TRABALHISMO
SEM GETÚLIO, JANGO E BRIZOLA
Francisco
Ferraz*
Além do mais,
vivemos numa época em que todos os nossos valores estão em cheque,
especialmente os valores da cultural nacional. Vivemos em um mundo no qual
vigora a ideologia da globalização. Notem bem, não me refiro ao fenômeno social
da globalização, fato decorrente do desenvolvimento material e tecnológico,
refiro-me, não é demais frisar, à ideologia da globalização, isto é, a expansão
para todo o universo da visão do capitalismo à moda americana. É bom lembrar
algumas características deste momento histórico:
1. O socialismo, como realidade histórica,
sofreu um grande revés, inexistindo no horizonte próximo uma concorrência real
sobre diferentes sistemas de organização social.
2. O processo de acumulação capitalista não
encontra nenhum obstáculo poderoso, ideológico ou institucional.
3. As grandes
organizações mundiais perderam sua força diante do monolitismo da dominação
americana. São hoje órgãos de apoio do sistema dominante, sem maior autonomia.
4. Hoje, só existe uma grande potência
mundial armada e dotada da maior máquina de produção e difusão cultural do
planeta, os Estados Unidos da América, os líderes incontestes do
capitalismo atual.
Dentre os fatos
mais significativos destes tempos, o que mais salta aos olhos, é que os
defensores do capital não têm mais meias palavras. Não parecem preocupados em ocultar as faces
mais cruéis do sistema social que vai se generalizando no mundo. Seguridade
social, questões relacionadas com a aposentadoria, seguro desemprego, inclusão
dos setores sociais alijados do mercado, todos estes problemas são tratados
como questões técnicas financeiras e, sobretudo, como se fossem assuntos de
economia privada. As legislações protetoras do trabalho na maioria dos países
vão se modificando sempre no sentido de se retirar do trabalhador conquistas
históricas. Tudo visando facilitar o
processo vertiginoso de acumulação de capital. No capitalismo globalizado a
ideologia hegemônica prega a inexistência de lugar para as leis trabalhistas. O
contrato de trabalho vai se tornando um contrato civil como outro qualquer. Não
há especialmente lugar para previdência social pública. Em suma, a sorte dos
indivíduos é coisa a ser tratada privadamente, cada um com seus meios
próprios. Ensino Público gratuito e de
qualidade em todos seus níveis, nem falar! O que se ouve é que os que podem
pagar deveriam fazê-lo, estes assim financiariam o estudo dos que não podem. E
o conjunto de argumentos falaciosos se sucede. Todos sabemos que educação é
coisa cara. E nenhuma universidade do mundo, mesmo as grandes universidades
privadas americanas vivem da contribuição dos alunos, em algumas, estas contribuições
não chegam a 20% de seus custos. Elas são particulares, mas não são empresas
e muito menos lucrativas. Elas sobrevivem, na verdade, de contribuições
públicas e privadas. Não se iludam, esta proposta é apenas o primeiro passo
para desonerar o estado da responsabilidade pela educação. A saúde e a
previdência social que têm, entre nós origem nos antigos IAPs (Institutos de
Aposentadoria e Pensões dos vários segmentos de trabalhadores), criação do
trabalhismo, vêm sendo sucateados sistematicamente e sempre divulgados como os grandes
vilões da dívida publica. Quando todos sabemos que a verdade é bem outra. Vale
a pena transcrever, pelo menos parcialmente, o que informa um auditor da
previdência: em 2002 a receita da previdência foi de 157,40 bilhões de reais
e a despesa de 124,44 bilhões de reais. Está visto que houve um superávit de 32,96
bilhões. O que tentam nos convencer, no entanto, é que há déficit, e a maior
parte da população, trabalhada por uma parcela da mídia, já está se convencendo
disto. O que não é dito é que 37,90 bilhões daquela arrecadação foram retidas
pelo Tesouro para outros fins, entenda-se pagamento da dívida. Aí sim se criou
um déficit fantasma. E este déficit não é da previdência, é escritural. Mas nos
tempos que correm o importante é gerar um superávit primário com vistas ao
pagamento de uma dívida interminável.
O trabalhismo, no
Brasil, além da perseguição implacável aos seus membros, sofreu e sofre uma
desqualificação contínua, agravada agora nestes tempos neoliberais. No plano do
imaginário esta desqualificação passa inclusive pelo campo acadêmico. Não
faltam análises para absorvê-lo ao populismo. Populismo é, como sabemos,
categoria conceitual muito duvidosa. É comum vermos associado à presença de uma
liderança carismática. Esta consiste na aceitação pelo povo de uma liderança
tida como detentora de qualidades superiores na qual se depositam todas as
esperanças. Não é demais repetir que este tipo de dominação ocorre em todo os
campos políticos, com os mais variados matizes ideológicos e nem todos os seus
líderes têm esta característica. A outra avaliação pejorativa é considerá-lo
como uma prática demagógica, especialmente quando tenta melhorar as condições
de vida do trabalhador. Um argumento muito na moda, mas bem antigo, é dizer que
aumentar salários é atitude enganosa, a inflação virá rapidamente corroer todo
aumento concedido. Este é, no mínimo, um
grave erro histórico. Durante o governo de Getúlio e de Jango a inflação nunca
chegou a patamares assustadores, como em tempos mais recentes, inclusive
durante a ditadura militar, que teve de se socorrer da correção monetária, como
meio de tornar possíveis os negócios e diminuir as tensões sociais.
Definitivamente este conceito de populismo não é fidedigno, nem unívoco para
merecer maior atenção. Deixemos as criticas ideológicas para outro lugar,
voltemos aos fatos.
Agora estamos em
tempo de flexibilização. Já flexibilizaram o monopólio do petróleo, isto é
acabaram com ele. No momento tratam de flexibilizar a legislação trabalhista.
Entendamos melhor: permitir a livre negociação entre trabalhadores e patrões.
Isto, em época de desemprego, todo mundo sabe o que quer dizer. Perda real e
substantiva de ganhos do trabalho. Já se trama contra outras conquistas dos
trabalhadores, como o décimo terceiro salário e as férias remuneradas. Dizem
que não irão acabar. A alternativa proposta é muito mais inteligente e sutil,
ele será diluído em 12 parcelas, isto é incorporado ao salário. O mesmo se pode
fazer com as férias remuneradas. O trabalhador sem aumentos reais há muito
tempo terá a ilusão momentânea de que seu salário cresceu. Em pouco tempo, no
entanto, com a deterioração do poder aquisitivo, verá que foi ludibriado. O FMI
aplaudirá mais este passo do país em direção à modernidade!
Getúlio
Vargas foi o criador inconteste do moderno Estado Nacional Brasileiro, da
legislação trabalhista, foi o construtor das bases materiais do nosso parque
industrial, foi o criador da Petrobrás, foi o defensor de nossa autonomia em
matéria energética, dos institutos de previdência, foi o organizador do serviço
público nacional, dentre tantas outras conquistas políticas. Jango alargou e
expandiu esta política. Por duas vezes aumentou em 100% o salário mínimo, já
muito corroído por anos de inflação. Da primeira vez tal ousadia custou-lhe o
Ministério do Trabalho, da segunda foi mais um passo para a incompatibilização
com os setores golpistas de nossa sociedade. Brizola foi o defensor incansável
desta linha desta mesma linha de ação, quer em sua pregação política de âmbito
nacional, quer em suas gestões à frente do Rio Grande do Sul e do Rio de
Janeiro e, sobretudo, na campanha heróica que impediu o golpe contra a posse do
presidente João Goulart – a chamada “Campanha da Legalidade”.
Não foi sem razão, portanto, que os militares
tanto perseguiram os trabalhistas, nem que o último presidente a serviço do
capital internacional e de nossas elites, sócias menores do capital
globalizado, anunciou com regozijo: “A era Vargas acabou!”.
O trabalhismo tem
inimigos poderosos que vão da direita autoritária ao ultraliberalismo
internacionalista dos tempos atuais.
Apregoar o
fim da era Vargas era afirmar o fim do trabalhismo. As ditas reformas
neoliberais batiam de frente com todo seu ideário. A insistência nesta tecla parece,
no entanto, um sintoma de que este fim não está tão próximo. O anúncio de sua
morte reiterado e insistentemente apregoado por certos setores, só mostra que
ele ainda causa muito medo às elites avessas aos anseios populares e totalmente
desenraizadas de brasilidade.
É verdade
que os tempos estão difíceis e confusos. Temos um governo que se diz do
trabalhador, mas uma vez no poder, subtrai dele suas maiores conquistas em nome
da governabilidade, modernidade, dos acordos com os banqueiros e com o FMI.
O
trabalhismo, vítima de tanta perseguição e desqualificação
ideológica é o único movimento com viabilidade política, base histórica na
sociedade brasileira, credibilidade popular e uma quantidade de quadros e
aliados para enfrentar a realidade adversa em que vivemos.
Não nos esqueçamos que todo o atual processo
de reformas neoliberais que dissipou boa parte do patrimônio nacional,
desorganizou o Estado, seus serviços públicos, aviltou a saúde, a educação e a
previdência pública, caminha agora, para
inviabilizar nosso pais, como um parceiro legítimo e autônomo da
comunidade internacional. No mundo
globalizado precisamos de um Estado mais competente para mantermos nossa dignidade,
autonomia e identidade.
Precisamos, minimamente, de um Estado capaz de
controlar as relações entre o capital e o trabalho, proteger nossa economia
ainda muito frágil no cenário internacional, promover os mecanismos de inclusão
de amplas massas ao processo produtivo. Criar novos mecanismos de comunicação
de massa capazes de democratizar de forma radical a informação e os bens
culturais, de maneira a permitir que o sistema representativo não permaneça uma
mera farsa, onde os donos da grande mídia sejam os eleitores privilegiados que
formam a consciência do povo. Promover uma educação de qualidade visando
preparar, não só a mão de obra qualificada que tanto precisamos, como promover
uma inclusão abrangente de segmentos excluídos do mercado de trabalho, e ainda,
desenvolver uma massa crítica de pesquisadores para nos qualificar na
competição tecnológica internacional. Urge construir um serviço de saúde digno
e de qualidade. Como sabemos educação e saúde são serviços muito caros e em
nosso país só o Estado pode proporcionar este bem social às camadas da
população tradicionalmente excluídas dos benefícios da ciência moderna.
No passado o trabalhismo foi o movimento que
mais contribuiu para a construção da identidade nacional, que deu os primeiros
passos rumo a uma sociedade menos injusta, cabe, hoje, aos trabalhistas e aos socialistas
de todos os matizes impedirem a destruição de tudo que se conseguiu até agora
e, sobretudo, avançar mais, muito mais!
Não podemos nos
esquecer que, se no passado o movimento trabalhista e socialista democrático
padeciam sob as críticas da esquerda mais radical de ser um movimento
reformista, hoje está muito claro que o capitalismo em sua nova fase é
totalmente incompatível com o qualquer tipo de ideário para comprometido com a
justiça social.
A perda de Leonel Brizola deixa, sem dúvida,
uma grande lacuna, mas é também um convite irrecusável ao surgimento de novas
lideranças, convite formulado a todos aqueles que se opõem com firmeza à
ideologia da globalização. À ideologia da destruição dos estados nacionais mais
fracos, do capitalismo sem freios e a subjugação cultural de todos os povos do
planeta ao ideário de uma única e hegemônica visão de mundo.
UFF
Debate Brasil, agosto de 2004.
*O autor
está aposentado e durante mais de 30 anos exerceu o magistério de Ciência
Política nos Departamentos de Ciência Política da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense.