Resenha de Carlos Henrique Gileno* do livro:

O Brasil e os Dias: Estado-Nação, Modernismo e Rotina Intelectual

André Botelho,

Editora EDUSC, Bauru, 2005.

 

 

Ao analisar a obra do escritor e diplomata carioca Ronald de Carvalho – elegendo nessa análise os escritos que se estendem de 1910 a meados dos anos 30 do século passado -, André Botelho oferece ao leitor uma inestimável contribuição metodológica ao estudo das idéias no Brasil. O Autor de O Brasil e os Dias: Estado-Nação, Modernismo e Rotina Intelectual não analisa a obra de Ronald de Carvalho de forma hermenêutica, como se a própria obra contivesse a explicação “sagrada” da particularidade do processo de desenvolvimento do Estado-Nação no Brasil. Antes, o seu objetivo é realizar uma análise sociológica das idéias, pensando temas e problemas que dizem respeito aos processos de mudança social e modernização ao trazer à tona o “sentido sociológico” da atuação dos intelectuais modernistas “no processo de construção do Estado-Nação”.  Nesse contexto, a metodologia empregada em O Brasil e os Dias não se refere rigorosamente a uma historiografia das idéias nem tampouco resgata o estudo de uma obra para defender a visão ideológica de um determinado segmento da elite intelectual ao propor reformas culturais e políticas advindas das idiossincrasias daquela elite.

 

Podemos dizer que em O Brasil e os Dias o estudo da obra de Ronald de Carvalho não se constitui em mero molde onde é depositada a convicção política do pesquisador. Grande parte dos estudos situados na área do pensamento social no Brasil no século XX consagra a interpretação que vislumbra no passado colonial e imperial o principal articulador do atraso da vida social brasileira contemporânea no que se refere à sua organização efetivamente democrática. A partir dessa consagração, procura-se naqueles estudos descrever a obra do Autor, tomando-se o devido cuidado para que essa descrição não extrapole aquele molde consagrado. Daí, em cotejamento com o molde, o Autor estudado pode ser classificado como conservador, liberal ou democrata, originando discussões alentadas sobre se o autoritarismo de Azevedo Amaral ou Oliveira Vianna pode ser utilizado para a elaboração de um projeto que conduza à democracia e à modernidade ou se o pretenso democrata Sérgio Buarque de Holanda elaborou ou não um projeto alternativo ao autoritário durante os anos 30 do século XX.

 

         André Botelho não utiliza o molde meramente para exercitar a sua ideologia política e social da realidade. A constatação de que os modernistas paulistas consideraram a obra poética e estética de Ronald de Carvalho “formalmente” insatisfatória às suas pretensões de renovação estética, conduz o Autor à análise do “significado sociológico mais amplo” da questão estética e poética da obra do modernista carioca. A despeito da observação dos modernistas paulistas, André Botelho sustenta que a obra de Ronald de Carvalho estava inserida no contexto intelectual modernista na medida em que refletia os temas e problemas existentes nos anos 20 em relação ao processo de construção do Estado-Nação “como comunidade política da modernidade”. Nessa perspectiva, André Botelho adverte que os estudos referentes ao modernismo dos anos 20 empreendem uma análise que “separa” projeto estético e projeto ideológico, enunciando a partir dessa constatação que a sua análise sociológica se apóia sobre a categoria de “poder ideológico”, a qual permite deslindar a “dimensão propriamente política da cultura”.

 

Assim, a questão estética e poética em Ronald de Carvalho – personificada tanto nos seus escritos quanto na sua trajetória intelectual – pode ser analisada sob a perspectiva metodológica que objetiva compreender alguns aspectos das relações estabelecidas entre as propostas de renovação cultural dos modernistas – incluindo as propostas de Ronald de Carvalho – e as idéias e práticas sociais que desembocaram na ideologia do Estado Autoritário vigente nos anos 20 e 30 do século passado. Nesse panorama, André Botelho salienta que os projetos estéticos e poéticos podem ser lidos sociologicamente como “forças sociais reflexivas”, justamente porque encarnam um “poder ideológico” que rotiniza idéias.

 

Essa rotinização evidencia que as idéias possuem uma “base social”, já que as idéias são consideradas metodologicamente como “forças sociais” que atuam nos processos de mudança social. Por exemplo, em Ronald de Carvalho as atividades intelectuais não estão dissociadas do âmbito da “estratégia política”: a busca da consolidação de uma “cultura brasileira” que permita a emergência “da solidariedade e coesão social da sociedade brasileira como nação” é um projeto nacional que oferece à cultura o papel primordial de criar as condições que viessem a consolidar o “espírito coletivo” de que carece a sociedade brasileira. De fato, o intelectual, considerado como “ator social”, deveria imprimir uma “estratégia política” às suas idéias estéticas e poéticas na busca da consolidação daquele projeto nacional.

 

Todavia, apenas a vontade do intelectual não serve para efetivar a sua ideologia na prática. Ronald de Carvalho era detentor de um “poder ideológico” que estava embasado nos seus “recursos sociais, institucionais e intelectuais”. Por outro lado, tanto a sua proposta de renovação cultural quanto as propostas dos demais modernistas estavam articuladas à permanência de formas de autoridade tradicionais, as quais estavam em sintonia com a ideologia autoritária do Estado vigente nos anos 20 e 30 do século XX. Podemos perceber que o projeto estético e poético de Ronald de Carvalho, em alguma medida, se efetivou na prática, fazendo parte de um processo que rotiniza idéias ao influir efetivamente na organização social e política da sociedade brasileira.

 

         Ao empregar uma metodologia que privilegia a “condição de forças sociais reflexivas das idéias”, André Botelho sugere que o estudo das idéias no Brasil é fundamental para entendermos aspectos teóricos significativos da “mudança social, da organização política da sociedade e das relações de poder que isso implica”. Todavia, essa análise sociológica pressupõe uma erudição que permita reconstruir o contexto intelectual de uma época. Em O Brasil e os Dias: Estado-Nação, Modernismo e Rotina intelectual a erudição de André Botelho conduz firmemente o leitor pelas veredas sinuosas daquela reconstrução.

 

* Doutor em Ciências Sociais pelo Programa de Doutorado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Substituto do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP, FCL, Araraquara). Participante do Laboratório de Política e Governo da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP, FCL, Araraquara). Professor do Instituto Matonense Municipal de Ensino Superior (IMMES, Matão, São Paulo).

Fechar