BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A NECESSIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UMA LEI INTERNACIONAL SOBRE CRIMES DE RACISMO NA INTERNET*

 

Luiz Fernando Martins da Silva **

 

 

1.      O ritmo com que avançam as novas tecnologias de informação e de comunicação, incluindo a Internet, tem causado substancial repercussão nos meios utilizados por pessoas e grupos para dialogar. O avanço causado pela aceleração do processo tem beneficiado a sociedade de várias maneiras, mas, por outro lado, a Internet e as novas formas de comunicação, têm servido para a propagação de mensagens de ódio e de desconsideração a grupos sociais por motivo de etnia, raça, nacionalidade, religião, gênero, idade etc.

 

2.      No caso específico da Internet, indivíduos ou grupos racistas podem se utilizar dessa importante ferramenta tecnológica para disseminar as suas idéias. Páginas na Web, sites de relacionamentos denominados Orkut, Fotolog, Chat, E-mail etc., podem ser utilizados para a propagação de material racista e xenófobo, e incitar o ódio racial. A atenção sobre essas novas formas de tecnologia deve ser uma constante preocupação do Estado e da Sociedade, haja vista, principalmente, que substancial parcela das pessoas que se utilizam delas é jovem.

 

3.      Apesar de muitos Estados possuírem leis que permitem a repressão de práticas racistas pela Internet, constata-se que essa boa prática ainda não é comum. O Brasil, de sua parte, desde a década de 1960, vem empreendendo esforços para estabelecer governança no setor de informática. A legislação foi inicialmente desenvolvida para o atendimento de políticas de desenvolvimento industrial, centrado na fabricação de computadores e outros produtos com essa tecnologia, mas agora a legislação está se voltando para o software e o uso de computadores e dos programas em atividades ilícitas, como é o caso de práticas racistas na Internet.

 

 

4.      Nesse sentido, no âmbito do Poder Legislativo, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, estão em curso dois projetos de lei, em fase de aprovação, para regular as questões relacionadas à Tecnologia da Informação e às práticas racistas ou discriminatórias na Internet: (a) o PLC no 89, de 2003, proposto pelo deputado federal Luiz Piauhylino; (b) o PLS  309/2004, de autoria do Senador Paulo Paim. O PLC no 89, de 2003, propõe alterações ao Código Penal Brasileiro criando e/ou aperfeiçoando a tipificação de crimes na área de tecnologia e comunicações. O PLS no 309/2004 propõe a definição e tipificação de crimes resultantes de discriminação e preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem, inclusive quando  cometidos pela Internet.

 

5.      Legislar sobre tecnologia de comunicação requer especial atenção para uma série de problemas que se nos apresentam nesse campo, tais como: as questões relativas a direitos individuais (direito à liberdade de expressão e de livre manifestação de pensamento; direito à liberdade de opinião; direito à intimidade, direito de acesso à informação etc.), as questões de tipicidade, determinação de autoria e de competência jurisdicional, principalmente nos delitos cometidos pela Internet, que assumem, em alguns casos, feição de crimes transnacionais.

 

 

6.      Verifica-se, ainda, a ausência de uma norma internacional para coibir práticas racistas, discriminatórias ou intolerantes pela Internet. A inexistência de tal norma internacional é um sério obstáculo à efetivação dos direitos humanos, das regras de direito e da estabilidade democrática, bem como ao aperfeiçoamento e execução das recomendações contidas na Declaração e no Plano de Ação de Durban. Essa relevante questão deve ser levada em conta pela sociedade internacional, notadamente pelos Estados que participaram da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas.

 

7.      Destarte, no que se refere aos crimes de racismo cometidos pela Internet, haja vista que não há previsão dessa nova modalidade delituosa na arquitetura internacional de proteção dos direitos humanos em vigor, é imperioso que os Estados se comprometam com a idéia de elaboração de instrumentos complementares aos existentes (Por exemplo: a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; a Carta da OEA; a Carta da ONU; a Declaração Universal dos Direitos Humanos; A Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais; a Declaração Americana dos Direitos e Deveres Humanos; a Convenção Americana dos Direitos Humanos; a Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos; a Convenção Internacional de Direitos Econômicos, Social e Racial; a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres; a Convenção Internacional de Supressão e Punição de Crime de Apartheid; a Convenção dos Direitos das Crianças, além de outros instrumentos internacionais).

 

 

8.      Vale destacar, nesse contexto, a relevante iniciativa dos Estados que compõem o Conselho da Europa, que após elaborarem uma Convenção sobre crimes cibernéticos (Convention on Cybercrimes [1]   - ETS 185, Budapest, 23,XI,2001), apresentaram um Protocolo Adicional a esta, criminalizando os atos de natureza racista e xenófoba cometidos através de sistemas de computadores, e pela Internet (Additional Protocol to the Convention on Cybercrime, concerning the criminalisation of acts of a racist and xenophobic nature committed computer systems [2] – Strasbourg, 28.I.2003).

 

9.      A essa iniciativa européia temos de somar outra mais recente, apoiada pelo Brasil na OEA [3] , em 2005, referente à criação de uma Convenção Interamericana contra o Racismo e Discriminação. O Brasil apresentou duas importantes sugestões para essa nova norma internacional: (a) a enumeração de condutas racistas, discriminatórias ou intolerantes na Internet; e (b)  inclusão de formas contemporâneas de discriminação (por exemplo, as características genéticas,  a  orientação  sexual, a condição infecto-contagiosa estigmatizada, a deficiência e a condição de distúrbio mental incapacitante), ampliando o alcance da futura norma para além do combate de atos de racismo e de discriminação racial.

 

 

10.  Para finalizar, trazemos como sugestão para a construção de uma norma internacional complementar, a título meramente exemplificativo, algumas condutas que devem ser consideradas como discriminatórias, especialmente porque estão ausentes da arquitetura internacional de proteção geral e específica dos direitos humanos, em face da sua contemporaneidade: [4]

a)                            a difusão, a disponibilização ou a disseminação, por sistemas de computadores ou comunicação via internet, de qualquer material racista ou discriminatório, entendido como qualquer imagem  ou representação de idéias ou teorias, que advogue,  promova ou incite ódio, discriminação ou violência contra  indivíduos  ou grupos por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião,  opiniões  políticas ou de qualquer outra natureza,  origem  nacional  ou  social,  posição econômica, nascimento  ou  qualquer outra condição social, deficiência, distúrbio mental incapacitante, característica  genética,  orientação  sexual  ou  condição  infecto-contagiosa estigmatizante;

 

b)                            o insulto público, por sistemas de computadores ou comunicação via internet, de pessoas por motivo de raça, cor, sexo,  idioma,  religião,  opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento  ou  qualquer outra condição social, deficiência, distúrbio mental incapacitante, característica  genética,  orientação  sexual  ou  condição infecto-contagiosa estigmatizante, ou grupo de pessoas associadas a qualquer dessas características ou condições;

 

c)                            a difusão, a disponibilização ou a disseminação, por sistemas  de  computadores  ou  comunicação via internet, de material  que  negue,  minimize  grosseiramente,  aprove  ou justifique  atos que constituam genocídio ou crimes contra a humanidade,  assim  definidos  pelo  direito internacional e reconhecidos,  em  sentenças  finais,  por  tribunais estabelecidos  por  instrumentos  internacionais;

 

  1. Concluindo, o combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias correlatas pela Internet não é um tema simples, mas objetivo complexo, tão diverso quanto à própria diversidade humana. Conflitos e dissensões emergirão, mesmo entre aqueles e aquelas que comungam do mesmo ideal de fraternidade. O desafio proposto, portanto, será o estabelecimento dos mecanismos sócio-institucionais mais adequados para a regulação da vida social em conformidade com princípios e valores de profundo respeito à dignidade humana em todas as suas manifestações étnico-raciais, culturais e religiosas. 


NOTAS

 

[1] Vide: <http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/185.htm>.

[2] Vide: <http://conventions.coe.int/Treaty/Commun/QueVoulezVous.asp?NT=189&CM=11&DF=12/01/2006&CL=ENG>.

[3] Vide :  <http://www.oas.org/main/main.asp?sLang=P&sLink=http://www.oas.org/OASpage/Events/default.asp?eve_code=2>.

[4] Estas são algumas das contribuições constantes do conjunto das propostas apresentadas pelo Estado brasileiro à OEA, objetivando a elaboração da uma futura Convenção Interamericana contra o Racismo e Discriminação. O Representante do Brasil na OEA, Silvio José Albuquerque e Silva, é o presidente do Grupo de Trabalho Encarregado de Elaborar o Projeto da futura Convenção Interamericana. Vide: <Http://www.oas.org/main/main.asp?sLang=P&sLink=http://www.oas.org/OASpage/Events/default.asp?eve_code=2>.

 

 

* Comunicação apresentada no Seminário de Alto Nível  sobre Racismo na Internet, na 4ª  Sessão do Grupo de Trabalho Intergovernamental na Implantação da Declaração e do Programa de Ação de Durban. Seminário realizado na Suíça,  em Genebra entre 16 e 27 de janeiro de 2006.

**  Luiz Fernando Martins da Silva, é advogado, professor universitário e doutorando de Ciência Política do IUPERJ, ocupando atualmente a função de Ouvidor da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República do Brasil -  (SEPPIR).

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