UM EXCESSO NÃO SE CORRIGE COM OUTRO

(sobre a “negação da negação”)

 

 

Gisálio Cerqueira*

 

         Na atual crise política de conjuntura que envolve a corrupção corrente entre partidos e parlamentares, o que não é de hoje, conforme relatos publicados na imprensa, o que salta à vista é que desta vez envolve o PT. Logo o PT...

 

         Neste aspecto, a afronta à ética, ou que outro nome venhamos a designar - hipocrisia, cinismo, traição, imoralidade - a atuação do PT pode e deve ser enfocada nos termos do conceito hegeliano de “negação da negação”, utilizado por Hegel, mas também por Lênin, Marx, Slavoj Zizek, etc.

 

“Não é a negação vazia, inútil, cética, a vacilação, a dúvida, que é característica e essencial na dialética – que, sem dúvida, contém o elemento de negação e, na verdade, o contém como seu elemento mais importante -, mas sim a negação como um momento de ligação, como um momento de desenvolvimento que conserva o positivo” (Bottomore, 1988)

 

         Assim, a negação presente na “negação da negação” é eivada de positividade presente sim na superação, mas inseparável da “conservação” e “transformação” dialeticamente presentes. Por isso, o sentido fundamental da negação é definido pelo caráter do momento dialético imanente do desenvolvimento dito “objetivo” nos termos do “via-a-ser”, da “mediação” e da “transição”.

 

         Entrelaçam-se o passado, o presente e o futuro; vários futuros, nos termos propostos por Norbert Lechner (2002): o futuro presente no dia de hoje que vamos chamar de futuro presente, que projeta o presente futuro do dia de amanhã e ambos interagindo como futuro passado, aquilo que, no passado, se vislumbrava como futuro. Há uma “memória do futuro” (o que poderia ter sido), que condiciona a memória do futuro presente.

 

         Hegel anunciou por primeiro que a negação é integrante da afirmação da positividade dando validade, pois, à afirmação de Spinoza (ominis determinatio est negatio ); assim, toda “superação” é inseparável da “preservação”. Nas palavras de Hegel:

 

“Desse lado negativo, o imediato submergiu-se no outro, mas o Outro não é, essencialmente, a negativa vazia ou Nada que é considerado habitualmente o resultado da dialética. É o Outro do primeiro, a negativa do imediato; é assim determinado como mediado e contém a determinação do primeiro. O primeiro é, dessa forma, essencialmente contido e preservado no Outro” (apud Bottomore, 1988).

 

         Nessa mesma perspectiva, Marx se refere à apropriação capitalista, resultado do modo de produção capitalista, que de certo modo nega a propriedade individual baseada no trabalho do proprietário. Aqui a negação da negação consiste no fato de que se a produção capitalista não restaura a propriedade privada para o produtor, permite-lhe, todavia, a propriedade individual baseada nas aquisições da era capitalista, isto é, na cooperação e na posse em comum da terra e dos meios de produção.

 

         Na conjuntura atual, a moeda corrente é: não temos a verdadeira democracia, não temos a ética na política, não temos uma política eleitoral com lisura, PSDB e PFL compraram a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, segundo muitos testemunhos. Por outro lado, se o PSDB inchou como partido político, absorvendo interesses estranhos à social-democracia; o PT fará diferente. Não se dispõe a aumentar a sua bancada no Congresso Nacional, após a eleição de Lula. Utiliza, entretanto, artifícios para, através do aumento dos deputados do PTB, PL, e PP, consolidar a base parlamentar.

 

         O discurso do PT, malgrado a política econômica do Ministro Palocci visando acalmar os mercados e o sistema financeiro internacional, era o de negar um projeto de poder para o PT. Nós (do PT) não queremos poder pelo poder..., queremos tão somente o espaço autônomo, à margem do poder político, para articular nossos direitos civis e culturais (artísticos), interesses espirituais e outros, refletir grande sobre o poder, criticar a busca do poder pelo poder e pensar sobre suas limitações. Se este era um aspecto forte da base do PT, até mesmo no aparelho partidário, e mais ainda na cúpula dirigente, um projeto de poder propriamente dito foi se consolidando na Casa Civil, com o Ministro José Dirceu e este foi, aos poucos, sendo identificado como artífice de um projeto estrito de poder. Ele (José Dirceu) mais a direção do PT (José Genoíno –presidente-, Silvio Pereira –secretário-, Delúbio Soares – tesoureiro - ), Marcelo Sereno e poucos outros, foram sendo identificados como aqueles que “sujavam as mãos”.

 

         Este sujar as mãos foi sendo projetado como o jogo sujo da política: apoio político através de sobras de campanha, caixa dois, dinheiro não contabilizado formalmente como manda o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), eventuais pagamentos de propina para os deputados e senadores, a hipótese de realização de licitações de “cartas marcadas” nos órgãos públicos visando benefícios que deveriam se traduzir em apoio político. “Mensalão” é metáfora para sugerir a repetição (mensal? qual a periodicidade?) na compra dos votos e apoio necessário.

 

         Na nossa opinião, o que está em jogo é menos uma questão de legalidade (pois muitas práticas consideradas anti-éticas não são necessariamente ilegais), mas uma questão político-ideológica visando a não reeleição de Lula.

 

         Embora não se diferenciassem de práticas anteriores do PSDB, PFL e outros partidos, este comportamento político-eleitoral visava negar aquele considerado espúrio e corrupto. Mas agora o PT ouvia da oposição o seguinte discurso: a indiferença do PT pelo poder é falsa e hipócrita; no fundo, no fundo vocês buscam mesmo é o poder.

 

         Claro que esse argumento ganhou força também dentro do próprio PT, sobretudo na oposição à esquerda: mas vocês querem o poder para fazer o que? Pois a política econômica não mudou muito em relação à de FHC, mantendo-se em traços gerais os compromissos anteriores. Ao que o PT respondia a todas as forças políticas, dizendo que num sistema presidencialista de governança por maioria de coalizão não só as alianças eram fundamentais quanto necessárias (vide o PSDB e o PFL e até mesmo PMDB). Assim, a pergunta que se colocava era: por que o PT não pode aspirar com Lula, um sindicalista, um projeto de poder?

 

         Mais, tal argumentação articulava-se a uma outra suposição: a de que uma boa finalidade política (expressa na “boa” intencionalidade do PT) justificava as práticas políticas antes consideradas “sujas”. Uma (boa) finalidade lavava a (má) prática instrumental. Enfim, os fins justificavam os meios. A questão não está tanto em ressaltar que o PT se permitia aquilo que condenava na prática anterior do PSDB/PFL/PMDB. A questão está em perceber, aqui adotando-se o ponto de vista de pensar do PT, que a suposta negação presente em nível do pensamento não realizava a “negação da negação” proposta por Hegel, Lênin, Marx, Zizek, entre outros.

 

         Um bom exemplo de como funciona a lógica da “negação da negação” pode ser observado nas relações nos termos da relação entre dor de cabeça & enxaqueca e sexo. Bem antes do movimento feminista, muitas mulheres justificam não fazer sexo com seus maridos dizendo “estou com dor de cabeça..." Em função das lutas das mulheres e da crescente busca pelos seus direitos, inclusive sexuais, revelou-se então um comportamento sexual mais ativo, ao invés de meramente passivo. Então assustado com a postura reivindicativa das mulheres, muitos homens acabam lançando mão do recurso anterior para não fazer sexo: diziam “hoje não, pois estou com dor de cabeça..." Finalmente, a “negação da negação” se apresentava com sua contundência quando diante do novo quadro as mulheres passaram a reivindicar “fazer sexo agora, pois estou com dor de cabeça; pode ser que boa trepada me traga algum conforto..."

 

         Assim, o que falta neste momento histórico singular é buscar a “negação da negação” que nos fará avançar politicamente.

 

         Não esquecer ainda que toda vez que moralizamos a prática política, o efeito maior é a politização da moral.

 

Vitória, 18 de Julho de 2005.



BIBLIOGRAFIA:

 

BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro,  Jorge Zahar, 1988.

LECHNER Norbert.  Las sombras del mañana: la dimenisón subjetiva de la política. Santiago (Chile): LOM Ediciones, 2002.

MARX, Karl. O Capital, vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968

ZIZEK, Slavoj. El espinoso sujeto: el centro ausente de la ontologia politica. Buenos Ayres: Paidós, 2001.

 

RESUMO: O artigo tem por propósito refletir sobre a atual crise política à luz da categoria “negação da negação”.

 

PALAVRAS-CHAVE: Crise política, ética e negação da negação.

 

* Doutor em Ciência Política e professor titular de Sociologia. Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Atua como pesquisador e docente no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (IFCHF) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de Édipo e excesso: reflexões sobre lei e política, Sergio Fabris Editor, Porto Alegre, 2002.

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