A
GLOBALIZAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO: VANTAGENS E DESVANTAGENS DE UM PROCESSO
INDOMÁVEL
Paulo Roberto de Almeida*
A temática deste ensaio aborda um dos mais complexos problemas
da agenda econômica contemporânea (ou da própria política prática), a saber, a
questão das relações causais ou, em sentido amplo, a das interações entre, de
um lado, o processo de integração crescente dos sistemas produtivos nacionais,
dos fluxos financeiros e dos intercâmbios globais de bens e serviços, sob a
égide do sistema multilateral de comércio, e, de outro, o crescimento
sustentável de uma determinada economia nacional, com modernização de suas
estruturas sociais e políticas. Obviamente, existem outros fatores em jogo no
processo de desenvolvimento, sobretudo os de natureza institucional e aqueles
relativos ao substrato cultural da sociedade em questão, mas não parece ser
possível isolar, nos últimos dois ou três séculos de “capitalismo triunfante”,
qualquer processo nacional de modernização econômica e social dos fluxos e
refluxos das trocas inter-societárias – tecnologias, capitais, homens, ademais
de produtos físicos e de bens intangíveis – que atuam sobre aquele processo
nacional, no contexto da crescente interdependência planetária.
Em perspectiva histórica, trata-se de um problema, que
os economistas clássicos sempre tentaram interpretar teoricamente a partir de
suas reflexões sobre os efeitos transformadores das novas técnicas e dos processos
e produtos importados sobre uma economia em estado de equilíbrio instável. Ora
uma economia, por mais autárquica que seja, sempre se encontra em estado de
“equilíbrio instável”, isto é, ela vive confrontada a processos dinâmicos de
adaptação a “bolhas” de crescimento, à instabilidade dos ciclos de negócios, às
crises financeiras e ao deslocamento do emprego, em função da evolução das
técnicas, em mutação lenta ou rápida, segundo as épocas e as sociedades.
Como se vê, o problema é efetivamente complexo, e o
presente texto não tem a pretensão de esgotar o assunto e muito menos de
equacioná-lo, nos limites mais modestos da experiência de desenvolvimento
econômico do Brasil e o itinerário recente de sua integração mais intensa à
economia mundial. Atente-se para o fato que o “desenvolvimento”, enquanto
projeto social, é extemporâneo, e talvez mesmo anacrônico, para o período
anterior à segunda guerra mundial.
Deve-se igualmente alertar para o risco de se
introduzir valorações qualitativas na avaliação do fenômeno em causa. Com
efeito, pode ser irrelevante falar de “vantagens” ou “desvantagens” do processo
de globalização, uma vez que o processo contém ambas qualidades ao mesmo tempo,
de forma obviamente contraditória. Nenhuma força humana, e provavelmente sequer
social, seria capaz de controlar esse processo, moldando-o conforme os
interesses de uma economia individual, de maneira a isolar apenas os fatores
positivos – que seriam então selecionados e integrados a esse sistema nacional
–, e mantendo à margem, ou neutralizando, aqueles fatores considerados como
negativos ou perniciosos à “boa saúde” daquele sistema. O qualificativo de
“indomável” aplicado à globalização – ou “selvagem” e “assimétrica”, do ponto
de vista dos antiglobalizadores – revela bem o caráter incontrolável desse
processo ou fenômeno. Pode-se não gostar dessas características da
globalização, como não parecem ter boa reputação modalidades “selvagens” de
capitalismo, de tipo “manchesteriano”, como em vigor na China e em outros
países asiáticos, mas não consta ser factível a governos nacionais mudar de
modo dramático essas formas improvisadas e irrefreáveis de inserção das
economias nacionais no grande turbilhão da modernização capitalista.
Da mesma forma, não parece ser possível uma “taxonomia”
das globalizações possíveis para uma eventual seleção
darwiniana de seus componentes mais ou menos favoráveis a um determinado
sistema nacional. A utilização do plural confirma que existem vários tipos de
globalização – não apenas setoriais (financeira, produtiva, comercial, etc.),
mas também do ponto de vista institucional (isto é, a forma pela qual ela
adentra as economias nacionais e como os governos reagem a seus impactos
diferenciados) –, tanto quanto existem modalidades diversas, não todas coincidentes,
de “capitalismos nacionais”, que se adaptam às estruturas específicas das
muitas formações sociais nas quais emergem e se desenvolvem. Pelas próprias
características do processo de globalização, os capitalismos deixam
progressivamente de ser “nacionais”, ao integrarem-se progressivamente à grande
cadeia da interdependência econômica mundial, que começou a ser construída a
partir dos descobrimentos, conheceu saltos e interrupções ao longo dos últimos
cinco séculos e vem acelerando-se de forma gradativa no período pós-Guerra
Fria, isto é, após a “breve” interrupção de setenta anos de experimentos
socialistas em economia.
Pode-se perguntar se os esforços dos
antiglobalizadores – ou altermundialistas – em prol da “humanização” desse
processo “selvagem”, ou seu enquadramento em uma camisa de força
disciplinadora, são eficientes ou sequer factíveis. No mais das vezes, trata-se
de operação puramente retórica, resumindo-se a uma afirmação gratuita em torno
da necessidade de tornar esse fenômeno “solidário”, com “face humana” ou
simplesmente “social”, atitude bem ao gosto de políticos. Existem, contudo,
possibilidades mínimas de converter tais intenções em realidade, pela simples
razão de que não se dispõe de alavancas políticas ou econômicas à altura desse tipo
de empreendimento. Ele simplesmente não é “moldável” por qualquer empresa
capitalista, por mais poderosa que seja a multinacional em causa ou por mais
recursos financeiros que consigam reunir “sindicatos de capitalistas” ou mesmo
governos inteiros.
A razão é muito simples: o itinerário da globalização
confunde-se com a própria marcha do capitalismo. Não há, neste caso, qualquer
equivalência funcional ou estrutural com o sistema econômico concorrente, o
socialismo (de tão contraditória memória), que, ele sim, resultou das
elucubrações de cérebros inovadores, ou de um projeto concebido por homens
sinceramente devotados à causa da melhoria da condição humana. As diversas
experiências de coletivismo, ao longo do século 20, resultaram em sistemas
disfuncionais do ponto de vista da organização social da produção, sem
mencionar o balanço final dessas tentativas, a longa lista de tragédias
políticas, de genocídios étnicos e de bárbaros atentados à liberdade e à
dignidade humana.
A globalização pode ser vista como representativa do
chamado “espírito do capitalismo” – mas com ele não deve ser confundida –, no
sentido em que resulta de tendências históricas impessoais, que se combinam a
mecanismos de mercado e de poder, fazendo com que os processos estruturais de
dominação e de exploração, sempre presentes em qualquer época e sociedade,
sejam eventualmente mobilizados em favor de determinadas forças políticas e
sociais, que deles então tiram “vantagens”, em detrimento de outros grupos
sociais, que ficam temporariamente com suas “desvantagens”. Essa situação – que
já recebeu a caracterização de “centro” e “periferia” – pode, obviamente ser
alterada, mas isso depende da capacitação endógena ou adquirida daquelas forças
temporariamente em situação desvantajosa, e do declínio relativo daqueles
grupos, ou sistemas econômicos, colocados em situação de comando.
Este é o sentido do famoso aforismo marxiano, “De te
fabula narratur”, significando que a sociedade ou economia mais evoluída aponta
o caminho que procurarão seguir as demais: assim ocorreu com os Estados Unidos
e a Alemanha em relação à Grã-Bretanha, no decorrer do século 19, com o Japão
em relação a todos eles juntos, pouco tempo depois, e, agora, com os países
emergentes, lançados ao encalço dessas economias avançadas, com o espírito de
emulação e de inovação a que todos têm direito. Este também é o sentido do
esquema analítico do historiador russo-americano Alexander Gershenkron, sobre
as “vantagens econômicas do atraso”, que supostamente habilitariam as economias
retardatárias a dar “saltos tecnológicos”, adotando técnicas e processos
produtivos já disponíveis nos países mais avançados. Nem sempre é assim,
obviamente, pois devem ser levados em conta fatores políticos e institucionais,
que também foram muito bem analisados por um outro historiador econômico,
Douglass North.
A complexidade das relações entre a globalização e o
desenvolvimento dificulta a tarefa de avaliar, de modo preciso, as vantagens e
desvantagens desse processo. Estudos econômicos inovadores têm, contudo,
trazido novas luzes na avaliação do impacto desse processo nos indicadores de
pobreza e de desigualdade, como se verá mais adiante. Independentemente, porém,
de posições políticas favoráveis ou contrárias ao processo de globalização,
pode-se, por simples razões de evidências empíricas e de “lições da história”,
partir de algumas constatações elementares.
Com efeito, segundo dados e análises compilados a
partir de indicadores objetivos de renda e de participação no comércio
internacional, os países que apresentam um maior coeficiente de abertura
externa – isto é, participação mais elevada do comércio exterior na formação do
PIB – ou que ostentam, de maneira geral, um maior grau de abertura econômica
(fluxos de capitais, investimentos diretos etc.), apresentam uma renda média
superior a 23 mil dólares, ao passo que aqueles países caracterizados por uma
economia mais “reprimida”, fechada aos intercâmbios globais, exibem anêmicos
3.800 dólares como renda per capita. Ainda que se pudesse argumentar que nem
todos os fatores de riqueza nacional se devem, prioritariamente, à abertura
externa, não creio que evidências contrario
sensu, isto é, exemplos de “vitalidade” econômica num ambiente econômico
relativamente fechado, possam estabelecer correlações empiricamente válidas
entre a autarquia e uma suposta “prosperidade nacional”. Os exemplos da
história são todos arrasadoramente em favor da globalização como vetor de
criação e de distribuição de riquezas.
Não se afigura necessário, para todos os efeitos,
conceitualizar ou explicitar a noção de globalização, fenômeno que em outras
épocas históricas já teve outros nomes. A compreensão de “senso comum” é aquela
que se encontra nas páginas das revistas e dos jornais diários: todos têm uma
noção bem precisa do que se está falando, ainda que os altermundialistas tendam
a misturar a globalização com certas doutrinas econômicas – sendo a mais
freqüente o neoliberalismo – ou a equacioná-la a um determinado modo de
produção, o capitalismo. O leitor educado sabe no entanto que esses conceitos
não devem ser confundidos.
2. Tipos e modos da globalização: seu impacto nos
sistemas nacionais
A globalização se faz presente, em primeiro lugar,
mediante as relações financeiras e de comércio que os países mantêm entre si,
mas é pelo setor produtivo que ela é suscetível de impactar mais decisivamente
o perfil e a própria estrutura das economias nacionais. As três dimensões estão
obviamente interrelacionadas, como o próprio itinerário do desenvolvimento do
Brasil pode facilmente demonstrar. Com efeito, como já ensinava há mais de meio
século Caio Prado Júnior, o Brasil emergiu para o mundo e se constituiu como
nação como um entreposto colonial português, que depois foi adquirindo novas
funções produtivas na medida em que a metrópole se encarregava de inseri-lo em
um conjunto mais amplo de circuitos comerciais.
Estávamos então na primeira globalização planetária, a
da era dos descobrimentos e do capitalismo mercantil, quando os príncipes
conquistadores e os comerciantes europeus deitavam velas em todas as direções
dos mares para incorporar novos territórios a seus domínios próprios e novos
mercados provedores ou consumidores das mercadorias então valorizadas. Não
possuindo nenhuma das riquezas “extrativas” da Ásia ou de certas partes das
Américas – como especiarias, panos de luxo, metais preciosos –, o Brasil teve
de ser finalmente aproveitado num regime de plantação e, mais adiante, de
mineração. Essa primeira globalização se fazia segundo uma ordem econômica
fragmentada, já que colocada sob o domínio do “exclusivo colonial” e dos
regimes fechados entre si, com escassa complementaridade produtiva entre
impérios concorrentes, quando não inimigos. Ainda assim, certos traços da
globalização contemporânea já se faziam presentes no Brasil colonial: técnicas
produtivas transplantadas desde a Europa e adaptadas às circunstâncias do meio
colonial, investimento na produção e financiamento da comercialização por casas
comerciais e bancárias italianas ou da Europa setentrional, holandesas em
especial, e apropriação da maior fração dos lucros resultantes não na vertente
da produção, mas do lado da demanda na ponta final.
Esse tipo de globalização de exploração ou de
“extração” conheceu, como seria de se esperar, escassa ou nula incorporação de
técnicas “modernas” e quase nenhum desenvolvimento institucional e político, já
que, no caso do Brasil e de outras experiências históricas similares, era
fundado no regime de plantação escravista e não, como em grande medida na
América do Norte, no estabelecimento de núcleos familiares de ocupação
permanente, suscetíveis de fundarem uma economia de subsistência e semimanufatureira,
integrada a mercados locais ou externos e apoiando-se numa certa monetização
dessas atividades produtivas e mercantis. Em uma palavra, essa “globalização”
confundia-se, obviamente, com o regime da colonização, característica que os
altermundialistas contemporâneos acreditam encontrar nas formas atuais de
globalização, sob a égide grandes empresas multinacionais, a maior parte delas
americanas ou européias.
Está claro que o regime da “globalização colonizadora”
não se organizava para promover o desenvolvimento econômico e social das novas
“terras de promissão” assim incorporadas aos circuitos mercantis do primeiro
capitalismo, e nem poderia ser de outro modo: o objetivo era mesmo o de, com
base no trabalho servil, “extrair” recursos ou instalar centros produtores para
atender a mercados que existiam tão somente nos centros consumidores já
constituídos. Algo diferente foi a história dos núcleos de ocupação familiar na
América do Norte, que tendiam a reproduzir o modo de vida seguido nas
comunidades de origem, transplantando instituições e técnicas que seriam
“desenvolvidas” naturalmente no novo ambiente. Não é assim surpreendente constatar que a chamada revolução industrial
se processou de forma quase simultânea na “velha” e na nova Inglaterra, a do
nordeste do que viria a ser os Estados Unidos.
O longo período histórico que vai da primeira até o
auge da segunda revolução industrial – grosso modo, do último quarto do
século 18 até o início do século 20 – conhece uma segunda onda de globalização,
já não mais caracterizada pelo regime mercantilista da colonização, mas pela
integração dos mercados mundiais sob a égide da expansão da produção
manufatureira e facilitada pela revolução nos meios de transportes e de
comunicação (vias férreas, navios a vapor e o telégrafo de fio terrestre ou
cabo submarino, que foi a internet da era vitoriana). Por certo, potências
européias ainda se ocuparam de esquartejar e incorporar aos seus domínios
imensos territórios na África e na Ásia, mas essa “colonização imperialista”
não muda o caráter desta segunda onda de globalização, não mais simplesmente
mercantilista, mas basicamente produtiva.
A era da “globalização industrial” assiste a uma
primeira diferenciação da periferia: estados nacionais recentemente
independentes, da América ibérica e de partes do Mediterrâneo e do Oriente
Médio, se lançam em empreendimentos modernizantes, nem todos bem sucedidos, mas
dotados, em todo caso, de uma certa autonomia política e financeira, o que os
habilita a determinadas escolhas quanto ao tipo de inserção internacional
desejada. Esse período assiste à passagem da Pax Britannica para o American
Century e os processos econômicos e geopolíticos de dominação não excluem a
possibilidade de vias nacionais de desenvolvimento econômico e político, no
sentido em que ambos projetos imperiais não se colocavam em contradição – e em
geral encorajavam – com a promoção da economia capitalista, de uma sociedade
relativamente pluralista e de um sistema político formalmente democrático.
Mas o conceito de “desenvolvimento” ainda é anacrônico
nessa época, pois nenhum Estado, mesmo nos países mais avançados, tinha um
papel econômico muito pronunciado – a maior parte não tinha sequer
estruturas tributárias dignas do nome, vivendo dos impostos sobre o comércio
exterior e uma ou outra forma de taxação sobre a terra, além de certos produtos
monopolizados – e a noção de um projeto de “modernização nacional” era
simplesmente inexistente. Com certeza, as elites dos velhos Estados
absolutistas e das novas repúblicas constitucionais tinham uma noção da
necessidade de elevar o “poder nacional”, inclusive via promoção de atividades
manufatureiras e comerciais – a exemplo das “leis de navegação” e das “fábricas
nacionais” – mas esses objetivos se davam mais por motivos de defesa da
soberania do que em função das necessidades dos agentes econômicos privados.
A verdadeira “riqueza das nações” começa a adquirir
contornos mais precisos nessa era, a da emergência do big business, isto é, da aparição das primeiras empresas que logo
em seguida se tornariam mundiais. É também o período em que se dá a primeira
“grande divergência” entre as economias nacionais, pois que até então as
diferenças entre os sistemas agrários de baixa produtividade não conformavam
disparidades absolutas nos níveis de renda. O nível de vida de um camponês na
China, a maior economia planetária até o século 18, não se diferenciava muito
do de seu congênere europeu, que passou a partir daí a sofrer o impacto da
revolução industrial, que transformaria dramaticamente o perfil da economia
mundial.
O Brasil, evidentemente, ingressou tardiamente na era
da revolução industrial, tendo, o que é mais grave, preservado o regime servil
que o manteve amarrado a baixos índices de produtividade do trabalho durante
mais de um século. Sua participação na globalização foi, nessa época,
basicamente financeira e comercial, ambas de forma dependente e sem condições
de promover um processo sustentado de desenvolvimento econômico e social como
ocorreu, durante todo esse período, nos Estados Unidos e em países da Europa,
com base, em grande medida, na expansão da educação de base e na propagação das
técnicas industriais. Essa dupla dependência se revelava tanto na concentração
do setor dinâmico da economia em poucos produtos primários de exportação – com
predominância absoluta do café durante mais de um século – como na necessidade
de fluxos de recursos financeiros do exterior. A importação de capitais se fez,
durante todo o século 19, via emissão de bônus soberanos no mercado londrino,
primeiro para a própria sustentação orçamentária do Estado brasileiro (e também
a amortização de empréstimos anteriores), depois, quando o café permitiu saldos
na balança comercial, para os investimentos em infra-estrutura ligados à
economia de exportação (sem mencionar a guerra do Paraguai).
No século 19 e até o início do século 20, o
crescimento brasileiro foi extremamente lento, sem real transformação da
sociedade brasileira. Ocorreu uma certa integração aos mercados financeiros
internacionais e o Brasil pode compensar a ausência de poupança interna e de
receitas suficientes para alimentar os poucos investimentos realizados no
período mediante o apelo aos mesmos mercados londrinos – e em parte
europeus e dos Estados Unidos, no fim do período –, sem que ameaças de default
ou crises financeiras perturbassem enormemente essa entrada de recursos
financeiros. No começo da era republicana, cresceram os investimentos diretos
estrangeiros, geralmente direcionados para aquelas mesmas atividades que
apresentavam vínculos com a economia “globalizada” dessa época. O coeficiente
de abertura externa da economia – exportadora primária e importadora de quase
todo o resto – era relativamente alto, provavelmente em torno de 20% do PIB, em
todo caso mais do que o dobro do que viria a ser em todo o período de
crescimento para dentro da era de substituição de importações a partir de 1930.
Pode-se, assim, considerar que essa globalização da
era do laissez-faire “modernizou”, em
parte, instituições e instrumentos vinculados ao setor externo, mas ela não foi
suficiente, está claro, para mudar as estruturas da sociedade e da economia do
Brasil. Mas, o mesmo poderia ser dito, mutatis
mutandis, da fase seguinte, de introversão produtiva e de ruptura relativa
com os mercados internacionais, processos ocorridos a partir da primeira guerra
mundial e fortemente estimulados pela sucessão de crises a partir de 1929.
Começa então um período de introversão relativa na vida econômica brasileira,
resultante não de uma escolha consciente por parte das elites dirigentes mas
das circunstâncias excepcionais de fechamento dos mercados externos, de crise
geral nos sistemas de pagamento e de conversão de moedas, de protecionismo
exacerbado e de receitas dirigistas e estatizantes.
Persiste ainda uma certa tendência na historiografia
brasileira, com base entre outros em Celso Furtado, a ressaltar que o forte
impulso de crescimento econômico brasileiro foi devido justamente ao período de
ausência de concorrência externa e de grande fechamento da economia, o que
teria possibilitado uma fase de acumulação para dentro e, portanto, criado um
ambiente favorável ao processo industrializador. Cabe, entretanto, uma outra
interpretação que postula a característica muito pouco eficiente desse processo
industrializador como resultado dos choques adversos, enfatizando ao contrário
que a modernização teria sido muito mais completa e equilibrada se implementada
em condições normais de intercâmbio internacional de bens, serviços, capitais,
tecnologia e idéias. Em outros termos, a ausência de “globalização” tornou
menos completa a transição brasileira para a modernidade.
Seja como for, a inserção do Brasil na ordem econômica
internacional é retomada ao final da guerra, ainda que em condições de retração
relativa da globalização, já que uma parte substancial dos recursos produtivos
e do “exército industrial” mundial é subtraída do grande jogo capitalista da
divisão internacional do trabalho, com o avanço do socialismo sobre a Europa
central e oriental e, logo em seguida, na Ásia, com a conversão da China ao
sistema de economia centralmente planejada. As instituições de Bretton Woods e
as demais agências econômicas internacionais, a começar pelo sistema
multilateral de comércio regido provisoriamente (durante 50 anos) pelo GATT,
presidem ainda assim a uma das mais exuberantes fases de expansão econômica da
história recente da humanidade, período que ficou conhecido como o dos “trinta
(anos) gloriosos”, as três décadas de crescimento praticamente ininterrupto até
meados dos anos 70, quando o primeiro dos choques do petróleo abre uma fase de
“estagflação” na economia mundial.
Ainda que os franceses costumam falar de
“americanização” do mundo, o fato é que o peso relativo dos Estados Unidos na
economia mundial começa a diminuir com o sucesso da reconstrução européia e,
sobretudo, com a (re)emergência de dois novos gigantes nesse cenário, o Japão e
a Alemanha, extremamente bem sucedidos na conquista de novos mercados e
logrando produzir superávites comerciais gigantescos, mesmo em face da
valorização constante de suas moedas respectivas em face do dólar. De mais de
um terço do produto e do comércio globais no imediato pós-guerra, os Estados
Unidos recuam para menos de 20% no início dos anos 70, quando pressões
inflacionistas e desequilíbrios externos contribuem para precipitar o fim do
esquema monetário desenhado em Bretton Woods, baseado numa paridade fixa da
moeda americana em ouro (à razão de 35 dólares por onça de ouro) e na garantia
irrestrita de conversibilidade. O mundo passa a conhecer a flutuação de moedas
e um intenso movimento de especulação nos mercados cambial e de ativos
financeiros. É o começo, embora ainda tímido, da terceira grande onda de
globalização capitalista, a de base financeira, na qual nos encontramos ainda
hoje.
Paradoxalmente, mas não exatamente por causa dessa
“globalização financeira”, o Brasil assiste ao final de uma fase de grande
crescimento econômico, impulsionada pela reorganização geral de sua economia na
segunda metade dos anos 60 e permitida justamente pela expansão do comércio
internacional e pela abundância de capitais estrangeiros (tanto para
investimentos como para empréstimos), para adentrar num período de novos
choques adversos sem quaisquer méritos modernizantes desta vez. A
disponibilidade de recursos financeiros nos mercados comerciais de moedas ainda
permite financiar os déficits comerciais (provocados pelos dois aumentos
sucessivos nos preços do petróleo) e várias obras de infra-estrutura (como
Itaipu, por exemplo), mas a notável elevação nas taxas de juros ocorrida a
partir de 1979 conduz à crise da dívida externa de 1982 e ao estrangulamento
financeiro por mais de uma década a partir de então.
Os grandes saldos comerciais produzidos ao longo dessa
década e no começo dos anos 90 resultam mais do protecionismo exacerbado da
política comercial – e do regime cambial baseado nas desvalorizações
competitivas – do que de um aumento extraordinário nos fluxos de comércio
internacional, que aumentam modestamente em comparação com as economias
dinâmicas da Ásia, altamente competitivas nos mercados mais dinâmicos de
manufaturados eletrônicos. Dessa fase da “globalização financeira” o Brasil
conhece, justamente, a dependência financeira, seja dos credores comerciais,
seja dos organismos multilaterais de crédito, FMI e Banco Mundial. Os
investimentos diretos estrangeiros diminuem, não tanto devido a essa
característica, mas em função da desorganização geral da economia, assolada por
altas taxas de inflação, instabilidade geral das regras macroeconômicas, que
passam a impactar negativamente o ambiente de negócios no nível microeconômico.
Após inúmeras tentativas frustradas de estabilização,
o Brasil consegue finalmente se inserir na nova onda da globalização
financeira, em meados dos anos 90, a partir do sucesso do Plano Real e das
reformas econômicas internas – notadamente das privatizações – que atraem
volume significativo de novos investimentos diretos estrangeiros, colocados não
apenas nos setores desestatizados (como telecomunicações), mas igualmente em
uma miríade de ramos industriais e de serviços, na esteira de um dos mais
vigorosos processos de aumento dos níveis de produtividade já conhecidos na
história econômica do Brasil. Contribuiu para isso o processo de abertura
econômica e de liberalização comercial conduzido desde o início dos anos 90,
tanto em função de decisões unilaterais tomadas a partir do governo Collor como
em decorrência dos avanços no processo de integração sub-regional sob a égide
do Mercosul. Foi a competição introduzida por esse duplo movimento de abertura
que contribuiu para a modernização da indústria e dos serviços no Brasil, assim
como a abundância de capitais financeiros e de investimento permitiu sustentar
déficits substanciais na balança de transações correntes que de outra forma não
teriam sido financiados pela diminuta poupança interna.
O saldo da onda de “globalização financeira” (ainda
não terminada) dos anos 90 é, para o Brasil, contraditório, na medida em que
aumentou a fragilidade externa da economia, não necessariamente em função da
abertura aos capitais internacionais, pois outros fatores podem estar em jogo
nos desequilíbrios acumulados no período. Se a simples abertura financeira
fosse sinônimo de crise, a maior parte dos países da OCDE – tendo liberalizado
amplamente os movimentos de capitais – viveriam em constante turbulência
financeira, o que obviamente não é o caso. Em qualquer hipótese, a série de
crises financeiras dos anos 90 e início da atual década terminou por impactar
igualmente o Brasil – tanto no regime de banda cambial como no sistema de
flutuação da moeda –, obrigando-a a recorrer por três vezes a pacotes de apoio
financeiro no quadro do FMI, mas de forma preventiva, cabe relembrar.
Esse período de turbulências, compreensivelmente,
suscitou na população um sentimento de rejeição em relação à globalização,
contribuindo parcialmente, talvez, para a vitória de forças políticas que
sempre ostentaram um olhar crítico, para não dizer virtualmente contrário, vis-à-vis esse processo. Não sem razão,
uma das principais diretrizes do principal partido de oposição convertido em
governo legítimo é a superação da “fragilidade financeira externa”, mediante
uma “inserção soberana do Brasil na economia internacional”. Em mais de uma
ocasião, igualmente, os principais líderes desse partido têm condenado o
“modelo perverso” de desenvolvimento, que teria sido supostamente seguido pelos
adeptos do “consenso de Washington” e pelos defensores dos efeitos, em última
instância, benéficos da globalização. A realidade da situação econômica
brasileira é obviamente mais complexa do que essa visão simplista das relações
entre abertura financeira e crise do setor externo da economia, mas não se pode
deixar de reconhecer que o processo de globalização aumenta, de modo
perceptível, os focos de instabilidade conjuntural. A solução para esse tipo de
problema não está, contudo, na adoção de uma atitude introvertida no plano dos
intercâmbios globais, mas na adaptação do sistema econômico nacional aos
impactos inevitáveis da globalização contemporânea.
3. A globalização e as desigualdades: restabelecendo a
verdade dos números
Muitos pesquisadores acreditam, com base
em análises superficiais, que a globalização é de fato responsável pelo aumento
nos índices de concentração e de desigualdade na distribuição de renda, tanto
entre como dentro dos países. Os altermundialistas vão mais além, acusando a
globalização de provocar crises financeiras internacionais e, a partir daí,
desemprego e miséria. Os economistas, mais circunspectos, chegam a concordar
com algumas dessas “evidências”, que indicariam que as últimas décadas foram
marcadas por uma tendência aparentemente irresistível ao crescimento das
desigualdades no plano global, movimento observável tanto na divergência cada
vez maior entre países ricos e pobres como no aumento da concentração de renda
nos estratos já ricos da população.
Mas, contrariamente às supostas tendências ao
crescimento das desigualdades, estudos econométricos recentes, trabalhando com
base em novas metodologias e um foco analítico inovador (estatísticas de
consumo por indivíduo, não a renda média dos países), trazem evidências de que
as taxas de pobreza e as desigualdades globais na repartição de renda têm na
verdade declinado nas últimas décadas. As tendências positivas detectadas por
esses economistas não estariam tanto associadas à globalização quanto à
manutenção de altas taxas de crescimento em alguns grandes países — como China
e a Índia, por exemplo —, mas não se pode tampouco descartar uma associação
indireta e derivada desses dois impulsos baixistas, na pobreza extrema e nas
desigualdades gritantes, com o processo de globalização conhecido no mundo
desde os anos 1980.
Estudo efetuado pelo professor da
Universidade de Columbia Xavier Sala-i-Martin (2002), revelou ter ocorrido uma
redução geral das desigualdades de renda entre 1980 e 1998: tendo estabelecido
funções para a distribuição mundial de renda, ele constatou que, se em 1970 o
mundo apresentava uma larga fração da população num renda modal próxima da
linha de pobreza — isto é, subsistência à razão de um dólar por dia —, essa
fração começou a definhar e o mundo hoje se encaminha para uma “larga classe
média”. Tanto as taxas de pobreza quanto o número de pobres decresceram
dramaticamente: o critério de um dólar por dia caiu de 20% em 1970 para apenas
5% em 1998 da população mundial, enquanto que pelo critério de dois dólares por
dia a taxa reduziu-se de 44% a 18%. Em termos de “volumes” humanos, isso
representou uma subtração de aproximadamente 400 milhões de pessoas ao “estoque
mundial” de pobres entre aqueles dois anos. Ou seja, o “dramático e
perturbador” aumento da pobreza e nas desigualdades no período recente da
globalização simplesmente não ocorreu, ao contrário do que afirmam os
antiglobalizadores e mesmo economistas acadêmicos.
A desigualdade, que pode ter crescido em
alguns países — seria o caso dos Estados Unidos, por exemplo —, não foi
suficiente para reduzir o movimento global no sentido da redução das
desigualdades entre os países. O principal fator dessa diminuição foi
representado, mas não totalmente, pelo rápido crescimento da renda de 1,2
bilhões de cidadãos chineses. Apenas um problema nesse quadro global: a
situação da África, cujo itinerário econômico, social e político foi
catastrófico nas duas últimas décadas. Se o continente africano não voltar a
crescer nos próximos anos, a tendência à convergência entre os países se
altera: a China, a Índia, os países da OCDE e os demais emergentes de renda
média vão divergir das tendências declinantes na África e a desigualdade na
distribuição de renda, computada globalmente, voltará a crescer.
O exemplo mais ilustrativo da tendência
global revelada no citado estudo é obviamente o da Ásia, onde os índices de
pobreza caíram de forma espetacular. A China e a Índia, ainda socialistas nos
anos 1970, foram os países que mais progrediram do ponto de vista da diminuição
da pobreza e da convergência em relação aos indicadores de países mais
avançados. Nos Estados Unidos, por sua vez, simplesmente inexistem aquelas
faixas de renda de pessoas que vivem com 1 ou 2 dólares por dia, que constituem
as medidas padrões utilizadas pelos organismos internacionais para medir a
pobreza. A Indonésia representou a mais dramática mudança na história econômica
da humanidade, com redução sensível da pobreza e da desigualdade, mesmo a
despeito da crise financeira de 1998, quando o PIB foi reduzido em mais de 15%.
A América Latina não foi uma região
particularmente feliz em termos de diminuição do número de pobres, embora
tivesse conhecido, igualmente, uma certa redução da pobreza, mas em décadas
anteriores. No Brasil, os progressos efetuados nos anos 1970 foram freados nos
anos 1980 e, nos anos 1990, com exceção de alguns anos, os ricos melhoraram
mais do que os pobres. Os casos de aumento absoluto da pobreza e dos níveis de
desigualdade ocorreram nos países africanos, ao passo que nos ex-países
socialistas, que sofreram verdadeiro colapso econômico nos anos 1990, aumentou
muito a desigualdade, sem que a pobreza, porém, tivesse se expandido de forma
brutal. No continente africano, a Nigéria, o exato oposto da Indonésia, é o
caso mais dramático de aumento simultâneo da pobreza e das desigualdades, muito
embora os seus ricos — que caberia identificar em termos de rent-seeking associado à economia
petrolífera — tenham conseguido obter ganhos sensíveis durante o período, dada,
provavelmente, a elevada corrupção ali existente.
Pesquisas como as de Sala-i-Martin
confirmam, por sua vez, estudos conduzidos pelo economista indiano Surjit
Bhalla (2002), para quem a globalização não
resultou em taxas menores de crescimento, nem em aumento da pobreza ou da desigualdade,
mas ao contrário, numa diminuição sensível das desigualdades mundiais, dos
índices de pobreza e um crescimento da renda dos estratos mais pobres,
relativamente aos mais ricos. Bhalla encontra as mesmas evidências que o
economista catalão no plano mundial, ou seja, uma tendência ascendente na Ásia
e desenvolvimentos não muito felizes na América Latina e na África, ainda que
ele observe que o processo de globalização não possa ser responsabilizado pelo
declínio relativo destas últimas regiões. Ao contrário, acredita ele, pode ter
sido a incapacidade em participar plenamente da globalização que causou a
experiência de estagnação em ambas as regiões. Com efeito, ele lembra que após
ter dobrado seu nível de renda de 1960 a 1980, a América Latina estagnou
completamente nas duas décadas seguintes, ao passo que a África fez ainda pior,
tendo experimentado uma redução de 12% em sua renda nesse período. Bhalla
também relembra que a África tinha o dobro da renda asiática em 1960, ao passo
que a situação se inverteu completamente na atualidade. As razões desse
declínio são múltiplas, mas incluem a devastação trazida pela Aids, além de
guerras e erosão da autoridade estatal.
Da mesma forma, outro economista indiano,
N. Majid, trabalhando para a Organização Mundial do Trabalho, chegou a
conclusões similares quanto aos efeitos da globalização sobre a pobreza e as
desigualdades (2003). Ele constata, na mesma linha do que vem sendo argumentado
por outros economistas, que a abertura comercial contribui para o aumento do
crescimento, ainda que os vínculos entre as políticas de liberalização e o
comércio possam ser limitados; não há, por outro lado, evidências de que o
aumento do comércio exterior aumente as desigualdades sociais internamente,
ocorrendo, ao contrário, tendências positivas, quando a abertura comercial pode
ser combinada a outras políticas favoráveis ao crescimento econômico. Na
ausência de um conjunto de condições institucionais suscetíveis de impulsionar
o crescimento, apenas a abertura comercial pode não ser suficiente para geral
um círculo virtuoso que liga o comércio à redução da pobreza.
Talvez não seja por outra razão que os
únicos países que se manifestam resolutamente em favor do livre-comércio,
atualmente, sejam os países emergentes e em desenvolvimento, em especial os
mais pobres, ao passo que os países ricos, encapsulados na teia protecionista
de suas políticas agrícolas, têm sido bem menos enfáticos a esse respeito. De
fato, não parece haver contradição política mais importante, no âmbito dos
foros mundiais no período recente, do que a retórica anti-comércio e contrária
aos investimentos diretos estrangeiros dos altermundialistas, e de seus aliados
nos grupos anti-capitalistas, e o discreto acolhimento, pelos países mais
pobres, do discurso favorável à eliminação das barreiras comerciais e de uma
prática de fato receptiva aos fluxos de capitais de risco. Entre os mitos e os
fatos da globalização capitalista, os países em desenvolvimento parecem ter
sinalizado, nesses foros, com uma postura política e econômica de fato
globalizadora – ainda que não expressa de modo claro ou sequer direto –
deixando o campo das “globobagens” entregue aos grupos festivos de
altermundialistas, que nada mais fazem do que insistir nas desvantagens da
globalização, sem trazer nenhum argumento consistente em favor de suas teses.
4. O espectro da globalização e os grilhões mentais do
pensamento alternativo
O Brasil, como muitos outros países em
desenvolvimento, tem manifestado uma atitude ambígua em relação à globalização,
como de resto vis-à-vis políticas de
liberalização comercial e de abertura ao capital estrangeiro. Os argumentos
freqüentemente avançados em meios oficiais e nos grupos antiglobalizadores
contra uma oferta mais ampla no acesso de seu próprio mercado por competidores
estrangeiros, assim como na aceitação de regras mais favoráveis ao ingresso de
investimentos diretos estrangeiros em setores ainda relativamente fechados de
sua economia, se apoiam, precisamente, na hipótese de que tais decisões poderiam
comprometer a definição e a implementação de políticas nacionais ou setoriais –
industrial, tecnológica etc. – condizentes com as “necessidades brasileiras de
desenvolvimento”.
Esse tipo de discurso não está, contudo,
sustentado em simulações de impactos setoriais de modo a permitir uma avaliação
mais concreta dos efeitos da globalização e seu papel no processo hodierno de
desenvolvimento brasileiro. Os dados empíricos e as referências analíticas
alinhadas ao longo deste trabalho permitiram em todo caso constatar que esses
efeitos se situam bem mais pelo lado das vantagens do que na vertente das
desvantagens. Verificou-se, ao contrário do avançado nos foros políticos
altermundialistas, que ocorreu, ainda que por impulsos desiguais, um nítido
progresso social e econômico trazido pela globalização, que melhorou a vida de
milhões de pessoas em vários cantos do mundo (sobretudo na Ásia), o que não
impede, obviamente, a deterioração da situação de outros grupos sociais.
De modo geral, as evidências sobre a convergência
entre sistemas econômicos nacionais e a diminuição das desigualdades parecem
agora bem estabelecidas, sobretudo do ponto de vista da equalização de salários
em níveis similares de produtividade, o que deve beneficiar os mais capacitados
no mundo em desenvolvimento (que alguns chamam de burguesia, ou de elite, do
Terceiro Mundo). Os únicos, talvez, a perderem absolutamente seriam os
trabalhadores pouco qualificados dos países desenvolvidos e uma difusa classe
média, em vários países, que sente que lhe serão retirados os benefícios do welfare State. São exatamente estes
grupos que compõem o grosso da massa mobilizada pelos movimentos da
antiglobalização: “velhos” sindicalistas e jovens de classe média. Alguma
surpresa nisto?
A referência ao caráter “irrefreável” ou
“indomável” da globalização não deve significar nenhuma renúncia a uma atitude
crítica em relação a esse processo, ou tampouco passar a considerá-lo como o
equivalente histórico funcional de um novo “Renascimento”. Deve-se, ao
contrário, estabelecer constatações de fato sobre seus efeitos reais — o que
não exclui algumas interpretações —, bem como trazer a exame de todos os
interessados as reflexões e análises das ciências sociais e as simulações
econométricas realizadas com base em dados empiricamente rigorosos (e
desprovidos, tanto quanto possível, de distorções metodológicas), com a
finalidade de contribuir ao esforço de avaliação dos impactos do processo de
globalização para o Brasil. As evidências coletadas nas pesquisas aqui
referidas, bem como a experiência histórica dos países que se inseriram na
economia mundial nas últimas duas décadas, trazem um quadro bem diverso da
visão catastrofista alardeada pelos opositores da globalização, que de resto
esgrimem meia dúzia de slogans alarmistas sem quaisquer evidências empíricas
para sustentar suas alegações.
Não se deve entoar loas à globalização ou
argüir que ela é isenta de riscos e de efeitos nocivos para aqueles setores e
grupos sociais eventualmente situados do lado “errado” do processo de
destruição criadora que ela gera de modo inevitável e contínuo. Obviamente, ela
potencializa ainda mais os desafios que normalmente estão associados aos
fenômenos mais conhecidos — e longa data familiares aos economistas clássicos e
modernos — da defasagem tecnológica, da competição desenfreada, da substituição
de trabalho humano por processos produtivos poupadores de trabalho, da pressão
constante sobre os salários derivada da incorporação de novos exércitos
industriais de reserva, enfim, velhos problemas já tratados, sob diferentes
ângulos, por estudiosos tão diversos como Adam Smith e Karl Marx, Joseph
Schumpeter e Milton Friedman, Raul Prebisch e Paul Krugman, Celso Furtado e
Joseph Stiglitz. Nenhum deles, ao que se saiba, adotou a política do avestruz
ou uma atitude puramente negativa em relação aos desafios, glórias e misérias
do processo de globalização capitalista; ao contrário, tentaram compreender, em
primeiro lugar, e oferecer políticas alternativas, em seguida, no que respeita
os problemas e conseqüências indesejadas desse processo “indomável”.
Apenas deve ser deixado claro que
invectivas ou manifestações de indignação moral não são substitutos ideais a
análises ponderadas, empiricamente fundamentadas e metodologicamente adequadas
— como aquelas feitas pelos economistas aqui citados —, e que tais reações
podem, se tanto, obscurecer os dados do problema, em lugar de contribuir para
uma boa organização dos debates. Argumentos racionais, logicamente consistentes
e condizentes com a realidade, ainda são o melhor instrumento para a tomada de
decisões inteligentes em matéria de políticas públicas, que é finalmente o que
se deseja de cidadãos participativos na vida social. Por isso soa algo estranho
que agrupamentos e personalidades dos meios acadêmicos e que se dizem
“progressistas” conseguem ignorar os dados da realidade para se lançar numa
cruzada contra a globalização, tão ingênua quanto desprovida de argumentação
sólida. Pode-se considerar que deve ser por anticapitalismo instintivo, pois
não parece haver outra explicação.
Assim, retomando as velhas tradições de
análise crítica do desenvolvimento do modo de produção capitalista, já
iniciadas no Manifesto de 1848, e
parafraseando o final grandiloqüente desse ensaio tão atual quanto pertinente,
se poderia dizer que os antiglobalizadores de hoje não têm nada a perder com
esse tipo de exercício intelectual, a não ser alguns velhos grilhões mentais
que os mantêm cegos e presos a esquemas conceituais ultrapassados. Em
contrapartida, eles têm um mundo novo a ganhar: bastaria olhar para o mundo
real, constatar retrospectivamente os dados da história e usar doses moderadas
de raciocínio econômico. O resto é bom senso…
Referências bibliográficas:
Almeida,
Paulo Roberto de. Os primeiros anos do
século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas. São
Paulo: Paz e Terra, 2002.
–––– . O Brasil e o multilateralismo econômico.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999.
Bhalla, Surjit. Imagine There’s No Country: Poverty,
Inequality and Growth in the Era of Globalization.
Gershenkron, Alexander. Economic Backwardness in Historical
Perspective.
Majid, N. “Globalization and Poverty”. Genebra: International
Labour Organization, 2003; link: http://www.ilo.org/public/english/employment/strat/download/ep54.pdf (acessado em
5.02.04).
Sala-i-Martin, Xavier. “The disturbing ‘rise’ of global
income inequality”, National Bureau of Economic Research, Working Paper w8904, Abril 2002, disponível no
link: http://www.nber.org/papers/w8904 (acessado em
11.02.04).
Resumo: Relação entre globalização e desenvolvimento. Tipos e modos da
globalização e seus impactos nos sistemas nacionais. A globalização e as
desigualdades. O espectro da globalização e os grilhões mentais do pensamento
alternativo.
Palavras-chave: globalização, desenvolvimento,
sistemas nacionais e pensamento alternativo.
*O autor
é diplomata e cientista político. pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org