CORONELISMO, URNA ELETRÔNICA E VOTO: A ABIN E O REGIME DEMOCRÁTICO NO BRASIL

 

João Batista Damasceno*

 

“Não é o vinho que está estragado. É a garrafa”.

(Montesquieu)

 

O título deste artigo evoca o clássico de Victor Nunes Leal apenas para discutir o processo de escolha dos magistrados (Juízes, Desembargadores e Ministros) das instâncias que compõem a Justiça Eleitoral no Brasil (respectivamente Zonas Eleitorais, TRE's e TSE) e a participação da Abin (Agência Brasileira de Inteligência, ex-SNI) na produção do software para as urnas eletrônicas.

Naquela obra encontramos que "o ‘coronelismo’ é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente os senhores de terra" (Leal: 1997, p. 40). E mais: "Desse compromisso fundamental resulta as características secundárias do sistema ‘coronelista’, como sejam, entre outras, o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços públicos locais”. (Leal: 1997, pp. 40 e 41).

 Assim, como o vocábulo "coronel" continuou a ser atribuído aos chefes políticos locais, depois da extinção da Guarda Nacional, também se manteve a corrupção eleitoral pelo falseamento do voto, o apadrinhamento na prática política e na designação, discricionária, para as funções eleitorais.

 A corrupção eleitoral, por uma de suas modalidades, o falseamento do voto, real ou não, é um fantasma do qual nenhum pleito tem escapado no Brasil e é comumente utilizado pelos candidatos não-eleitos para justificar suas derrotas. Sua ocorrência efetiva, em alguns casos alegados e provados, serve como fonte de legitimação do discurso e contaminação de suspeição de todos os pleitos.

No sistema de votação com cédula, muitos foram os meios utilizados para falsemento do voto: 1) voto formiga, pelo qual um eleitor recebia uma cédula já marcada e devolvia a que lhe era entregue pelo mesário a fim de que esta, uma vez marcada, fosse entegue a outro eleitor; 2) a marcação pelo escrutinador das cédulas em branco; 3) a adulteração do voto; 4) a contagem de votos de um candidato para outro, com ou sem o consentimento do "prejudicado"1; 4) o falseamento das atas e depois dos mapas eleitorais; 5) o falseamento nas totalizações etc...

 A corrupção eleitoral sempre foi um mal do sistema eleitoral brasileiro e o aperfeiçoamento desta legislação foi o mote da campanha que resultou no descredenciamento de Júlio Prestes e culminou na vitória dos revolucionários de 1930.

Um espectro ronda as eleições presidenciais deste ano. De novo, é o fantasma do falseamento eleitoral. A assepsia da urna eletrônica, nada compreensível pelos eleitores e candidatos, e pouco compreensível por muitos juízes, permite o reforçamento de tais suspeições. Agrava este estado a participação da Abin (Agência Brasileira de Inteligência, ex-SNI) na produção do software para as urnas eletrônicas.

Assim funciona o processo eleitoral eletrônico: antes do dia da eleição as máquinas são "inseminadas" com o programa; no dia da eleição o presidente da mesa liga a urna e digita uma senha para ativá-la; é impressa uma lista, chamada "zeréssima", com o nome de todos os candidatos registrados, demonstrando que todos contam com zero votos na urna; no final do dia o resultado da votação de cada urna é gravado em um disquete e é impresso um boletim de urna com a totalização por candidato em cada urna; os disquetes são levados para os locais de apuração nos Estados, de onde os dados são transmitidos por rede para os TRE's e de lá para o TSE; cada disquete tem uma "identidade própria", que é verificada pelo computador da Justiça Eleitoral. Essa "identidade" é secreta e criptografada (gravada em código).

A Abin controla o programa que protege os dados inseridos nos disquetes, retirados da urna e levados ao local de totalização dos votos. A proteção é feita por meio de criptografia (embaralhamento de dados na urna e desembaralhamento nos computadores de totalização). O Cepesc (Cento de Pesquisas em Segurança das Comunicações), ligado à Abin, é o único órgão de controle deste processo.

Peritos da Unicamp propõem a troca do sistema de proteção feito por criptografia por sistema de assinatura digital, considerado mais confiável, além da contratação de especialistas independentes para avaliar a preparação dos programas e a apuração de votos.

A violação do painel do Senado, no ano passado, e a fraude nos computadores da Proconsult, empresa responsável pela totalização dos votos no Rio de Janeiro na eleição de 1982, fundamentam o receio de partidos de oposição e membros da sociedade civil, preocupados com a possibilidade de falseamento do resultado por um órgão governamental despido de isenção, como é a Abin.

Há dentre candidatos da oposição receio, justificado ou não, de que os programas possam ser alterados entre o início de agosto, quando, por exigência legal, são expostos aos fiscais dos partidos e a semana antes da eleição, quando são "inseminados". Outro receio é de que a fraude poderia se dar no transporte dos programas da rede de informática do TSE para os TRE's e Zonas Eleitorais. Tais programas são gravados para o transporte em "flash card" (tipo de disquete) na ausência de fiscais, o que torna o processo mais desconhecido.

Nas eleições deste ano espera-se que cerca de 19 mil urnas eletrônicas (menos de 5% do total) estrearão o sistema de geração de um voto impresso. Impressoras serão acopladas à urna eletrônica. O sistema permitirá ao eleitor conferir seu voto e possibilitará a recontagem em caso de suspeita de fraude. Para tanto, bastará o confronto do total da máquina com o total dos votos impressos. Ao eleitor não será entregue recibo do voto, pois tal poderia ser utilizado como meio para a quebra do sigilo da votação.

Mas não só de suspeita de falsidade sofre o processo eleitoral. O processo de escolha dos Juízes Eleitorais também contamina o processo.

A criação da Justiça Eleitoral em 1932 é tida como um marco na história do processo eleitoral no Brasil. A entrega da totalidade do processo, desde o alistamento eleitoral até a proclamação dos eleitos, à Justiça Eleitoral foi celebrada como importante vitória. As decisões passaram a ser tomadas por Juízes, detentores das prerrogativas de inamoviblidade, vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos, portanto com capacidade de produzir julgamentos afastados, ao menos teoricamente, das injunções político-partidárias e interesses diretos das partes. A princípio, o critério norteador das decisões judiciais é fundado no princípio da livre convicção motivada, ou seja, as partes fazem suas alegações, produzem as provas com as quais pretendem demonstrar os fatos alegados e o juiz, com liberdade na formação do seu juízo, acolhe uma das teses apresentadas, devendo tão somente fundamentar sua decisão, motivando o ato praticado, isto é, explicitando as razões de fato ou de direito que ensejou a decisão proferida.

Mas a justiça eleitoral, composta por membros sem interesse direto no pleito, quase sempre exerceu o papel formal de referendar os resultados e de presidir cerimônias de diplomação dos eleitos. O juiz não é um ator político-partidário. Não raro lhe escapam os mecanismos utilizados num processo eleitoral. A questão elementar de que eleição custa dinheiro e este deve vir de algum lugar e que a regularidade de uma eleição pode começar a ser garantida se regular a origem dos recursos, bem como a sua aplicação, não se apresenta como questão relevante.

 No Rio de Janeiro, depois das fraudes generalizadas nas eleições de 1994, que resultou na anulação das eleições, propôs-se a realização, em 1996, de "eleições limpas". Diversos encontros e congressos foram promovidos com os Juízes Eleitorais e montou-se estrutura para análise contábil das contas apresentadas pelos candidatos, dentre outras medidas. Naquela eleição, embora apenas na esfera municipal, foi possível verificar-se a rede de interesses e intrigas quando se pretende mexer em tal vespeiro.

Em nenhuma discussão sobre a reforma do Judiciário se propôs a modificação da estrutura da Justiça Eleitoral. Trata-se da mais tacanha estrutura, onde todos os membros escolhidos (todos mesmo), o são por critérios ditos discricionários.

O Tribunal Superior Eleitoral é composto de, no mínimo, sete membros: três são membros do Supremo Tribunal Federal, dois são do Superior Tribunal de Justiça e dois são advogados nomeados pelo presidente da república em lista sextupla lhe encaminhada. A forma de nomeação dos Ministros do Supremo resultou recentemente na nomeação do líder do Governo na Câmara, Ministro Nelson Jobim, e do Advogado Geral da União, Gilmar Mendes para. Aquele, apesar das íntimas relações com o Presidente da República e com o seu candidato foi indicado pelo STF para o TSE onde se tornou se presidente, e vem atuando de forma pouco compatível com o papel de um magistrado no nosso sistema judiciário, conforme vem denunciando Dalmo de Abreu Dallari.

Os Tribunais Regionais Eleitorias são compostos de sete membros efetivos com mandatos de dois anos, sendo dois Desembargadores e dois Juízes, escolhidos discricionariamente, dentre membros do Tribunal de Justiça do Estado pelo próprio Tribunal; um Juiz escolhido, também discricionariamente, no Tribunal Regional Federal e dois advogados escolhidos pelo Presidente de República, em lista sêxtupla que lhe é encaminhada. Estes advogados sequer estão obrigados a se afastar de seus escritórios, onde defendem interesses privados, enquanto exercem a judicatura. Os Juízes eleitorais são escolhidos discricionariamente pelos TRE’s. Se a nomeação de Ministros do Supremo Tribunal Federal pelo Presidente da República sofre injunções e preocupa importantes setores da sociedade, como foi a última, mesmo que sabatinados e sujeitos a aprovação pelo Senado Federal, que se dirá de nomeações despidas de tal meio, mesmo que pouco eficaz, de controle. O apadrinhamento, pelo tráfico de influência, e que Victor Nunes Leal chama de filhotismo, é uma constante no processo de escolha. É possível antever a rede de interesses que se forma a impedir a regularidade do funcionamento.

A corrupção eleitoral tem outros meios que não somente o falseamento dos resultados. É fraude eleitoral o custeio de campanhas eleitorais pelo tráfico de drogas, pelo jogo ilegal, por recursos públicos ou por recursos de particulares beneficiados por atividades públicas. Tal fato só se verifica mediante análise da origem dos recursos.

Se a corrupção eleitoral se dá pelo abuso econômico no pleito, tal fato só se verifica com análise da aplicação dos recursos. Para tanto o Juiz deve estar comprometido com a democracia e com a legitimidade do sistema representativo, atuando com independência funcional e descomprometido com o resultado da causa em julgamento.

Os mecanismos utilizados para aferição da vontade popular não podem estar sob suspeição, sob pena de tornar ilegítimos os resultados proclamados.

 

Bibliografia:

 

Leal Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3a ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997.

 

Resumo:

O propósito do artigo é o de esclarecer e chamar a atenção para possíveis problemas referentes ao modelo de voto eletrônico adotado e a estrutura de escolha dos juízes eleitorais.

 

Palavras-chave: Processo eleitoral, urna eletrônica e cidadania.



* João Batista Damasceno é graduado em Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) e Direito (UFF) e Mestre em Ciências do Desporto (UERJ). Ocupa o cargo de Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

1 Embora pouco apropriado o vocábulo "prejudicado" foi aqui utilizado para indicar o candidato cujos votos tenham sido computados para outro, com ou sem o seu conhecimento. Isto porque, por vezes, ante iminente derrota, verifica-se a contagem para outro, com autorização daquele e mediante vantagem.


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