. Incorporam às suas máscaras o cinismo e o culto à estética da violência pela violência, valores caros às cosmologias pós-modernas desde a criação de James Bond  em OO7 Contra o Satânico Dr. No (1963). Nas séries Duro de Matar (Willis) e Indiana Jones (Ford), as duas estrelas americanas, ao contrário do super-espião  inglês,  não degustam o sexo feminino como uvas  maduras;  mas, se não são tórridos amantes,   também não são anódinos. Para eles, como para o super-homem, o sexo não é o mais importante.

 

Terror como Gênero

 

            Tal como a literatura e a dramaturgia, o cinema tem percorrido os mais diversos caminhos da imaginação artística: a tragédia, o drama, a comédia, o melodrama. Em cada um deles criou e desenvolveu os mais diversos gêneros: a guerra, o science fiction , o policial, o musical, o faroeste, o religioso, o épico,  etc. Caminhos e gêneros foram se intercruzando, produzindo, nas oportunidades marcadas pelo êxito,  combinações feitas às vezes com talento, às vezes com gênio. Apocalipse Now (1979)  é um filme de guerra trágico. Stanley Kubrick em  2001 – Uma  Odisséia no Espaço (1969)  mistura a ciência de ficção com o drama de conotações metafísicas. Amor Sublime Amor (1961) de Robert Wise e Jerome Robbins,  retoma a tragédia de Shakespeare, Romeo e Julieta, localiza-a nas ruas nova-iorquinas e compõe um musical ganhador de dez Oscars. Em Quanto mais Quente Melhor (1959) Billy Wilder une em feliz matrimônio a comédia e o gênero policial. Barry Lindon (1975) de Stanley Kubrick mistura o drama de um oportunista, nascido no interior da Irlanda no século XVIII, com épicas cenas de guerra, fazendo intervir, em muitos momentos, a cínica e fina ironia que caracterizam as comédias sutis. Com isso, magistralmente, registra em celulóide a interpenetração da moral aristocrática, em decadência, com a ética burguesa individualista, em processo de ascensão, que prosseguirá de modo irreversível até atingir, nos dias de hoje, suas configurações mais complexas nos tempos pós-modernos. Foram os italianos, entretanto, os grandes produtores e diretores dos melhores melodramas. Os exemplos podem ser multiplicados à exaustão, embora, é claro, possam ser ordenados segundo o seu maior ou menor sucesso artístico.

As classificações acima, contudo, são apenas isso: meras classificações. Como todas elas, retém algo de artificial perante a complexidade da realidade que pretendem entender e nomear. Nos compêndios, dicionários e almanaques,  as fitas de “ação” ou “aventura” , dependendo dos critérios utilizados, podem estar localizadas em várias seções do compêndio consultado, como, por exemplo, na rubrica reservada aos filmes de guerra, ficção científica, suspense, faroeste, etc.  Como proposto acima, um filme de ficção científica pode ser também um drama; um musical, uma tragédia; um policial, uma comédia;  e assim por diante.

Pegue-se o caso de um clássíco como King Kong (1933) dirigido por Merian C. Cooper e Ernest Schoedsack. Genericamente, é um filme de aventuras, mas é também uma tragédia. Ao se apaixonar por uma bela moça, o gigantesco gorila, desde o início, está predestinado ao fracasso e à morte violenta. Pode ser visto, também, como um sci-fi , já que sua enorme estatura resulta de anomalias que se explicam muito mais pela  imaginação do que pela ciência, embora a primeira  retire desta última elementos de realidade. Nas  cenas finais, consideradas clássicas,  quando o gorila provoca pânico e destruição nas ruas nova-iorquinas, e luta contra os caças que o metralham no topo do Empire State Building , é um filme de terror na linha do cinema catástrofe. Esse terror, no que aqui interessa, expôs, talvez pela primeira vez, uma nascente obsessão americana que iria se repetir ad nauseam: a imolação pelos próprios norte-americanos dos seus mais prezados símbolos. Seria forçado demais se propor que a ruína do edifício (pontiagudo como um pênis varando os céus), denominado de império, revela indícios latentes de uma índole auto-castradora e, portanto, também auto-destrutiva? Mas, se assim for, não se pode aproximar essa cena de muitas outras, marcadas igualmente pelo sacrifício dos mais importantes símbolos do poderio americano?

 

Terrorismo como Máximo de Terror

 

 Houve algo de trágico no episódio de 11 de setembro deste ano justamente porque aquilo que até então tinha sido existente apenas no plano do imaginário, de uma hora para outra tornou-se pavorosamente real.  Os terroristas usaram o máximo do terror. Selecionaram os símbolos maiores da potência imperial: o militar (o Pentágono), o político (talvez, mas sem êxito, a Casa Branca ou o Congresso) e o econômico (as duas torres do  centro comercial do mundo, sendo que o primeiro signo, torre, pode ser  associado ao de palácio, que, por sua vez, designa a moradia do monarca ou do poder único. Depois daquele dia o mundo mudou no sentido de que a linha que separa a realidade da ficção foi rompida. A Terceira Guerra Mundial foi prefigurada em muitos filmes; mas não ocorreu. Permaneceu como um pesadelo da humanidade. O auge da guerra fria, entre outros subprodutos, entretanto, gerou o macartismo.  O ataque de forças terroristas aos símbolos do poder dentro dos EUA poderá ter conseqüências ainda imprevisíveis. Não se pode ainda saber quais elas serão. Entretanto,  não  errará muito aquele que  apostar  na demonização crescente do “outro diferente” do american way of life. O  cinema norte-americano não deixará de se pronunciar, ideologicamente, e  como sempre,  sobre a nova realidade. No exato momento em que o leitor estiver folheando, por acaso, estas páginas, pode estar certo de que as melhores cabeças pensantes em Hollywood estão se reunindo para traçar o modo pelo qual se dará, nas telas do cinema e dos vídeos, o contra-ataque (ideológico) do império.

 Os filmes de/sobre terrorismo resultam de um desdobramento dos de terror, porquanto não se poderá falar do primeiro sem os elementos do segundo. Existe horror quando se vê um homem, devido a experimentos terrivelmente equivocados, se transformar em um inseto assassino (A Mosca,1958). Existe horror quando um bem sucedido advogado (Will Smith) está sendo perseguido sem tréguas por agentes secretos da CIA, mantidos com seus impostos e que, sem saber a razão, o transformam em mortal Inimigo do Estado (1998).

 O terrorismo é, em suma, um sub-gênero do cinema de terror embora com ele não se confunda.

 

Terrorismo: Glória Feita de Sangue

 

            Assim como a literatura teórica sobre o terrorismo produzida pelos cientistas políticos apresenta divisões e classificações (não existe “o” ou “um” terrorismo, mas vários tipos dele), também os filmes made in USA procuram dar conta da diversidade desse sub-gênero. Mais ainda: são capazes de “inventar” outras modalidades do fenômeno. Nesse caso os roteiristas servem como catalisadores de uma realidade que, ainda latente, anseia por se tornar manifesta. E os diretores, como criativos intérpretes e condutores do fluxo narrativo, tornam-se responsáveis pela sua materialização cinematográfica. Os sonhos agradáveis ganham forma quando se trata de películas que cultivam as esperanças mais ternas, elevadas e caras à alma humana. Os pesadelos, ao contrário,  fazem aflorar os medos e as angústias da condição humana. O cinema de terror expressa esses últimos sentimentos.  O cinema que tem o terrorismo como matéria prima faz o mesmo, mas com uma fundamental diferença. Esses medos e essas angústias ganham expressão político-ideológica.

 A espetacular destruição das torres do WTC no dia 11 de setembro do ano passado já estava anunciada na crônica cinematográfica norte-americana, como se ela estivesse preparando o público, no plano do inconsciente, para a brutal realidade. Os países que se transformam em impérios, assim como os homens dotados de excepcional poder, na sua marcha triunfal rumo à glória, sabem que as benesses da conquista requer inquebrantável  determinação. Muitas vezes é preciso pisar nos mais fracos como se esfarela as baratas com o calcanhar das botas. Entretanto, os seres humanos não são meros insetos. Eles são feitos de carne e osso que, quando carbonizados pelas bombas de napalm, experimentam o horror do inferno nas peles que se descolam dos corpos. Não existe o silêncio dos inocentes: seus gritos e sussurros ressoam pelo mundo devido a ação da consciência moral que cada homem traz dentro de si. O americano médio por certo deverá se orgulhar da posição impar que seu país atingiu. Mas deverá igualmente sofrer ao guardar, nas regiões mais recônditas  de sua humanidade, os massacres promovidos pelos seus compatriotas, ali e acolá. Por outro lado, a globalização estreitando  os laços de solidariedade entre os habitantes dos mais diversos países do planeta, força a criação de uma opinião pública que extrapola os limites das nacionalidades. A política de canhoneira do auge do imperialismo encontra hoje impecilhos objetivos e se arrisca a uma condenação mundial que deslegitima os poderes que a patrocinam. Os norte-americanos comuns estão começando a se aperceber da existência de uma espécie de crescente controle social da chamada global village. Penosamente vão tomando consciência de que os impérios têm a sua glória  feita de sangue. E de culpa também.

 

Nova Iorque sob o Domínio do Medo

 

Na abundante filmografia americana sobre o terrorismo durante a década dos anos 90, dois filmes prenunciaram, com grau maior ou menor de sucesso, o nascimento do ovo da serpente.

Bruce Willys em Nova Iorque Sitiada (1998) faz o papel de um general que não deseja assumir o comando do estado de sítio da apple city, ameaçada por terroristas de origem árabe que tramam o império do medo. Instado pelo Presidente dos EUA, roga para que não lhe seja dada a missão. Sabe que os políticos não objetivam a destruição de seus adversários, mas o triunfo pacífico de seus objetivos. (A democracia se caracteriza, entre outros aspectos, pela rotatividade serena do poder). Mas está plenamente consciente que os militares, na busca da vitória final, precisam liquidar seus inimigos ou, pelo menos, pô-lo de joelhos. Designado para cumprir a missão, põe mãos à obra: ocupa militarmente a cidade, decreta o toque de recolher, estabelece um campo de concentração onde confina a população muçulmana. A lei marcial autoriza o exercício da tortura. O próprio general a prática. Está convencido de que não se obtém informações vitais com flores e bombons, mas com pancada, sangue e dor, muita dor. A eventual morte (física ou moral) do prisioneiro faz parte das regras do jogo. Não haverá novidade aí para os norte-americanos, por certo. Não se pode supor o silêncio dos inocentes. Nem o mais pacato quiet american  pode olvidar o que os soldados de seu país andaram fazendo nas muitas guerras e intervenções em que  têm participado.  O novo é que tudo se passa na cidade mais cosmopolita deles.  E a atualidade do filme está aí mesmo, quando se discute um conjunto de medidas legais, que, se implementadas, poderão ameaçar a preservação da memória constitucional dos EUA. E, através de efeitos de demonstração e irradiação, da própria democracia em todo o mundo.        

O segundo filme se refere ao que ocorreu às 12:57 do dia 26 de fevereiro de 1993: o primeiro atentado ao WTC. Planejado e executado por terroristas árabes, matou seis pessoas e deixou cerca de 1000 feridos, muitos em estado grave. A reconstituição dos acontecimentos que culminaram com o ataque foi feita em O Grande Atentado (1997), filme que não chegou ao grande circuito. A película narra, em tom semi-documental, a ação desenvolvida, durante anos,  por um grupo de terroristas até a explosão das bombas no subsolo do centro comercial.

Filmado em flashback, inicia-se com o depoimento de um agente especial do FBI perante o ministério público norte-americano. Interpretado por  Peter Gallaghher, o único mais conhecido do elenco e correto ator coadjuvante (como em A Beleza Americana, 1999), o policial acaba por expor uma verdadeira comédia de erros. O bureau é retratado como totalmente incapaz de prevenir a investida do terror, embora tenham sido abundantes os indícios em suas mãos. A justiça , incapaz de interpretar as leis tendo em vista as necessidades dos novos tempos na América, é leniente. As autoridades da imigração –tantas vezes consideradas rígidas por muitos turistas que viajam para os EUA e para os milhões que lá vivem ilegalmente- é, ao contrário, vista como hesitante, frouxa e, assoberbada por demandas acima da sua capacidade operacional. Incompetente. As recentes revelações divulgadas pela imprensa norte-americana confirmam isso tudo. O Presidente Bush estava informado pelos órgãos de inteligência de seu país que se planejava um atentado terrorista em larga escala, mas não só  deixou de levar ao grande público a notícia, como também não soube acionar o aparato de segurança sob seu comando de modo  que o atentado pudesse ser evitado. E é aí que se esconde uma das mensagens escondidas mais insidiosas e atuais não só neste filme em particular, como em muitos outros. Embora os EUA tenham, além do maior PIB do mundo, as forças armadas mais poderosas, a mais bem equipada polícia e o sistema judiciário mais rico, tudo isso é muito pouco. Clama-se por  mais e mais. O risco, então, se torna evidente. O aumento dos mecanismos de coação, sem a contrapartida da manutenção do prevalecente sistema democrático, encerra questões potencialmente explosivas para o futuro das relações internas nos EUA. E, assim, devido ao lugar estratégico ocupado por esse país nas relações internacionais, para a própria sociedade mundial.

Embora na escala do terror não se possa igualar os dois atentados é preciso se lembrar que todos os implicados no primeiro ataque ao WTC, sem se mobilizar o aparato bélico do país para a guerra, foram presos, julgados e condenados. O último deles, Ramin Yousef, foi encontrado somente em 1995, quando morava no Paquistão. No entanto é dele a fala mais importante do filme. Na última cena, fugindo do país, seu helicóptero sobrevoa os céus nova-iorquinos. Como se mirasse o caminho para o paraíso, olha com ironia para as câmeras, e diz:

 

 “Na próxima vez derrubarei as duas torres”.

 

A ficção imita a realidade, dizem. Às vezes, a prevê. E isso talvez porque os vôos da imaginação, na medida em que expressam alegorias oníricas que habitam o inconsciente coletivo, ancoram-se no solo vívido da experiência humana.



1 Este trabalho foi oralmente apresentado, em 2001, no seminário A Máquina Mortífera do laboratório Cidade Poder, dirigido pela Prof. Dra. Gizlene Neder e pertencente ao dep. de História da UFF.

* Chefe do Departamento de Ciência Política da UFF.


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