A TRANSFORMAÇÃO DA EXPERIÊNCIA [1]
Roberto
Mangabeira Unger [2]
Em minha primeira
palestra [3], esbocei um programa para o avanço de nossos ideais e interesses
democráticos, experimentais e produtivos através de estratégias e linguagens dirigidas a situação
econômica das sociedades contemporâneas, especialmente a das democracias
sociais européias. Esse programa rejeita o retorno à forma histórica de social democracia, ainda que também recuse a aceitar o
esvaziamento do projeto social democrata que tem freqüentemente
aparecido sob a insígnia da Terceira Via.
Descrevi esse
programa em seis amplas e convergentes direções: o financiamento e o auxílio no
desenvolvimento do novo; a doação e o equipamento do indivíduo trabalhador e
cidadão; a democratização da economia de mercado, que é, a bem dizer, a
descentralização do acesso à oportunidade e aos recursos produtivos; a
organização de uma economia humanitária e sua superimposição
no sistema produtivo; o desenvolvimento de uma política institucionalizada energizante que exija um maior compromisso cívico e
encoraje a prática acelerada da reforma estrutural; e a organização
independente da sociedade civil fora do Estado, mas para além dos limites da
lei privada.
O espírito desse
programa é o de tentar combinar conexão e força. As formas de potencialização disponíveis para nós no mundo contemporâneo
são obtidas em troca da nossa desconexão com o outro. E as formas de conexão as
quais temos livre acesso são mantidas ao preço da depreciação e diminuição de
nossos poderes de autotransformação individual e também coletiva. O que devemos
desejar, sobretudo, é encontrar meios que nos aprimorem, individual e
coletivamente, bem como os caminhos capazes de nos unir e de nos tornar mais fortes.
O principal instrumento para o
desenvolvimento e execução desse programa, entendido mais como uma direção do
que um esboço, é o despertar da prática do experimentalismo institucional: a
experimentação motivada, dirigida e acumulada com formas institucionais que
agora definem a democracia representativa, a economia de mercado e a livre
sociedade civil. Na história do pensamento social moderno a idéia de
descontinuidade estrutural tem sido comumente associada com a concepção de
mudança revolucionária ou total. Nosso compromisso com o gradualismo
tem sido normalmente ligado ao repúdio à idéia da reinvenção estrutural.
Devemos misturar essas categorias e associar a tendência à descontinuidade
estrutural com o reconhecimento de que a reinvenção da estrutura geralmente se
dá paulatinamente, passo a passo.
As alternativas sociais sob a
forma na qual elas nos eram familiares acabaram por desaparecer do mundo
contemporâneo: grandes abstrações ideológicas como o socialismo. Nós devemos,
então, debaixo para cima e de dentro para fora, recuperar e reconstruir a
prática de trabalhar alternativas na imaginação e na realidade. A solução é
imaginar e gerar tanto as alternativas como a extensão ou o
aprofundamento das variações em menor escala já disponíveis a nós.
Após o colapso do comunismo e da
descrença nas idéias socialistas tradicionais, há um repertório limitado de
alternativas institucionais disponíveis em cada setor da vida social. Entender
esse repertório, explicar sua genealogia, criticá-la e
então expandi-la e renová-la é o verdadeiro objetivo de ação e pensamento
construtivo social na circunstância contemporânea. Nosso objetivo, contudo, não
deveria ser simplesmente substituir algumas instituições por outras. Deve ser
mudar o caráter como também o conteúdo das instituições e sua relação com a
liberdade construtiva ou ação pela qual nós a redefinimos e remodelamos.
Nós não devemos querer sistemas
discursivos ou institucionais que nos são apresentados como fatos naturais, na
base do pegar ou largar. Devemos querer sistemas discursivos e institucionais
que se fazem abertos ao desafio e a revisão. Tais ordens sociais e culturais
nos permitem atenuar o contraste entre as atividades normais pelas quais nós
realizamos nossos interesses e idéias em uma estrutura tomada enquanto dada e
as atividades extraordinárias pelas quais nos re-imaginamos e refazemos partes
dessa estrutura.
Nós temos um papel fundamental na
transformação da qualidade da vida institucional: conceber um mundo social mais
adequado a nós, seres que superam todos os sistemas culturais e sociais que
criamos e habitamos. Tais sistemas são limitados; nós em relação a eles somos
infinitos. Sempre há mais em nós humanos do que há neles.
Esse nosso interesse em organizar
a sociedade e a cultura de um modo que supere as marcas do espírito - circunstâncias
espirituais transcendentes - pode ser feito para convergir com nosso interesse
moral na relativa equalização de circunstâncias econômicas como também com
nosso interesse material em acelerar o ritmo da invenção, inovação e progresso
prático. A zona de interseção possível entre esses interesses traduzidos em um
projeto cumulativo de renovação institucional, é o programa e a prática que
aqui esboço e defendo.
Embora eu apresente esse programa
nos termos que são especialmente dirigidos às circunstâncias das sociais
democracias européias contemporâneas, eu não considero essa proposta, definida
em termos gerais, como um programa local. É um programa universal em suas
intenções. Não é apenas mais uma entre muitas vias, é uma outra via, uma segunda
via. Todavia um dos interesses desse programa é o de facilitar a criação de uma
diferença real no mundo, para que no futuro, a natureza das diferenças
nacionais no mundo democrático possa representar mais plenamente a
especialização moral da humanidade. Os poderes e possibilidades da humanidade
se desenvolvem, se é que eles se desenvolvem, em direções diferentes, em formas
únicas de vida com corpos institucionais distintos. Deste modo, a idéia de
muitas vias como a alternativa para Um Verdadeiro Caminho talvez seja
irresistivelmente atrativa; ela combina praticabilidade
com modéstia. A tese de muitas vias é, todavia, falsa e perigosa.
Na situação econômica dos países mais pobres como também dos mais ricos, para democratizar o mercado e aprofundar a democracia temos que renovar, mesmo que com ferramentas limitadas nas mãos, o repertório institucional que nos está disponível. Se as sociedades contemporâneas estão para realmente se tornarem diferentes no futuro – diferentes nas bases democráticas e na experiência ao invés de somente na força da tradição, compulsão e fraqueza –, elas terão de atravessar a mesma porta da inovação institucional. Aqui eu chamo esse umbral de Segunda Via, para passar por esse portão de modo que eles possam se tornar realmente diferentes no futuro. A necessidade de passar por essa entrada repousa em duas razões: uma surge da necessidade efetiva de rebelião; a outra, jogando luz na ambigüidade inquietante na idéia de múltiplas vias.
A ortodoxia universal não pode ser
adequadamente afrontada por contradições locais. Somente a universalização dos
paradoxos pode combater com sucesso a ortodoxia universal como entenderam os
liberais e socialistas do século XIX. O caráter peculiar do presente contexto
de identidades coletivas, e as animosidades nacionais e étnicas das quais elas
surgem, caem no seu relativo vazio. O desejo por uma diferença coletiva surge
com o esvaecimento da desigualdade real. A
desigualdade atual diminui porque sob a situação social da história mundial
países puderam permanecer fortes e independentes somente pela pilhagem de
costumes e idéias de outros e porque todos são agora sujeitos da sedução
mundial de uma cultura que promete gratificação material e recompensa moral ao
homem ordinário. Qual é o desejo distinto que combina pilhagem de costumes com
informações residuais locais? Precisa de instrução e não as pode obter das
tradições e pré-concepções que inevitavelmente já começaram a desmantelar.
Além disso, a idéia de muitas vias
encobre uma ambigüidade. Estabelecida na base de uma dentre duas, uma via
especial – qualquer das muitas vias – acaba sendo precária. Estabelecida em
outras bases, ela prova ser ilegítima como o caminho para a aliança da
democracia com desenvolvimento. Se as contradições locais forem adotadas por
meras razões pragmáticas, elas serão abandonadas ao primeiro sinal de
dificuldade e fracassarão em resistir a totalidade
gravitacional de soluções dominantes (considere qualquer exemplo de sucesso
relativo da combinação de ortodoxia econômica, como Chile nas últimas duas
décadas do século XX). Se por outro lado, os paradoxos locais são ancorados ou reificadas ou religiosamente baseadas identidades
coletivas, talvez possam resistir a soluções dominantes. No entanto, irão
resistir a elas somente se perderem comunhão com os idéias
experimentalistas e democráticos (considere qualquer
uma das muitas sociedades contemporâneas, como o Irã, na qual os arranjos
econômicos tem sido explicitamente educados por uma teologia nacional).
A Segunda Via pode
atender às duas grandes questões. Uma oportunidade advém da emergência mundial
por nova lógica de coordenação e inovação da prática social: uma forma de
produção caracterizada pelo abrandamento das divisões hierárquicas entre os
papéis executivo e superintendente, pela mistura fluidal
de cooperação e competição, e pela transformação da produção em uma prática
permanente de aprendizado e inovação. Essa forma avançada de produção e
aprendizado agora floresce em setores avançados relativamente isolados de
economias mais pobres e também mais ricas.
O conjunto dessas redes avançadas,
agora se tornou a força motora da economia mundial. A
vasta maioria da humanidade continua excluída desses avançados setores mesmo
nos países mais ricos e desenvolvidos. Os dois grandes dispositivos que foram
disponibilizados para suavizar as conseqüências sociais das divisões entre
economias de vanguarda e economias atrasadas – taxas e transferências redistributivas e politicamente a difusão de financiamento
para pequenos negócios e pequenas propriedades - têm se tornado
inadequadas à tarefa. Estaremos meramente condenados a adoçar essa
divisão ou poderemos começar a remodelá-la e superá-la, ancorando a coesão
social aos arranjos governamentais para crescimento econômico?
Nós temos uma oportunidade para
generalizar o alcance dessa nova lógica de produção e inovação para além das
fronteiras de setores isolados onde agora florescem. Essa generalização pode
aparecer somente através da reinvenção da relação entre governo e economia
privada: o desenvolvimento de um novo repertório institucional de formas de
parcerias descentralizadas entre governo e empreendimentos privados. Para esse
fim, nós deveremos rejeitar a escolha entre o modelo americano de prolixas
regras comerciais fixadas pelo governo, como também o modelo do nordeste
asiático de formulação de comércio unitário e política industrial estabelecido
por uma burocracia central e por consultores líderes de negócios. Ao invés
disso, devemos trabalhar na direção de uma forma de coordenação estratégica
entre Estado e negócios privados que seja descentralizada, participatória,
aprofundada no mercado, plural e experimental. Como uma forma de coordenação é
trabalhada em conjunto por descentralizadas, entidades públicas independentes e
efêmeros grupos de firmas. Funciona sob o princípio que toda forma de ajuda
pública para o produtor deve ser justificada em parte por sua contribuição
direta para a entrada de novos agentes no mercado e a radicalização da
competição. Seu produto característico não é um plano mestre, mas um conjunto
de alternativas e ainda conjunturas estratégicas conflitantes, permitidas a
co-existir para observar qual funciona melhor. O objetivo é democratizar o
mercado – para democratizá-lo e não somente regulá-lo, ou compensá-lo, através de
programas redistributivos, por suas iniqüidades. Esse
objetivo leva às demais partes do programa da Segunda Via.
Outra grande oportunidade que
nasce da Segunda Via, advém do confronto das identidades coletivas. Os povos do
mundo querem ser diferentes. E, cada vez mais, eles não os são. As identidades
coletivas estão surgindo envenenadas pelo processo que as esvazia de seu
conteúdo concreto: nações e comunidades odeiam-se mutuamente mais ainda por
estarem tornando-se tão parecidas, por fracassarem no desejo de serem
diferentes. A solução que converge para o interesse da democracia e para o
progresso prático é substituir essa fantástica ou desejada diferença com
habilidade de criar uma diferença real. Fortalecer essa capacidade é um dos
objetivos de uma alternativa experimentalista e democratizante. Essa alternativa pode ajudar a transformar
a diferença nacional em um produto de especialização moral na humanidade. A
mudança expressa a verdade que o ser humano está mais no futuro do que no
passado e que sob à democracia, a profecia fala mais
alto que memória.
Isso pode parecer abstrações quase
vazias. No entanto elas têm implicações práticas poderosas. Uma dessas
conseqüências tem a ver com o caráter da globalização. A ordem global vigente
está sendo organizada pelo princípio da liberdade de circulação de mercadorias
e de capital mas não de pessoas. O trabalho mantém-se
preso ao Estado-nação ou dentro dos limites da
comunidade de Estados similares, como a União Européia.
Os efeitos desse contraste entre
mobilidade de coisas e o aprisionamento de pessoas vai além. Um desses efeitos
é restringir drasticamente o potencial igualitário e libertador da
globalização. Outro efeito é desacelerar a transformação da diferença nacional
pela democracia. Em um mundo de democracias cada Estado-nação
ou comunidade de Estados deve desenvolver um conjunto de formas distintas de
vida. Se eles agora precisam passar por inovações similares no modo como
reforçam e apóiam indivíduos, democratizam mercados e aprofundam democracia, é
apenas para que eles possam mais tarde se tornar mais verdadeiramente e mais
livremente diferentes.
Porque tais distintas formas de
vida, com suas estruturações em instituições e práticas representam uma versão
parcial e oblíqua da humanidade, o indivíduo deve ser livre para se rebelar e
escapar delas. A liberdade do indivíduo para deixar um desses universos e
ligar-se à outro é a pré-condição da legitimidade de
cada um desses mundos. Caso contrário, a força de vontade e a intransigente
imaginação serão oprimidas e reduzidas, tornando impossível à profecia falar
mais alto do que a memória.
Até agora, descrevi a Segunda Via
como um projeto de política econômica. Ele tenta introduzir, ainda que
gradualmente, uma transformação fundamental. Tal transformação, regularmente
tem estado sujeita à calamidade e especialmente, à guerra. É um dos objetivos
desse programa fazer com que a transformação dependa cada vez menos de crises.
Contudo, a humanidade ainda não perdeu essa dependência. Por essa razão os
interesses materiais a serviço das inovações da Segunda Via não são suficientes
para sustentar seu avanço; porque eles conseguem sempre ser
absorvidos, parcialmente e temporariamente, pela ordem institucional
estabelecida. A convicção e a energia para transformação não podem visar
somente esses interesses. Elas precisam ser preenchidas, enriquecidas e
inspiradas pela visão de uma oportunidade humana ainda não realizada.
Toda transformação momentânea é
política bem como religiosa. O programa da Segunda Via pede que reorientemos a
política e reorganizemos as economias mundiais, remodelando nosso entendimento
de sociedade e nossa experiência moral. Consideremos cada um desses setores
sucessivamente.
Apreciemos primeiro a
reorganização da política. Na história moderna, dois tipos de ação política nos
são familiares: a política revolucionária ou radical, na qual um particular
quadro de líderes mobiliza uma energizada maioria a
produzir ampla transformação institucional. Esse é um caso restrito; geralmente
nada mais é que uma fantasia. Há também a prática política rotineira pela qual políticos profissionais executam negócios entre os
grandes interesses organizados enquanto conciliam os desorganizados com
modestas transferências e concessões simbólicas. Esse estilo de política baseia-se
na ausência de crises e na moderação do conflito social e ideológico. Nós
precisamos de um terceiro tipo de política: uma política transformativa que
combine a negociação entre os interesses organizados com a mobilização da
maioria não organizada. Essa política deve ter como objetivo a transformação
gradual e cumulativa da estrutura institucional da sociedade. Ela deve
dispensar a crise como a condição para a mudança.
Essa política transformativa não
substitui nossas ações motivadas por interesses pessoais, pela idéia mítica da
devoção sem egoísmos ao bem comum. Ela aprofunda, ao invés de ampliar, essa
atividade ordinária. Como resultado, muito da prática excepcional de mudar
partes do cenário de ações e pensamentos estabelecidos acaba sendo absorvida
dentro da prática normal de nos dedicarmos aos nossos interesses próprios ou
nos limitarmos ao nosso trabalho dentro daquele cenário.
A política transformativa é por
conseqüência uma espécie de prática que deveria se tornar onipresente na vida
de uma sociedade democrática e experimentalista. É
uma prática que reduz a distância entre nossa estrutura de preservação e a de
transformação em nossas atividades.
Nos encaminhamos para o segundo
dos quatro domínios, nos quais propus explorar a idéia da Segunda Via: a
reorganização da economia mundial. Atualmente, a economia mundial está
organizada em princípios hostis ao nascimento e desenvolvimento de uma
alternativa progressista como esta. Freqüentemente, a ordem econômica mundial
vigente se posiciona contra a futura criação da diferença real.
Os arranjos e dogmas da atual ordem econômica mundial impõem e aceleram a convergência na direção de instituições e práticas estabelecidas nas democracias ricas do Atlântico Norte. Para mudar essa situação, três séries de reformas são necessárias.
A primeira reforma diz respeito às
organizações econômicas internacionais, especialmente o Fundo Monetário
Internacional e o Banco Mundial. Essas agências não deveriam ter permissão para
atuarem como os longos braços do projeto dominante na economia política. Na
medida em que suas responsabilidades são universais, eles devem ter poderes
mínimos; seu papel deve ser o de manter a clareza dos mecanismos e prover os
empréstimos que ajudam a manter a economia internacional aberta. Deste modo
eles ajudam a definir e manter trajetórias particulares de desenvolvimento
nacional, transformando-se em instâncias plurais. Tampouco eles devem ser
divididos em várias organizações rivais ou eles podem se tornar conchas
acomodando técnicos prontos para ajudar países e governos a trabalhar as
estratégias nacionais de desenvolvimento que aqueles adotariam.
A segunda mudança tem a ver com a
reorientação do sistema de comércio internacional. Esse sistema não deveria ter
como seu princípio generativo a maximização do livre
comércio, como livre comércio é hoje entendido. O livre comércio é um meio, não
um fim. O objetivo do regime de comércio global deveria ser maximizar as
possibilidades de desenvolvimento e alternativas geradas na própria experiência
e debate nacionais. Por exemplo, o regime atual pressupõe um conceito de
propriedade que declara ilegal sob o rótulo de subsídio, muitas formas de
coordenação de aprofundamento de mercado entre governo e entidades privadas.
Desse modo ele ajuda no congelamento da existente distribuição internacional de
vantagens comparativas entre países.
A terceira reforma está
relacionada à mobilidade do capital e à imobilidade do trabalho. Eu já havia me
referido a hipocrisia anti-liberal que chama de sistema livre, a liberdade de circulação
de moeda e mercadorias pelo mundo enquanto pessoas continuam aprisionadas
dentro das fronteiras de seus países. Um economista diria que o custo da
eficiência de uma política que insiste no preço diferencial (“price differential”), ou também chamado de preço forçado (“price wedge”), é proporcional ao
quadrado daquele preço fixado. No mundo atual, essa política que mantém
o preço diferencial por mercadorias
ou ativos financeiros raramente excede dois para um, mas o preço diferencial para
o valor do trabalho geralmente ultrapassa dez para um. Nenhuma reforma no mundo
traria maior equilíbrio do que a gradual aquisição pelo trabalhador da
liberdade de cruzar fronteiras nacionais, não somente em nome da liberdade mas também da igualdade. Seria impraticável e auto-destrutivo pressionar pelo imediato e irrestrito
direito de imigração. Contudo, nossos interesses práticos e morais apontam na
mesma direção: dar à moeda e ao capital juntos o direito de circular, em
pequenos e acumulativos incrementos.
Como uma mudança da economia mundial guiada por essas três séries de reformas pode se configurar? Considere uma seqüência de três etapas. A primeira é por alternativas - alternativas reais - a serem estabelecidas particularmente em alguns Estados-nação, especialmente em alguns dos maiores e mais marginalizados países continentais – China, Índia, Rússia, Indonésia e Brasil – que ocupam atualmente os lugares naturais de resistência no mundo. Quase sozinhos eles comandam a combinação de recursos práticos e espirituais com os quais se imaginam mundos diferentes, ainda que cada um deles tenha sido recentemente inibido no alcance de seu potencial para divergir e rebelar. O segundo passo é no sentido de haver pressão, como resultado desse exercício de heresia nacional, para a mudança das regras da economia internacional. O terceiro passo é que essa mudança de regras acaba por encorajar o avanço da heresia no cenário institucional e a orientação estratégica de desenvolvimento nacional. Se, contudo, a comunidade européia conspirasse com os Estados Unidos para impor uma uniformidade institucional e uma convergência sobre a humanidade, então seria nosso dever enquanto membros do resto do mundo desafiar esse acordo à Metternich [5] e derrubá-lo.
Eu, agora, chego no terceiro
domínio de transformação que precisa acompanhar e confirmar o avanço na direção
da Segunda Via: a revisão de nossas práticas de entendimento social e
histórico. Suponha uma progressão em três momentos.
Primeiro, devemos repudiar o
preconceito científico ou pseudocientífico que modelaria a análise social à
imagem da ciência natural. Nosso estudo da natureza está irremediavelmente
emaranhado em contradições que têm se manifestado na história da filosofia
moderna. Essas antinomias geralmente aparecem da desconexão entre pensamento e
ação: o escopo de um modo de pensar que vai além dos horizontes de nossa
existência e atividades imediatas. Essas antinomias expressam os fatos mais
básicos sobre nós mesmos: que somos algo relativamente infinito preso dentro de
realidades finitas: o corpo, a sociedade e a cultura.
De um lado, enfrentamos os
paradoxos do tempo. Se o tempo for uma ilusão, assim serão nossos julgamentos
causais. Contudo, se o tempo é real e o universo tem uma história, então aos
nossos julgamentos causais faltam bases seguras de leis gerais, porque essas
leis também terão uma história.
Por outro lado, confrontamos as
contradições da experiência. Ao raciocinarmos talvez concluiremos que não temos
acesso direto ao mundo, mas permanecemos presos aos fantasmas de nossas mentes.
Quando, todavia, vivenciamos, é o raciocinar que nos passa a parecer fantástico
e continuamos a viver sem medo no mundo manifesto.
Em nosso estudo da sociedade,
entretanto, nós podemos estar relativamente livres dessas contradições. Podemos
esperar ganhar, em relação aos nossos artefatos sociais e culturais, uma
posição mais endeusada. Como seus criadores, nós os conhecemos por dentro. Essa
relação pode aumentar de imediato enquanto obtemos sucesso criando estruturas que
têm como um de seus atributos definitivos facilitar sua própria regeneração
para diminuir a distância entre nossas estruturas de preservação e de mudança
de ação.
Não é para afirmar qualquer prestígio ou hierarquia intelectual, mas para habitar de modo mais completo o mundo no qual vivemos, que devemos rejeitar os preconceitos pseudocientíficos. Devemos entender e praticar o conhecimento social centrado em si mesmo: um modo de entender mais direto, mais completo e menos contraditório do que aquele conhecimento que esperamos ganhar da natureza. Poderemos então nos permitir repudiar uma falsa distinção forçada em nós pelo preconceito científico, a distinção entre percepção prática e conhecimento teórico.
Nós devemos encarar o conhecimento
teórico da sociedade como o aprofundamento ou extensão do nosso conhecimento
prático comum da vida social, ao invés de nos deixarmos conduzir por sua
sensação de superioridade. O objetivo da imaginação é fazer o trabalho da crise
sem crise, pondo o real sob à luz e a pressão do
possível. Vista dessa forma, a imaginação das coisas humanas se torna
inseparável das ações humanas e, em particular, da ação transformativa. Porque
é pondo pressão no mundo social estabelecido, e descobrindo oportunidades
transformativas neste meio recalcitrante e constrito, que nós
quebramos o feitiço do presente em nossas mentes. A teoria pode dar
continuidade a esse trabalho, mas não pode iniciá-lo. Ela compartilha com o
pensamento prático, que surge imediatamente do nosso esforço e compromisso, uma
característica crucial: a nossa habilidade para imaginar os próximos passos, e
então colocar a realidade estabelecida dentro da penumbra da variação próxima e
acessível, nunca depende do poder para discernir os movimentos remotos, muito menos para mapear o horizonte do possível.
Uma lista de possíveis mundos sociais não faz parte desse conhecimento; o
conceito dessa lista é uma superstição enfraquecendo nossos poderes de
resistência e de percepção a pretexto do surgimento deles.
O segundo momento dessa transformação
intelectual é a recuperação e reconstrução da idéia de descontinuidade
estrutural. É a crença e a disposição formativa de que a sociedade muda
descontinuamente; que ela é a priori
fiel e contingente. Na história do pensamento moderno essa idéia tem se
misturado aos dogmas do fatalismo histórico: por exemplo, que existem sistemas
indivisíveis como o capitalismo; que cada sistema se amolda a uma lógica
interna, e que elas sucedem umas às outras de acordo com algumas seqüências
evolucionárias pré-estabelecidas, conduzidas por leis irresistíveis de mudança.
Nós devemos resgatar a idéia de
alternativas estruturais a essas ilusões. Ao mesmo tempo, precisamos fazer
valer a idéia de alternativas estruturais contra a prática positivista das
ciências sociais. Como são atualmente praticadas nas universidades, essas
ciências geralmente ridicularizam a idéia de alternativas estruturais, e
somente racionalizam acerca da ordem social estabelecida. Seu espírito
dominante é um hegelianismo de direita. É um espírito
hostil à imaginação da possibilidade de mudança. Por essa razão é também uma
mistificação da experiência histórica e social.
O terceiro momento nessa virada
intelectual é a confusão dos gêneros. Cada uma das disciplinas sociais está
acorrentada a sua própria agenda metodológica. Separadas como estão, não é
possível a essas disciplinas confrontarem suas limitações próprias a não ser
quando são forçadas por alguma calamidade mundial. Como poderíamos despertá-las
para enfrentar melhor o encolhimento imaginativo do possível? É acertado
reunirmos esses discípulos e subvertê-los através da tentativa de entender a
realidade presente e a possibilidade transformativa em uma situação singular,
um país único, um momento único, uma circunstância única. A superação da
superstição que vê o conhecimento social como uma versão inferior da ciência
natural, a recuperação da idéia de estruturas alternativas e a confusão de
gêneros descrevem o desenvolvimento gradual de um
clima intelectual propício ao desenvolvimento de alternativas sociais
progressistas. Não poderemos seguir na direção de algo como a Segunda Via sem
antes nos equiparmos com tais métodos e idéias. Aproximar o entendimento da
sociedade a esse espírito é ao mesmo tempo uma expressão de nossa habilidade
para virar as mesas de nossos próprios contextos e uma exigência de
continuamente agir dessa forma. É uma forma de esclarecimento sem a qual não
podemos nos tornar verdadeiramente livres.
O último campo no qual encaminho o
desenvolvimento de uma alternativa é a crítica e o redirecionamento
da nossa experiência moral. Eu procedi metaforicamente, por uma série de
formulações equivalentes.
A primeira formulação tem a ver com a relação entre a nossa capacidade de reconhecer o caráter mutável da vida social e a nossa disposição para aceitar as condições imutáveis da existência humana. Queremos um modo de vida que nos permita mais inteiramente reconhecer que tudo na organização da sociedade é contingente. Devemos desconsiderar as ordens institucionais que nos impedem de respeitar uns aos outros enquanto seres que transcendem essas poucas e limitadas estruturas. Por essa prática deliberada de iconoclastia institucional, passamos a enxergar mais claramente a característica imutável de nossa existência enquanto pessoas que irão decair e morrer. Tal consciência de nossa própria humanidade é ao mesmo tempo condição e conseqüência para uma mudança na organização da sociedade. Simultaneamente, contudo, é também uma descoberta independente da mente, animada, no desenvolvimento dessa crença, por um único e amplo propósito.
A segunda formulação tem a ver com
a relação entre duas fontes de tristeza humana. Nós somos tristes porque a
intensidade de nossos desejos excede imensamente a coisa desejada. Os objetos
de nossos desejos são relativamente triviais em comparação com a intensidade
que os cobiçamos, como resultado nos encontramos
diminuídos e humilhados nas circunstâncias da vida cotidiana. No entanto,
também ficamos tristes por exigirmos uns dos outros mais do que podemos dar uns
aos outros. Tal como os porcos-espinhos descritos por Schopenhauer,
ficamos paralisados quando separados, nos machucamos quando juntos, e inquietos
nos movemos de um lado a outro em busca da incômoda distância média. Esse
desconforto na companhia de outros é a segunda grande fonte de nossa tristeza.
Nosso propósito em reconstruir a
experiência moral deve ser o de lidar com a primeira razão de tristeza de modo
a nos permitir tratar da segunda razão. Podemos fazer isso desenvolvendo formas
de pensamento e de vida que nos façam realmente mestres e que nos dêem em
retorno algo que valha a nossa energia. Esses trabalhos sócio-culturais devem
ser diferenciados por outro par de atributos. Esses devem organizar nossos
negócios de tal forma que aliviem o conflito entre as exigências de inovação e
as de cooperação. E eles devem nos proporcionar uma experiência comunitária que
transforme as diferenças em instrumentos de união, dispense igualmente da
experiência ou do prognóstico, e se desenvolva na mais recíproca vulnerabilidade.
Agora, essa reformulação da
experiência pode ser descrita de uma terceira maneira, relacionada com a forma
que deveríamos desejar que nossas vidas exibissem. Em uma sociedade que é
relativamente livre, relativamente igual e relativamente rica, cada um de nós
poderia se tornar várias pessoas diferentes. Apesar disso nos forçamos a tomar
um rumo particular na vida. Devemos melhor organizar todos os nossos possíveis
“eus” para nos tornarmos um único “eu”. Cada um de
nós deve, portanto, se automutilar.
Não obstante, devemos continuar a
sentir a dor no ponto da amputação, e aprender a experimentar os movimentos
fantasmagóricos do membro desaparecido. Mais tarde, em um rumo particular de
vida, organizada em torno de compromissos, nós começamos a dar a esses o poder
de nos definir. Tendo feito isso, começamos a morrer pouco a pouco. Uma múmia
se forma ao nosso redor; em princípio mutilados, somos mumificados na direção
do fim.
Para continuar a viver até morrer, e ter a certeza de morrer uma única vez, nós devemos arrancar essa múmia de dentro para fora. Antes que possamos conceber o desejo e desenvolver o poder para fazê-lo, devemos nos inquietar deliberada e repetidamente. É responsabilidade do Estado nos ajudar a organizar uma vida na qual essa ambição descompromissada se torne pensável e exeqüível sob quaisquer condições da vida humana ordinária. Que grande força poderia nos guiar em uma campanha tão árdua?
Nossos maiores
êxitos nas áreas da ciência, arte e política surgem de nossa disposição em nos
superarmos: mudar, para melhor e para pior, contra nós mesmos. O objetivo é
fazer da auto-superação o centro da experiência humana, estancando seu veneno e
aumentando sua fecundidade. A sociedade e a cultura devem nos ajudar a viver
clara e corajosamente essa penosa experiência da auto-superação,
inconquistável, inabalável, imbatível – resignada ainda que inconformada –
lutando com o mundo e contra nós mesmos, sonhando com olhos bem abertos,
ansiando, empenhando-se, buscando, procurando, até que restaurados ao
entusiasmo e intensidade de uma criança, nossos corações de pedra transformados
em corações de carne, aprenderão a ouvir no choro de cada recém-nascido o
casamento profético da grandeza com o amor.
NOTAS
[1] Conferência pronunciada
no Ciclo The Boutwood Lectures, por ocasião da comemoração dos 450 anos do
Corpus Christi College, Cambridge University
(Grã-Bretanha), em janeiro de 2002.
[2] Roberto Mangabeira
Unger é Professor Titular
da Universidade de Harvard
(EUA) e membro vitalício eleito da Academia Americana de Artes e Ciências.
[3] A primeira conferência, intitulada A Transformação da Sociedade, foi
publicada na
edição número 19 de Achegas. A versão original em inglês das
duas conferências pode ser encontrada na página
oficial do autor: www.law.harvard.edu/unger
[4] Nota do Revisor: O autor faz alusão
ao príncipe austríaco, Klemens Metternich-Winneburg
(1773-1859). Como chanceler, Metternich negociou o
casamento de Maria Luísa com Napoleão I. Em 1813, articulou a entrada da
Áustria na coligação que se opunha à França. Posteriormente, participou do
Congresso de Viena.
Revisão
Técnica de Victor Leandro Chaves Gomes