O DIREITO À CULTURA
COMO POLÍTICA DE AÇÃO AFIRMATIVA – PARTE I
Sergio Abreu*
"Ao respeitar o outro, rendemos
homenagens, por meio dele, à vida em tudo o que ela tem de belo, maravilhoso,
diferente e inesperado. Testemunhamos respeito por nós mesmos, ao tratar os
outros dignamente" (Tahar Ben Jelloun. O racismo explicado à minha filha).
1. Nota introdutória
Advirto
aos leitores que o texto aqui desenvolvido foi resultado da comunicação por mim
apresentada no “Seminário Sobre Direitos Humanos”, painel “Direitos Humanos e
Minorias”, realizado em 26.07.2001, na Procuradoria da República no Estado do
Rio de Janeiro, que tomou o título de “Desvelando o Racismo”. O texto sofreu
alterações em razão dos fatos que sucederam aquele momento, não só no Brasil, bem
como em outros países, mais especificamente nos Estados Unidos. Esses relevantes fatos foram a adoção do
sistema de cotas na Universidade que foi submetida ao Supremo Tribunal Federal
, na ocasião da edição da primeira lei
de cotas raciais na universidade (UERJ e UENF) e na segunda edição da lei de
cotas que se encontra em curso no Supremo Tribunal Federal. Fato de igual
relevância foi a decisão do caso da Universidade de Michigan submetido a
Suprema Corte Norte Americana. Na mesma
época tomou posse no Supremo Tribunal Federal o Ministro Joaquim Benedito
Barbosa, primeiro afro-descendente a ocupar uma cadeira na Suprema Corte
Brasileira. Recentemente o texto foi
apresentado na Affirmative Action Studies Network.
Devo
dizer que as questões aqui levantadas são de permanente e atual relevância, uma
vez que dizem respeito à problemática mais acesa no cenário nacional e
internacional, a exemplo dos episódios que marcaram o mundo europeu,
especialmente a França – os “banlieues” - posteriormente para a Alemanha
- “kreuzberg” – se estendendo
para a Holanda e por último a crise no Estado a noticiada marcada intolerância
aos imigrantes, todas marcadas pelas declarações racistas do Ministro do
Interior de França , Nicolas Sarkozy, e o lema de Vladimir Putin para alcançar
o poder “A Rússia para os russos".
Ressalvadas as devidas peculiaridades daquelas problemáticas, servem de
instrumento de análise no que diz respeito ao debate acerca da necessidade de
mais profunda discussão sobre o espaço público e a diversidade étnico-racial,
uma vez que a afirmação de identidades passa necessariamente por políticas de
reconhecimento, associadas a políticas públicas de equalização de disparidades econômico-sociais; essas
políticas independentemente do nome que se queira dar a elas – discrimination
positive ou affirmative action – são imprescindíveis.
A
atualidade do debate, retorno a afirmar, se dá em razão que as diferenças não
podem significar obstáculo ao acesso aos bens econômicos ou culturais de uma
sociedade, ainda que essa distribuição represente um investimento Estatal que
para os setores mais conservadores representa um ônus para a sociedade dita
inclusiva. Independentemente das razões que levam essas etnias a migrarem para
outros Estados, de alguma sorte, elas trazem algum tipo de benefício ou
vantagem, ainda que não se preste a uma reserva de mão de obra menos onerosa
que a do trabalhador nacional, representa o retorno daquelas populações
que no passado foram vitimadas pelo colonialismo escravista ou pelo pós-moderno
colonialismo de idêntico caráter espoliador das populações entendidas como
vulneráveis no âmbito do direito internacional dos direitos humanos. Nessa linha de raciocínio que pretendo trazer
para o campo do debate acadêmico as questões que hoje representam a pauta de
discussão da sociedade civil internacional, tendo como decorrência, o ponto
principal da agenda dos Estados, no seu relacionamento com a sociedade interna
e internacional.
A Paz
e Segurança Internacional preconizada pelas Nações Unidas (preâmbulo e artigo
primeiro da Carta das Nações Unidas ) passa necessariamente pela aplicação
efetiva dos instrumentos jurídicos internacionais – hard law – levando
em conta que as Declarações de Direitos
- históricas – e as últimas Declarações de Direitos decorrentes das
Conferências Internacionais de Direitos Humanos – preconização a concretização
das políticas públicas no sentido da aplicação dos Programas que Ação que
seguem a cada uma delas que vão sendo avaliadas quanto aos seus impactos
através dos qüinqüênios ou decênios. Importante ressaltar que a sociedade civil
global, sobretudo aqueles que militam no campo do direito internacional dos
direitos humanos, cada vez mais registram a necessidade da sua participação
como forma de assegurar o aperfeiçoamento dos instrumentos internacionais de
combate à intolerância tanto no campo interno quanto no internacional Dentro desse espectro de fatos que cada vez
mais se tornam relevantes tendo a sua jurisdicização incontornável é que o
Direito se coloca como um dos vértices de análise e como expressão de
conhecimento de caráter prático-teórico é que ressalto o papel e a importância
desse debate que torna visível aqueles segmentos ocultados pela “razão” intolerante.
Inescapavelmente,
os setores mais privilegiados da sociedade brasileira têm de repensar acerca
dos valores que versam sobre o princípio da igualdade. As políticas de ação
afirmativa já estavam previstas na legislação internacional, especialmente na
Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial, adotada pela Resolução nº 2.106 da Assembléia Geral das Nações Unidas,
em 21.12.1965., o artigo 1º, item 4,
assim dispõe:
“Não serão consideradas
discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de
assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de
indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para
proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais,
contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de
direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem
sido alcançados os seus objetivos.”
Insofismável
é claro o dispositivo da norma convencional no que diz respeito jurisdicidade
das políticas de ação afirmativa como instrumento de equalização de
desigualdades nos Estados contratantes.
A
aplicação de tal cláusula convencional não limita as políticas de inclusão à
educação superior, tendo em vista, que por obviedade educação e cultura se
relacionam de modo indissociável.
No que
diz respeito à Constitucionalização do Direito Internacional o Brasil tem por
princípio nas suas relações a “prevalência dos direitos humanos” e o repúdio ao
terrorismo e ao racismo”.
Acrescentando-se as inovações do § 3º
introduzidos pela Emenda Constitucional nº 45/2004, a qual aperfeiçoou a
sistemática de incorporação das normas internacionais de direitos humanos no
direito brasileiro.
O
Brasil signatário da aludida Convenção adotou, ainda que tardiamente, as
políticas de ação afirmativa – no campo do ensino superior com a criação
do sistema de cotas, introduzido no
direito brasileiro através das cotas Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
posteriormente adotada em outras dezesseis universidades – esta como desiderato da agenda do movimento
negro, ressalvados alguns posicionamentos contrários em relação as cotas por força de questões de natureza ideológica.
O
debate sobre a Constitucionalidade das Ações Afirmativas, em especial as cotas
na universidade pública, tem animado o debate jurídico sobre o princípio da
igualdade. Enfrentar tal temática implica em envolver todos os Poderes da
República, uma vez que as políticas públicas de ação afirmativa traçam um
percurso desenhado pelo figurino Constitucional, no qual a igualdade é mais que
uma questão jurídico-formal devendo ser entendida como uma questão de princípio
que se realiza na materialização de direitos fundamentais identificados com
outros princípios Constitucionais.
A
articulação do art. 3º da Constituição da República Federativa do Brasil, que
preconiza como objetivo fundamental do Estado “erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “ promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação” , com o artigo 5º , que trata dos direitos e
garantias fundamentais, onde dispõe que
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e a
propriedade”, sem sombra de dúvidas vincula a igualdade material – dever do
Estado – com a igualdade formal –dever também igualmente do Estado.
A
arquitetura Constitucional à respeito da proteção e promoção dos povos formadores
do processo civilizatório nacional passa por todas as questões
acrescentando-se que a liberdade de
profissão preconizada no inciso XIII do artigo 5º que assevera ser “livre o
exercício de qualquer trabalho , ofício ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer”, conjuga-se com o artigo 205
que diz ser a “educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Ora,
como desvincular o direito à profissão, sobretudo aquelas nas quais exigem a
educação superior para exercê-las se não são garantidas materialmente,
substancialmente condições de acesso ao ensino? De que modo poderá ser cumprido
o “princípio da indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão”, com a
subrepresentação dos afro-brasileiros na universidade? Como produzir
pensamento, pesquisa voltada para a sociedade se lá não está presente um dos
segmentos mais representativos da sociedade brasileira? Como estabelecer
parâmetros democráticos se efetivamente a defesa e promoção das formas de
expressão, os modos de criar, fazer e viver da comunidade afro-brasileira não
ultrapassa o plano da formalidade? Como
atender ao princípio preambular da pluralidade e da não discriminação se as
condições de igualdade e de acesso ainda são questões de uma retórica
jurídico-formal de igualdade? Como o Estado “protegerá as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, das de outros grupos
participantes do processo civilizatório nacional”. (art. 215 § 1º da CRFB).”?
O
propósito deste artigo é trazer para o debate das políticas de ação afirmativa
o entendimento da sincronia de políticas sociais, culturais somadas as
políticas de inclusão no ensino superior para enfrentar o passo seguinte que
são as políticas de ação afirmativa no mercado de trabalho.
2. A Arquitetura do Racismo. Suportes teóricos
para a construção do discurso jurídico-racial como amparo às políticas de
inclusão.
A análise da problemática das desigualdades raciais e do contexto
social em que se encontra a comunidade afro-brasileira, tomando como princípio
as matrizes teóricas que historicamente orientaram o pensamento racialista
dominante na Europa a partir do século XVII e suas influências no pensamento
nacional, abrem caminho para o enfrentamento jurídico das relações raciais no
Brasil, inclusive desvelando o racismo e adoção de mecanismos jurídicos e
aprimoramento legislativo e doutrinário acerca da questão.
Adotaremos, para melhor desenvolvimento do trabalho, a distinção entre
“racismo” e “racialismo”, seguindo as referências utilizadas por Tzvetan
Todorov. Racismo, para o autor búlgaro, designa comportamento, enquanto
racialismo, as diversas doutrinas sob a temática racial (Todorov, 1993: 107).
O racismo implica, na maioria das vezes, uma hierarquização racial
calcada em ódio e desprezo em relação às pessoas com características físicas
diferentes. Entretanto, o racialismo é fundado nas doutrinas referentes às
raças humanas, possuindo sustentação eminentemente ideológica, baseada,
costumeiramente, no etnocentrismo. O racista comum não tem por fundamento
argumentos “científicos”, diferindo dos ideólogos das raças, cujas visões
teóricas podem implicar ou não comportamentos racistas.
A matriz todoroviana contribui significativamente na compreensão do
instigante estudo sobre as desigualdades raciais.
A perenidade e a extensão universal do racismo, enquanto instrumentos
de dominação, provocaram e provocam até os dias atuais imensos genocídios. O
racialismo, surgido como movimento de idéias na Europa Ocidental no período
compreendido entre o século XVII e meados do século XX, tem sido o suporte
“científico-ideológico” para opressão das comunidades étnicas historicamente
oprimidas. (Todorov,1993:107).
Michael Banton, contrariamente a Todorov, atribui parâmetros temporais
diferentes, em que os biólogos debatiam a origem do homem, enquanto, no século
XIX, a “Antropologia [desempenhava] um papel fundamental”. (BANTON, 1997: 26).
Todorov, ao fixar o fim das teorias racialistas em meados do século
XX, não levou em consideração que elas influenciariam os cientistas até os dias
de hoje. Hernstein e Murray, autores de The
Bell Curve, sustentam que os investimentos do poder público para reduzir
desigualdades raciais são um ônus desnecessário para o Estado, uma vez que fatores
genéticos determinam as causas da evasão escolar e do desemprego. Portanto,
para esses, não se trata de uma questão social a ser resolvida pelo Estado (HERNESTEIN,1994:
269). Não cabe dúvida que os americanos adotam o determinismo biológico, como
uma das correntes do racialismo cientificista.
Para Michel Foucault o racismo está ligado ao que ele denomina de
"biopoder", ou seja, o poder está definido em duas formas: o poder
disciplinar que se aplica ao corpo por meio de técnicas de vigilância e das instituições
punitivas, e aquele que daí em diante ele denomina "biopoder", que se
exerce sobre a população, a vida e os vivos.
Segundo Foucault: "O que
inseriu o racismo nos mecanismos do Estado foi mesmo a emergência desse
biopoder. Foi nesse momento que o racismo se inseriu como mecanismo fundamental
do poder, tal se exerce nos Estados modernos, e que faz com que quase não haja
funcionamento moderno do Estado que, em certo momento, em certo limite em
certas condições, não passe pelo racismo " (FOUCAULT, 2001: 304).
Prossegue: "No contínuo biológico da
espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia
das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras ao contrário,
como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do
biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da
população, uns grupos em relação aos outros" (FOUCAULT, 2001:304).
Segundo o mesmo autor o racismo se
desenvolve com a colonização, no genocídio colonizador , conclui : "Portanto, o racismo é ligado ao
funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das
raças e a purificação da raça para exercer seu poder soberano" (FOUCAULT,
2001:304).
Outra forma de racismo apontada por Foucault , e aquela em que o autor
denominou de "o novo racismo, o neo-racismo", Essas modalidades teriam surgido no século
XX. Conectado esse novo racismo ao
racismo étnico – endêmico ao século XIX . Crê o autor portanto que:
"as novas formas de racismo, que se firmam na Europa
no fim do século XIX e início do século XX, devem ser historicamente referidas
à psiquiatria . É certamente no entanto que a psiquiatria, embora tenha dado
nascimento a esse eugenismo, não se resumiu, longe disso, a essa forma de racismo
que só cobriu ou confiscou uma parte relativamente limitada dela”. (FOUCAULT,
2001:303-304).
Claude Lévi-Strauss em Raça
e História, questiona:
"Se não existem aptidões raciais inatas, como
explicar que a civilização desenvolvida pelo homem branco tenha feito imensos
progressos que nós conhecemos, enquanto as dos povos de cor permaneceram
atrasadas, umas a meio do caminho e outras atingidas por um atraso que se cifra
em milhares ou dezenas de milhares de anos?". (LÉVI-STRAUSS, 2000:
11).
Estão expostos nesta indagação os equívocos acerca das desigualdades
raciais.
Todorov traz, em sua obra, preocupações quanto ao desenvolvimento
científico em nossos dias (TODOROV,1993:178).
As manipulações genéticas, de conhecida base ideocientífica, foram
cuidadosamente tratadas pelo professor Carlos Roberto de Siqueira Castro in Constituição aberta (tese de defesa de
Titularidade
Passaremos a roteirizar as principais teorias racialistas, utilizando
os elementos em que as mesmas foram fundamentadas: a) A existência das raças; b) A continuidade
entre o físico e o moral; c) A ação do grupo sobre o indivíduo; d) A hierarquia universal dos valores; e) A
política baseada no saber.
a) A existência das raças
demonstra que os grupamentos humanos possuem características comuns. As
diferenças decorrem da evidência entre as raças. Os opositores da teoria das
raças constroem sua fundamentação teórica em elementos históricos. Desde
remotos tempos, os grupamentos humanos misturam-se entre si. A este argumento
soma-se a constatação biológica. Biólogos contemporâneos abandonaram a noção de
raça;
b) A continuidade entre o
físico e o moral confirma que as diferenças físicas determinam as diferenças
culturais. Seria dizer, desse modo, que a transmissão hereditária do mental
impossibilita modificá-lo pela educação;
c) A ação do grupo sobre o
indivíduo defende que o comportamento do indivíduo (tão determinista quanto à
anterior) “depende, em grande medida, do
grupo racial-cultural (ou étnico) a que pertence”. (TODOROV,1993:110).
d) A hierarquia universal dos valores não se contenta em afirmar
que as raças são diferentes. Acredita também que umas são superiores às outras,
implicando uma hierarquia única de valores com padrões de julgamentos
universais. A escala de valores adotada é de origem etnocêntrica, tomando a
partir desse critério valorações de ordem estética, intelectual e moral;
e) A política baseada no
saber parte do princípio da submissão das raças inferiores ou sua eliminação.
Nesse caso, racialistas e racistas se complementam: o primeiro na teorização e
o segundo na prática racista.
É bem certo que, o combate ao racismo é travado em diversos campos,
sobretudo no ético-filosófico.
O ponto nevrálgico do racialismo é o “cientificismo”, impregnado pelo
discurso ideologizado da neutralidade científica, o que tem sido o suporte
teórico do etnocentrismo. “O
cientificismo, pode-se dizer, é o iceberg, e o racialismo é a sua ponta
aparente. Hoje em dia, as teorias racialistas não são bem aceitas, mas a
doutrina cientificista continua tão próspera quanto antes.” (TODOROV, 1993:
110)
Outra distinção necessária no campo do racialismo é o anti-semitismo.
Discriminação puramente cultural, uma vez que não é possível encapsulá-la nas
clássicas doutrinas racialistas. Entretanto, os racistas incluíram na sua pauta
odiosa de discriminação a categoria “semita”.
Trataremos de pormenores sobre os principais teóricos do racialismo e
suas respectivas obras:
François Bernier, em 1686, adota pela primeira vez o termo “raça” em
sentido moderno.
Linne, na França, empenha um longo esforço no sentido de investigar as
espécies humanas.
Buffon in Histoire naturelle,
apresenta o trabalho mais significativo sobre a questão racial. Trata-se de uma
síntese de relatos de viagens, feitas entre os séculos XVII e XVIII, exercendo
forte influência na literatura e nos trabalhos científicos, da época.
Conde de Buffon, fez chegar ao público, em 1749, os três primeiros
volumes da Historie naturelle de l’homme,
publicado no mesmo ano. (SCHAWARZ,1996:162) Ele sustentava a existência natural
da diferença da origem do homem e dos animais. (Animais são destituídos de
razão e de palavra; o que os distingue dos homens).
Entretanto, para o autor, embora havendo essa distinção, os homens,
também no interior da sua unidade, obedeciam a níveis de hierarquização.
A racionalidade e a sociabilidade possuem componentes como
“civilização”, “polidez”, “barbárie” e “selvageria”. Esses elementos variam da
base ao cume da hierarquização. “No cume
se encontram as nações da Europa Setentrional, logo abaixo os outros europeus,
depois vêm as populações da Ásia e da África, e, na parte mais baixa da escala,
os selvagens americanos”.
(TODOROV,1993 :110).
Muitos dos
enciclopedistas acreditam na hierarquização das raças, colocando no topo a
civilização européia; mas ainda não podemos falar de racialismo. Buffon e
Voltaire partilhavam das mesmas idéias e convicções, no que diz respeito à
proximidade da natureza quase animal das raças inferiores. A divergência,
portanto, dava-se no campo da origem do homem. Enquanto Buffon era homogenista,
Voltaire era poligenista.
Buffon parte de uma classificação de culturas e não acreditava nos
efeitos da educação; portanto, para ele, os negros são seres inferiores, e “afinal de contas é normal que sejam
submetidos e reduzidos a escravidão”. (TODOROV, 1993:110).
É sob esse argumento que os racialistas buscam fundamento “científico”
na teoria de Buffon.
Outro aspecto da sua teoria é a correspondência entre raça,
civilização e miséria. Segundo ele, a ausência de civilização produz a
negritude da pele.
Negritude, rigor de clima e inexistência de civilização estão
amalgamados. Físico e moral estão intimamente ligados. A estética também na
teoria de Buffon apresenta-se etnocêntrica.
A constatação das diferenças culturais, no espaço e no tempo, não nos
torna possível afirmar que os homens, por esse critério, são superiores ou
inferiores uns em relação aos outros. Foi a utilização desses critérios que
fundamentou a exploração através da colonização (séc. XIX) das nações “ditas
racialmente inferiores”.
O detalhamento da teoria de Buffon é importante para a compreensão do
que foi o pensamento racialista nos séculos que se seguiram. Acrescentamos que,
outros autores sofreram fortes influências da teoria de Buffon. Destacamos:
Renan atribui características às três raças: a raça inferior é
constituída pelos negros da África, pelos nativos da Austrália e pelos índios
da América.
O que une as referidas raças é o seu grau de inferioridade cultural.
Segundo ele é próprio das raças
inferiores ser primitivas ou não civilizadas. Não são civilizáveis, não são
suscetíveis de progresso. Essa conclusão de Renan permite justificar sua tese
poligenista. Para ele, o principal exemplo das raças inferiores são os negros: “Não há exemplo na história antiga ou
moderna de um povoamento negro ter se elevado a um certo nível de civilização”
(TODOROV, 1993:110).
Renan estabelece critérios sobre a raça que denomina “intermediária”;
melhor dizendo, amarela, os asiáticos enfim (chineses, japoneses, tártaros e
mongóis). Segundo ele, são civilizáveis até um certo grau. Deixamos de nos
aprofundar na teoria de Renan, no que diz respeito a raça “intermediária”, para
não fugir à temática do trabalho.
O núcleo central da teoria de Renan é a hierarquização das raças. Para
ele a raça branca jamais conheceu a selvageria. A civilização está em seu
sangue. Nesse sentido, a civilização para a raça branca é inata enquanto para as
demais, inassimiláveis.
O suporte teórico encontrado
por Renan – “raças não perfectíveis” – foi o argumento poligenista.
A crítica do autor era dirigida ao ideal humanista da unidade e ao conceito
da “perfectibilidade”, em Rousseau. “A radicalidade dessa concepção chegava à
própria negação do darwinismo, na medida em que se duvidava não só de uma
origem comum dos homens, como da possibilidade de se prever um destino
conciliável” (SCHWARZ, 1996:62).
Outro aspecto de sua teoria é a justificação do expansionismo
colonialista sobre os povos “ditos” inferiores. Renan não admitia a conquista
de nações racialmente iguais. Para ele, era inadmissível imaginar a terra
povoada unicamente por negros, “limitando
tudo ao gozo individual no seio da mediocridade geral”. Prossegue o autor: “A
ausência de idéias sãs sobre a desigualdade das raças pode levar a um total
rebaixamento” (TODOROV,1993:110).
Assim, Renan justificava toda a exploração do homem a partir de
critérios “científicos” de superioridade. Para ele, “A exploração científica da Argélia será um dos títulos de glória da
França do séc. XIX, e a melhor justificativa para uma conquista” (La sociéte berbére, in Petit Robert, p. 550)
A proposta renaniana é eugênica, quando sustenta a transformação
social e física através da contribuição da qualidade superior do sangue. Seu
projeto imperialista está articulado com outro projeto, igualmente
insustentável, sob o ponto de vista ético: a eugenia. Ambos acarretaram toda
sorte de violação aos direitos fundamentais do homem.
O cientificismo determinista está repousado em dois postulados: o
determinismo integral e a submissão da ética à ciência. Nessa esteira
caminharam racialistas influentes do século XIX, como: Taine, Renan, Gobineau.
Sob esses dois postulados, os citados autores afirmavam que “nenhum acontecimento ocorre sem causa”.
Pensamento, comportamento, sentimento, enfim, todos os atos humanos são
perfeitamente identificáveis e estáveis.
Nesse sentido, conclui Todorov:
“Abandonamos o universalismo, em cujo quadro se forma a
filosofia cientificista; era, portanto, não uma condição necessária, mas apenas
uma circunstância contingente, já que esse cientificismo (fé no determinismo,
submissão da ética) pode se combinar – e no séc. XIX se combinará
preferencialmente – com o relativismo e a renúncia à unidade do gênero humano,
com as doutrinas racialistas e nacionalistas, que encontrarão em Taine sua
fonte de inspiração” (TODOROV, 1993:132).
Os cientificistas
acreditavam que a ciência era européia, dado o grau de superioridade de sua
gente, enquanto que os demais continentes – não civilizados ou civilizáveis –
não atingiriam jamais o domínio do saber, em virtude de sua inferioridade.
Portanto, o conhecimento era patrimônio genético, predeterminado dos povos da
Europa.
Conhecimento e dominação faziam parte de um todo inseparável. As raças
hierarquizadas, sob o critério “científico” da superioridade/inferioridade e a
relativização da ética, submeteram os povos “ditos” inferiores ao odioso
processo de colonização.
Para muitos racialistas da época (Gobineau e Diderot), diante da
história, os julgamentos éticos não têm pertinência.
Perseguindo a superioridade racial, os racialistas tinham um ideal de
nação, vinculado diretamente com o que eles imaginavam ser o processo
civilizatório. Xenofobistas e racialistas distinguiam-se no sentido de ser o
primeiro vulgar, enquanto o segundo, “científico”. A postulação racialista
cientificista visava à exploração das ditas raças inferiores e seu progressivo
extermínio ou embranquecimento, com o fim de purificar a sociedade contaminada
pela barbárie e selvageria das raças inferiores.
Os racialistas visavam, em suas doutrinas, aos aspectos culturais.
Para tanto, subestimavam a língua de outras raças que não a sua. Foi nesse
sentido que os colonizadores impunham seu idioma, por entender que a dominação
– travestida de processo civilizatório – necessariamente tinha seu aspecto
lingüístico.
Daí, o francofilismo sustentar que “um
muçulmano que saiba francês jamais será um muçulmano perigoso”; ou ainda: “a conservação e propagação da língua francesa são importantes para a
ordem geral da civilização”.
A fé foi outro elemento de fundamentação racialista, diferenciando
religião de magia. A primeira era o resultado da crença das raças superiores,
enquanto a segunda era vista sob a óptica da inferioridade. A prática e o
culto, dos chamados povos racialmente inferiores, tinham conotação animista.
A flagrante violação à liberdade de culto dos afro-brasileiros,
tratado de forma preconceituosa, tem ressonância quotidiana. O racialismo de
Nina Rodrigues classificou a religiosidade negra de “animismo fetichista”. A
aludida denominação tinha o intuito de ressaltar que “os negros botavam alma nas pedras, nas árvores e em todos os objetos
animados e inanimados de seu meio ambiente”. “O Animismo fetichista”, livro
de Nina Rodrigues prefaciado por Arthur Ramos, trata das religiões de
origem africana como demonstrações de primitivismo e degenerescência, próprios
das raças inferiores.
Para o cientificismo racialista, o indivíduo é determinado pela sua
ancestralidade racial e, em vista disso, nada adianta empreender esforços no
âmbito educacional para atingir o nível de civilidade, inato às raças
superiores.
Le Bon, Taine, Helvetius, entre outros, foram adeptos do determinismo
científico.
De acordo com Le Bon: “facilmente
se faz um bacharel ou um advogado de um negro ou de um japonês, mas só se pode
lhe dar um verniz, sem ação sobre sua constituição mental, (...) Esse negro ou
esse japonês acumulará todos os diplomas possíveis, sem jamais chegar ao nível
de um europeu comum”.
A aludida concepção é de abordagem culturalista.
Segundo David Brion Davis, in "O
problema da escravidão na cultura ocidental", aponta Edward Long como
um dos mais preconceituosos escritores do século XVIII. Em sua obra David Brion
Davis apresenta um vasto painel de autores, nas mais diversas áreas do
pensamento e das artes , que se manifestaram acerca da questão da escravatura.
Théoctiste, arauto do cientificismo destituído de qualquer parâmetro
ético, afirma: “A grande obra se
realizará pela ciência, não pela democracia.” E prossegue: “É preciso que a ciência se torne senhora do
mundo, pois os cientistas encarnam o princípio superior da humanidade, ou seja,
a razão” (DAVIS, 2001: 85)
O cientificismo do século XIX alcançou no século XX dimensões aterrorizantes.
O nacional-socialismo, em suas experiências biogenéticas, aviltou todo e
qualquer princípio ético. Hoje, com as denúncias das manipulações genéticas,
tememos que mais uma vez a ideologia cientificista ocupe o lugar da ética. Os
Estados Unidos implementaram em 1932 o Projeto Tuskegee, que utilizou durante
quarenta anos quatrocentos negros portadores do vírus da sífilis como cobaias.
Denunciado em 1972, foi interrompido o projeto e suas vítimas foram indenizadas
num montante de sete milhões de dólares. A comunidade afro-americana iniciou
uma campanha no sentido de exigir do Estado americano desculpas formais pela
“pesquisa”, de evidente cunho racista. O presidente Bill Clinton formalizou as
desculpas em 16 de maio de 1997.(CLINTON, 1997:30).
Os malefícios do racialismo cientificista atingiram o continente
africano, na conhecida partilha da África. O processo de emancipação foi obtido
através das lutas de libertação em Moçambique, Angola, Namíbia, São Tomé e
Príncipe, Cabo Verde, Rodésia e, por último, com a extinção do regime
apartheísta da África do Sul. A história da luta contra o poder colonial
demonstrou que os argumentos de inferioridade racial nada mais foram que um
meio de submeter e espoliar o continente africano.(KIZERBO,1972), (BOAHEN, 1932),(CASSIS,
1976).
As
teorias racialistas que inundaram o mundo, baseadas no cientificismo,
marcadamente ideológico, traçaram um itinerário de segregação, submissão e
exploração das nações “ditas pertencentes a raças inferiores”. O
europocentrismo ligado ao processo de colonização e a ideologia das
civilizações dominantes foram as marcas dos últimos séculos. O darwinismo
social serviu para explicar a hierarquização racial. Afirmavam os
evolucionistas que os povos não europeus deveriam seguir o itinerário das
culturas dominantes. Os deterministas biológicos, ao contrário, pensavam o
homem determinado pela raça. Assim, na óptica dos deterministas biológicos:
“Peyroux de la Coudrenière explicava, em 1814, o declínio da antiga
Grécia pela presença, no seu sangue, de elementos impuros negros. Segundo
Saint-Simon, os negros viviam num baixo grau de civilização porque
biologicamente são inferiores aos brancos. Augusto Comte, pai influente do
positivismo pensava que a superioridade da
cultura material européia tivesse, talvez, sua fonte de explicação numa
diferença estrutural do cérebro do homem branco. Os dicionários e enciclopédias
do séc. XIX são unânimes em apresentar o negro como sinônimo de humanidade de
terceira” (MUNANGA,1988:19).
O negro, colocado à margem da
história, onde nunca é visto como sujeito e sim como objeto, vem tendo ao longo
do tempo sonegado seu direito à participação política. Na história das
populações negras, o projeto de nacionalidade é sufocado pela ideologia
imperialista e colonizadora.
As lutas pela emancipação dos povos africanos encontraram na produção
discursiva dos escritores da “negritude” uma das respostas à
pseudojustificativa do colonizador, que tentava legitimar a dominação, no
sentido de reduzir o negro ontológica, epistemológica e teologicamente. Para
isso, o colonizador utilizava dois elementos: a superioridade racial,
dogmaticamente confirmada, e a inferioridade congênita dos negros.
A reação dos escritores da “negritude” buscava a identidade negra
africana, pleiteando a revisão das relações entre os povos, para que se
chegasse a uma civilização não universal, como a extensão de uma regional
imposta pela força – mas uma civilização do universal, encontro de todas as
outras, concretas e particulares. (MUNANGA, 1988:19).
Seus principais representantes combateram a ordem colonial, o
imperialismo e o racismo. Dos seus quadros ideológicos, depois de conquistadas
as soberanias nacionais, protagonizaram as mais importantes mudanças, no
sentido de afirmar os valores culturais dos países recém-descolonizados.
Stanislas Adotevi, Franz Fanon, Cheikh Anta Diop, Alfredo Margarido,
Marcin Towa, René Ménil, Senghor, Cesaire, entre outros, foram os ideólogos da
“negritude”.
Outro movimento de grande importância foi o pan-africanismo. Nascido
em 1900 durante o primeiro Congresso Pan-africano tinha como objetivo lutar
contra a política imperialista na África.
A perspectiva do movimento era a associação de todos os territórios
para defender e promover sua integridade. “Sem
pregar a volta para a África dos negros americanos, defendia os direitos destes
enquanto cidadãos da América e exortava os africanos a se libertarem em sua
própria terra”.
O pan-africanismo concebia a luta contra o colonialismo através da
unidade racial, ou seja, “pan-negre”, tricontinental que nega a escravidão
americana e a colonização européia.
“La volonté du retour au continent des
origines conjuguée à cette nouvelle conception de l’unite raciale provoquera au
début du siécle un mouvement ‘pan-nègre’ tricontinental que tendait à la
négation de l’esclavage americain et la colonisation européene” (MUNANGA,1988:19).
O pan-africanismo na América do Sul encontra-se bem debatido na obra
Pan-africanismo na América do Sul – Emergência de uma rebelião negra, de Elisa
Larkin Nascimento. O Negro Revoltado, obra organizada pelo Senador Abdias do
Nascimento, traz a lume os principais documentos finais dos congressos e
encontros sobre a questão racial no Brasil.
É sob a perspectiva da insubmissão ao domínio colonialista que os
principais intelectuais africanos contribuíram com as organizações para
libertação de seus países. “A obra do
homem está apenas começando, e ao homem cabe vencer toda interdição imobilizada
nos recantos de sua fé, e nenhuma raça possui o monopólio da beleza, da inteligência,
da força” (Cesaire Apud Said,1995).
O arcabouço traçado pelos principais teóricos racialistas,
anteriormente apresentados, teve forte influência no pensamento nacional, a
partir das primeiras décadas do presente século. Raça e nacionalidade faziam
parte do projeto de identidade nacional.
3. As
concepções ideo-raciais brasileiras e suas influências no direito.
Passaremos agora a sumariar os principais autores nacionais.
A ciência determinista do
século XIX trouxe-nos o enganoso conceito de raça.
Os autores brasileiros, fortemente influenciados pelas teorias de
Renan, Le Bon, Taine e Gobineau, sendo o último um dos mais representativos,
introduziram na produção acadêmica nacional as idéias racialistas que
predominaram nas primeiras décadas deste século.
O conde Gobineau, autor de Essai
sur l’inegalité des races humaines, obra publicada em 1853, era partidário
do determinismo racial absoluto. Ao mesmo tempo compartilhava do darwinismo
social, introduzindo a noção de “degeneração da raça”, resultado da mistura de
espécies humanas diferentes. Adepto da teoria “monogenista e evolucionista
social”, na medida em que seu argumento previa a impossibilidade do progresso
para algumas sociedades compostas por “sub-raças mestiças não civilizáveis” (Schwarcz,1996:63-64).
Arthur de Gobineau permaneceu no Rio de Janeiro durante quinze meses, como
enviado francês. Sua correspondência diplomática com D. Pedro II pode ser
encontrada na obra Arthur de Gobineau et
le Brésil. Nos idos de 1869, o diplomata francês analisou a população e a
estrutura política do Brasil. A perspectiva de análise do diplomata francês
atravessou o pensamento de diversos autores nacionais.
Já Silvio Romero, crítico literário, definia-se como darwinista
social. Entendia que a raça e o ambiente eram os elementos necessários à
compreensão da criação artística. Explicava que “todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas idéias. Os
operários deste fato inicial têm sido: o português, o negro, o índio, o meio
físico e a imigração estrangeira” (Skidmore,1994:73).
Romero pensava que os europeus que imigraram para o Brasil no final
dos anos de 1880 apressariam o processo de “branqueamento”. Para o autor,
segundo Guerreiro Ramos: “O negro não é
só uma máquina econômica, ele é antes de tudo, malgrado sua ignorância, um
objeto de ciência”. Romero apoiava-se nas idéias de Taine, Renan, Préville,
Broca e Gobineau (Ramos,1996:169-170).
Euclides da Cunha, autor de Os sertões, adotava as opiniões dos
principais representantes do “racismo científico”, como Gumplowcz e Lapouge.
Para o escritor, “A mistura de raças
muito diversas é, na maioria dos casos, prejudicial” e “a mestiçagem extremada é um retrocesso”;
”(Cunha Apud Skidmore, 1994: 75). e conclui: o miscigenado racial “é um decaído, sem a energia física dos
ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores”
(Cunha Apud Skidmore, 1994: 75).
Silvio Romero e Euclides da Cunha, ambos, propunham o
“embranquecimento” como alternativa para uma nação, onde o negro e o índio eram
pensados como intelectualmente inferiores ao colonizador europeu.
Passemos agora a Oliveira Vianna. Igualmente adepto dos teóricos
estrangeiros sobre raça, escreveu em sua obra intitulada Populações meridionais do Brasil que Gobineau, Lapouge e Ammon –
seguidores da corrente européia do “racismo científico” – tratavam-se de “gênios possantes, fecundos e originais”
(Cunha Apud Skidmore, 1994: 75).
O núcleo central do pensamento de Oliveira Vianna é a existência de um
Estado autoritário como forma de corrigir o descompasso oriundo do transplante
das instituições estrangeiras. Enfim, Oliveira Vianna, a partir de uma
perspectiva autoritária e centralizadora do Estado, escreveu vários textos para o debate constituinte e os projetos sobre o
funcionalismo, o sindicalismo e o direito do trabalho. Seguindo o figurino
adotado pelas Constituições do primeiro pós-guerra, a Constituinte de
1934 foi marcada pela representação profissional no Congresso Nacional.
Outro influente formulador
das teorias racialistas foi Paulo Prado, conhecido cafeicultor paulista.
Tornou-se conhecido por suas contribuições financeiras para a Semana da Arte
Moderna de 1922.
Para Prado, a arianização do
Brasil era inevitável, uma vez que, sendo a população brasileira com um oitavo
de sangue negro, perderia a aparência africana. Paulo Prado e Oliveira Vianna
entendiam que a solução dos problemas nacionais estava na arianização do povo
brasileiro.
A análise da produção acadêmica de Nina Rodrigues será melhor
desenvolvida na segunda parte, quando tratarei da reflexão interdisciplinar das
desigualdades raciais. Entretanto, nesta primeira parte estará presente o
centro do pensamento de Nina Rodrigues.
Limitado pelo excessivo recurso às teorias alienígenas, o médico
baiano publicou, em 1894, As raças
humanas e a responsabilidade penal no Brasil. A aludida obra é dedicada a
Lombroso, Ferri, Garofalo, Lacassagne e Corre. A proposta de trabalho é a
criação de um código penal para brancos e outro para negros, tendo em vista as
diferenças biológicas determinantes da superioridade e inferioridade raciais.
Acrescenta que a inferioridade dos negros é a causa determinante da
criminalidade.
Varnhagen concebia nação brasileira a partir de um projeto
etnocêntrico onde o negro estava colocado num patamar de inferioridade em
relação ao branco. Assim, Nilo Odalia in As
formas do mesmo - ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e
Oliveira Viana, pontua o pensamento do historiador do seguinte modo:
"A opção irrecorrível por uma Nação branca e
européia nasce, segundo o autor da História Geral do Brasil, como o fruto
amadurecido e temperado de uma experiência histórica em que as linhas da nova
Nação são legadas e determinadas por uma civilização superior. Aos demais
grupos étnicos e culturais, considerados vencidos, só lhes resta uma
participação passiva no projeto da nova Nação e apenas na medida em que se
deixarem ou forem absorvidos e integrados, racial e culturalmente, pelo branco
– única fonte de legitimação, pois dele decorrem os valores básicos da nova
nacionalidade”.
Reafirmando
o caráter etnocêntrico do historiador embora
as três raças sejam desigualmente
representadas no Panteão erigido por Varnhagen, a idéia de supremacia inconteste do branco em relação as
duas outras raças se fazem representar
de maneira brancos sintam-se heróis. De tal sorte tal idéia se presta a exemplificar o que poder da civilização
branca na recuperação dos melhores de civilizações inferiores.
Passamos agora a Gilberto Freyre, autor de Casa-grande e senzala, que
tem como núcleo central de sua obra a denúncia e a crítica à sociedade
patriarcal. Segundo Freyre, o Brasil é o resultado do “ethos patriarcal herdado da era colonial” (Schwarcz, 1993:164).
Para Freyre, a sociedade brasileira é multirracial: “o europeu, o africano e o indígena foram
igualmente valiosos para a nossa formação”. Entretanto, sua análise não foi
no sentido de promover o igualitarismo racial; ao contrário, reforçou o
pensamento elitista do “branqueamento”.
Outra contribuição
importante de sua obra, talvez a mais significativa, tenha sido sua teoria
luso-tropicalista.
Na perspectiva culturalista de Freyre as relações amistosas entre
senhore e escravo eram possíveis em decorrência da dominação turco-otomana na
Península Ibérica. Tal convivência tornou possível a harmonia entre as
diferentes raças no Brasil. Assim, foi criado “um paradigma de convivência racial harmoniosa a introduzir, em meio a
esse mundo de tensões” (Skidmore,1994:75). A partir desse pressuposto
culturalista, Freyre construiu o mito da democracia racial, opondo-se às
teorias evolucionistas biológicas.
A crítica ao mito da democracia racial faz sentido na medida em que
dissimula a evidente discriminação racial, facilmente comprovada pelos índices
apontados pelos órgãos oficiais e pelas OGNs, responsáveis pela publicação
desses indicadores sociais.
Arthur Ramos foi o continuador do trabalho de Nina Rodrigues,
publicando as seguintes obras: O folclore
negro no Brasil (1935); As culturas
negras no Novo Mundo (1937); A
aculturação negra no Brasil (1942) e Introdução
à antropologia brasileira (1943-1947).
O historiador Sérgio Buarque de Holanda contribuiu para o debate sobre
a questão racial, em Raízes do Brasil (1936), apontando como principais
características do Brasil a “afabilidade”, a “hospitalidade” e a “generosidade”
existentes em nossa estrutura social. Segundo o autor, os portugueses
demonstraram uma “extraordinária
plasticidade social combinada com a ausência completa, ou praticamente completa
entre eles, de qualquer orgulho de raça”. Nesse
sentido, o autor se alia a Gilberto Freyre, quanto ao aspecto tolerante do
colonizador, criando a categoria do “racismo cordial”.
Schwarcz, in Raça e diversidade,
destaca que o ponto central do pensamento de Holanda é apresentar o “homem cordial”,
mostrando que “na verdade, a cordialidade é só o topo, a ponta do iceberg, pois
por baixo há uma sociedade profundamente hierarquizada.” Enfim, trata-se de uma
sociedade onde sistematicamente a hierarquização racial subtrai o exercício da
cidadania.
Passemos agora à obra de Florestan Fernandes, no que diz respeito à
questão racial.
Florestan Fernandes e Roger Bastide estavam alinhados no mesmo ponto,
no qual invertiam a idéia de que o negro é um problema para o país.
“O país, a sociedade, enfim uma estrutura social iníqua é que se
constitui em um problema para a população negra: é essa sociedade que calibra a
participação social e que manipula o destino histórico da população brasileira
com características negróides, marginalizando-a, discriminando-a,
preconceitualizando-a, bloqueando, assim, seus passos rumo a uma cidadania
plena.”
A adoção da linha
teórico-metodológica, enfatizando o empírico, procurando interpretar os fatos
dialeticamente à luz de um referencial marxista, foi a inovação do trabalho de
Fernandes no tratamento da questão racial.
Florestan Fernandes e Roger Bastide abandonaram o esquema culturalista
de análise, aderindo às técnicas qualitativas da antropologia.
Para Florestan Fernandes a acefalização imposta pelas “raças dominantes, classes dominantes, elites
políticas dominantes, decepam a cabeça daqueles que podem ameaçá-los,
acefalizando um grupo oprimido”. Prossegue o sociólogo: “O Brasil precisa tornar-se socialista para
que as raças alcancem um padrão de democracia pelo qual elas se nivelem e o
talento deixe de ser recrutado em termos não-igualitários, em termos de
concentração racial de renda, cultura e de poder.”
Guerreiro Ramos enfoca a problemática racial a partir da elaboração de
uma hermenêutica da situação do negro no Brasil.
“Sou negro, identifico como meu o corpo em que o meu eu está inserido, atribuo à sua cor a
suscetibilidade de ser valorizado esteticamente e considero a minha condição
étnica como um dos suportes do meu orgulho pessoal – eis aí toda uma propedêutica
sociológica, todo um ponto de partida para a elaboração de uma hermenêutica da
situação do negro no Brasil”.
Guerreiro Ramos conheceu a problemática racial a partir da assunção de
sua negritude. O ponto central da sua análise é “a precariedade histórica da brancura como valor”. O etnocentrismo
brasileiro está calçado na sôfrega tentativa de identificação com o padrão
estético europeu. Os negros ávidos de embranquecimento sofrem o drama do
psicologicamente dividido. A partir dessa perspectiva “carece de significação falar do problema do negro puramente econômico,
destacado do problema geral das classes desfavorecidas ou do pauperismo. O
negro é povo no Brasil”.
Guerreiro Ramos, propunha o conceito de cultura autêntica,
contrapondo-se ao da transplantada, tão comum entre os autores que o
antecederam.
Segundo Joel Rufino dos Santos, Guerreiro Ramos, para a sociedade
modernizante, trata-se de um sociólogo populista, mas a originalidade do seu
pensamento é admitir que “a democracia
populista é a única linhagem político-ideológica original. Ou a negamos
sumariamente, como costumam fazer os convictos da modernidade – de direita ou
de esquerda –, ou nos valemos dela para elaborar novas estratégias de justiça
social na atualidade”. Prossegue o historiador na análise do pensamento do
sociólogo:
“Para Guerreiro Ramos, pois, negro não é uma raça, nem exatamente uma
condição fenotípica, mas um topo lógico, instituído simultaneamente pela cor,
pela cultura popular nacional, pela consciência da negritude como valor e pela
estética social negra. Um indivíduo preto de qualquer classe, como também um
mulato intelectual ou um branco nacionalista (por exemplo), pode ocupar esse
lugar e dele, finalmente, visualizar o verdadeiro Brasil. Como não lembrar a
clássica definição de Clóvis Moura. Branco, no Brasil, é todo indivíduo que
escolheu a cor dos colonizadores para se espelhar, negro o contrário?”
Roberto
da Mattta publicou, em 1981, inquietante ensaio chamado Você sabe com quem está falando? Da Matta discute as estruturas
sociais, sob a perspectiva de uma sociedade excludente, altamente
hierarquizada. Do mesmo autor, “Carnavais,
malandros e heróis” (1978) tem como originalidade a combinação de abordagem
estruturalista e simbólica para diagnosticar o “dilema brasileiro”.
Antônio Cândido (1993) escreveu um ensaio intitulado Dialética da malandragem, onde analisa a
obra Memórias de um sargento de milícias, introduzindo a idéia de “terra de
ninguém moral”. Partilha Antônio Cândido das concepções de Da Matta quanto à
hierarquização racial e à crítica da “evolução” racial harmoniosa. O mito das
três raças é chamado por Da Matta de o “nosso racismo”.
Darcy Ribeiro entendia que: a única atitude moralmente defensável “para um intelectual brasileiro era a de
reconhecer que sua sociedade era injusta, violenta e retrógrada” e que “reivindica a revolução”.
Antropólogo como Da Matta e igualmente saído dos estudos indígenas, a
lucidez acadêmica e política de Darcy, ao analisar os problemas que envolvem a
nacionalidade brasileira, fez dele um crítico das estruturas sociais que
oprimem as camadas desfavorecidas de nossa sociedade.
Sua preocupação com a raça está evidenciada no seu último trabalho: O povo brasileiro - a formação e o sentido
do Brasil. A referida obra enfrenta a questão racial como a principal
tarefa de todo intelectual envolvido com a superação das desigualdades sociais.
“O alargamento das bases da sociedade, auspiciando pela
industrialização, ameaça não romper com a superconcentração da riqueza, do
poder e do prestígio monopolizado pelo branco, em virtude da atuação de pautas diferenciadas,
só explicáveis historicamente, tais como: a emergência recente do negro da
condição escrava à de trabalhador livre; uma efetiva condição de inferioridade,
produzida pelo tratamento opressivo que o negro suportou por séculos sem
nenhuma satisfação compensatória; a manutenção de critérios racialmente
discriminatórios que, obstaculizando sua ascensão à simples condição de gente
comum, igual a todos os demais, tornou
mais difícil para ele obter educação e incorporar-se na força de trabalho dos
setores modernizados. As taxas de analfabetismo, de criminalidade e de
mortalidade dos negros são, por isso, as mais elevadas, refletindo o fracasso
da sociedade brasileira em cumprir, na prática, seu ideal professado de uma
democracia racial que integrasse o negro na condição de cidadão indiferenciado
dos demais”.
Enfim, para Darcy, a mestiçagem nacional é a nossa maior
singularidade.
Abdias do Nascimento, em 1938, teve seu nome ligado à militância do
movimento anti-racista no Estado de São Paulo. Fundador do Teatro Experimental
do Negro – TEN – (1944), exerceu as atividades de diretor e ator teatral.
Segundo Guerreiro Ramos: “Abdias do
Nascimento lançou muitos artistas negros que, de outra forma, provavelmente não
teriam tido a oportunidade de revelar seu talento dramático.”
Na década de 70, depois do
exílio nos Estados Unidos, participou ativamente do movimento negro
internacional e das atividades acadêmicas em instituições africanas e
norte-americanas. Professor emérito da Universidade de Nova Iorque (Centro de
Pesquisas e Estudos Porto-riquenhos) e doutor honoris causa pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cunhou sua obra acadêmica no combate
à discriminação racial. Seu “tour de force” é conciliar trabalho
acadêmico e parlamentar.
Por ocasião do I Congresso
do Negro Brasileiro, destaca que a problemática do negro tem “fisionomia
própria”. Entretanto, se existe estreita ligação entre raça e classe, elas não
se confundem e não se esgotam com o “problema geral do povo brasileiro”.
O corte epistemológico a partir dos trabalhos de Florestan Fernandes,
Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, Darcy Ribeiro e Roberto da Matta
consiste na ruptura com as idéias hierarquizantes e excludentes sobre a
temática racial. Assente, na opinião dos referidos autores, que a democracia
passa, necessariamente, pela superação das desigualdades sociais.
ATENÇÃO:
A segunda parte do artigo será publicada no próximo número de achegas.
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ZERBOKI, Joseph. História da África Negra. Lisbôa, 1972, v.1 e 2 .
RESUMO: A proposta do presente artigo tem por
objeto as implicações dos direitos
culturais, em especial a proteção constitucional a comunidade afro-brasileira,
articulado com o direito fundamental ao exercício da liberdade de profissão ,
nas políticas de ação afirmativa, tendo como destaque o sistema de cotas na
universidade pública brasileira. Para tanto, é necessária a análise das teorias
que embasaram o discurso racialista no Brasil e que se prestam para a análise
teórica acerca das disparidades étnico-racias.
PALAVRAS-CHAVES: Sistema de cotas; racismo; affirmative
action; direito internacional; trabalho; direito constitucional; exclusão;
direitos humanos; multiculturalismo.
*Sérgio Abreu: Mestre pela PUC-Rio
e Professor Adjunto. Coordenador do Observatório Jurídico do NIREMA – Núcleo
Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afro-descendente. Professor de Direito Internacional Público
da Universidade Estácio de Sá. Advogado
e Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB. Autor de: “Os Descaminhos da Tolerância. O
Afro-brasileiro e o princípio da Igualdade e da Isonomia no Direito Constitucional”.
E-Mail: Sergio.Abreu@ig.com.br