“Tendo
constatado que a União Européia se encontrava numa encruzilhada decisiva da
sua existência, o Conselho Europeu, reunido em Laeken (Bélgica) em 14 e 15
de Dezembro de 2001, convocou a Convenção Européia sobre o Futuro da Europa”.
(Preâmbulo do Tratado que estabelece
uma Constituição para a Europa).
Nos últimos dias do maio de 2005, o processo de aprovação
da Constituição Européia obteve grande espaço na mídia internacional. O “non”
da França e o “nee” holandês, ambos expressos através de referendos,
inauguraram mais uma das já recorrentes crises da União Européia em sua marcha
rumo a uma maior Integração. Além disso, o adiamento da votação do projeto de
lei que viabilizaria o referendo na Inglaterra – inicialmente previsto para
maio de 2006 e agora suspenso por tempo indeterminado - veio a agravar ainda
mais a já complicada conjuntura política regional. Contudo, tanto nos países
que adotaram o modelo de referendo quanto naqueles que optaram pela via
parlamentar - como é o caso da Alemanha - os debates giram em torno de uma só
coisa: A Constituição da União Européia.
As implicações institucionais de uma constitucionalização
são bastante amplas; sobretudo no que tange aos processos de tomada e aplicação
de decisões no âmbito regional europeu. É nesse particular que a presente
reflexão se insere. O propósito não é fazer uma análise da conjuntura [1].
O intuito é analisar a formatação institucional proposta pela Constituição
Européia e, a partir disso, perguntar qual é o real conteúdo do documento
em debate.
A Constituição
pretende substituir, num único texto, os principais tratados internacionais
vigentes entre países europeus. Diante da reformulação institucional proposta
por este documento, especulações têm sido feitas sobre se esta forma de
associação entre Estados poderia ser ou não classificada como uma Federação.
Pretendemos, através da análise desta Constituição, situar o caso da
União Européia dentro de um continuum que
possua em uma de suas extremidades o modelo confederativo e na outra o
federativo. Para tal, buscaremos estabelecer quais seriam as principais
características de cada um dos modelos – tanto o confederativo quanto o
federativo – dando especial destaque à construção de órgãos supranacionais
autônomos e à descentralização do poder. Destacaremos, outros importantes
fatores que possam vir a influenciar no processo de classificação. Em uma
segunda etapa de trabalho, tentaremos identificar estas características no
projeto de Constituição e, a partir do constatado, situaremos o caso sob
análise no continuum ao qual me
referi anteriormente.
A característica definidora do modelo federalista é, sem dúvida
alguma, a descentralização do poder. Antes de melhor explicitá-la, é importante
ressaltar que é impossível tanto ao conceito de descentralização quanto ao de
centralização, existirem em sua forma pura. Lijphart, um dos principais teóricos
do federalismo, lembra-nos que: “A centralização e a descentralização, são,
obviamente, uma questão de grau, mas na prática não fica difícil, classificar a
maioria dos países segundo a simples dicotomia: Centralizado –
Descentralizado”. (Lijphart, 2003).
Assim
sendo, faz-se mister uma clara diferenciação entre estes dois importantes
conceitos. O critério utilizado para a diferenciação entre as concepções de
centralização e de descentralização do poder é a exclusividade no processo
decisório. Em um modelo descentralizado há esta exclusividade, enquanto que
numa estrutura de poder centralizado esta mesma exclusividade é inexistente. Em
um modelo descentralizado as várias instâncias do poder trabalham de modo
independente e autônomo entre si, pois cada uma delas possui temas e
responsabilidades que são de sua exclusiva competência. O que for decidido
naquela instância, no que tange às suas matérias exclusivas, será a palavra
final; não cabendo a qualquer outra instância contestá-la, independente de sua
posição “hierárquica”. Já em um modelo centralizado não há qualquer
especificação de responsabilidades e / ou prerrogativas exclusivas entre as
instâncias do poder. Isto faz com que o poder central possa interferir em toda
e qualquer decisão que contrarie sua vontade, caso tal diretriz tenha sido
tomada numa instância inferior à sua na hierarquia. Uma vez que as várias
instâncias do poder se encontram hierarquizadas, as instâncias periféricas se
encontram necessariamente subordinadas aos desejos do poder central.
Nas palavras de Dahl, outro destacado autor dedicado a tais estudos em
um modelo federativo (descentralizado): “Algumas matérias são de exclusiva
competências de determinadas unidades locais – cantões estados províncias - e
estão constitucionalmente além do âmbito da autoridade da União, enquanto
outras estão fora de esfera de competência das unidades menores”. (DAHL, 1986).
O modelo
federativo é então compreendido aqui como uma forma de organização
institucional baseada no princípio da descentralização do poder durante o
processo de tomada de decisões políticas no âmbito interno ao Estado.
3. Dois
Modelos: Federação e Confederação
Saindo do âmbito dos possíveis modelos de organização e exercício do
poder internamente ao Estado, passaremos agora a analisar o modelo
confederativo com forma de relacionamento interestatal. A diferenciação
necessária agora será entre o modelo federativo e o confederativo.
As Confederações são formas de relacionamento interestatal normalmente
surgidas diante da fragilidade dos Estados para tratar de assuntos de segurança
e desenvolvimento econômico quando independentes. Esta forma de associação
geralmente pretende criar “uniões defensivas” para tratar da primeira questão,
assim como “uniões aduaneiras” para tratar da segunda. Neste modelo,
instituir-se-iam órgãos políticos de caráter diplomático, compostos de
representantes emanados dos corpos de governo de cada um dos Estados-membros.
As decisões têm de ser tiradas por consenso fazendo com que estas
instituições confederativas fiquem a mercê das vontades destes representantes
dos governos nacionais. Devido a essa dependência elas não possuem autonomia.
Diante dessa absoluta dependência, as instâncias “superiores”,
paradoxalmente, não terão poder suficiente a ponto de obrigar algum ou qualquer
dos governos confederados a acatar qualquer resolução que venha a contrariar
sua vontade nacional. Todos os membros possuem poder de veto, ou seja, se não
há unanimidade entre os associados não será possível ao órgão central atuar de
forma satisfatória. As decisões dos órgãos centrais passam então a ter mais um
caráter de recomendação do que de lei.
Em um modelo federativo, toda e qualquer unidade que venha a cogitar
sua entrada na União deve, necessariamente, transferir uma parcela de sua
soberania – muito freqüentemente a referente à política externa e econômica - a
um centro de decisão política superior e comum a todas estas partes. Tal poder
é autônomo e superior, mas é também limitado. Isto visa garantir a cada uma das
partes que irão compor à União suas respectivas soberanias em determinadas
áreas. A atribuição, ao governo central, do monopólio das competências
relativas á política externa e militar permite fazer com que as relações entre
eles acabem por perder seu caráter violento, passando a adquirir um cunho
jurídico. Isto faz com que todos os conflitos internos à União possam ser
resolvidos não mais através do conflito armado, mas perante um tribunal.
No campo da economia, o governo federalista procura eliminar barreiras
alfandegárias e monetárias que possam impedir a unificação do mercado. Isso é
normalmente feito atribuindo-se a política econômica comum a um órgão central
representado, grande parcela das vezes, por um Banco Central Único.
Em resumo, poderíamos dizer que o princípio do federalismo é aquele
que garante a pluralidade dos centros de poder soberanos coordenados entre eles
de um modo tal que seja conferida ao governo central – competente em todo o
território da federação – uma quantidade mínima de poderes desde que esta
parcela seja suficiente para manter a unidade política e econômica. Ao mesmo
tempo, prevê que sejam atribuídos aos Estados federados, os quais tem
competência cada um deles sobre seus respectivos territórios, todos os demais
poderes.
4. Características
Institucionais do Federalismo.
O Federalismo têm como característica
primária a descentralização do Poder. Possui também características secundárias
dentre as quais podemos citar uma legislatura bicameral (dispondo de uma forte
Câmara Federal para representar as regiões componentes), uma constituição
escrita difícil de emendar, e uma suprema corte, ou corte especial constitucional,
que possa proteger a constituição pelo seu poder de revisão judicial [2].
Estas características secundárias desempenham antes o papel de viabilizar
o federalismo do que servir como pré-requisito para que este modelo de governo
se instale.
O
Bicameralismo é um dos mais destacados componentes do delineamento
institucional típico de países federalistas. Numa democracia representativa de
corte liberal, o princípio da liberdade individual é um fator importante a ser
considerado, assim como o é a defesa da minoria contra a ditadura da maioria.
Uma das funções do modelo federalista é dar autonomia a minorias étnicas.
Dentro desta perspectiva de defesa das minorias, certas questões
constitucionais fundamentais tornam a existência de acordos consensuais - quase
unânimes - vantajosas para o processo democrático. Contudo, a exigência de
formação de unanimidade ou de “supermaiorias” para que se tomem decisões em
processo governamentais de rotina pode afetar drasticamente a sua eficácia. Se
tal exigência é posta, as minorias acabam por ganhar grande poder de obstrução,
uma vez que, sem seu apoio e aprovação, não será possível a formação da
“supermaioria” necessária à decisão em pauta. Seria então o caso de uma
“ditadura da minoria”.
Para
solucionar este dilema institucional foram criadas duas Câmaras nos modelos
federalistas. A Câmara Baixa representa o princípio da população. Por sua composição
ser proporcional à constituição da sociedade ela estará mais próxima do
princípio da igualdade democrática expressa na frase “um cidadão, um voto”.
Contudo, exatamente por reproduzir (ao menos típico-idealmente) tal demos, esta Câmara estaria suscetível a
permitir que a maioria impusesse sua vontade sobre a minoria. Isso só não
acontece devido à existência da chamada Câmara Alta. Esta representará o
princípio do território, as unidades da federação; e será através dela que se
pretenderá garantir que os direitos das minorias sejam protegidos contra a
ditadura da maioria. Atuando normalmente como Câmara Revisora, a Câmara Alta
terá sua composição formada de modo não proporcional à população. Será composta
de um modo tal, na maioria dos casos, a fazer com que as minorias sejam
sobre-representadas - as minorias passem a ter um poder de voto maior do que a
sua real importância, não respeitam o princípio de “um cidadão, um voto”. O
voto de um cidadão de uma unidade federativa com uma população pequena tem mais
peso do que o voto de um cidadão de uma unidade federativa de maior população.
Isto permite que as minorias se defendam das maiorias, mas fere o princípio
democrático da igualdade.
Assim o modelo federativo é inerentemente restritivo do demos. Contudo, o grau desta restrição
irá variar de acordo com algumas características constitucionais propostas por
Alfred Stepan (1999) e que serão agora melhor trabalhadas. São elas:
1)
O grau de super-representação da Câmara
Territorial:
A proposição é de
que o potencial restritivo do Senado em relação ao demos irá variar em proporção direta ao grau de sobre-representação
das minorias. Se uma minoria é extremamente sobre-representada, o nível de
restrição ao demos imposto pelo
Senado será, também, muito elevado. Inversamente, se estas minorias tem uma
sobre-representação muito humilde, o Senado terá fraca capacidade de restringir
o demos.
2)
A abrangência das políticas elaboradas
pela Câmara Territorial:
Em um sistema
bicameral, quanto maior é a abrangências das políticas elaboradas pela Câmara
Alta, maiores são suas possibilidade de limitar o demos representado na Câmara
Baixa.
3)
O grau em que a constituição confere
poder de legislar às unidades da federação:
Se o poder
central quase que monopoliza a faculdade de legislar sobre os mais diversos
temas e, conseqüentemente, as unidades federais tenham seus privilégios
legislativos restringidos; este poder central irá, através da
sobre-representação da Câmara Alta, restringir o demos, tanto nacional, quanto provincial.
5. Descentralização e Exclusividade na União Européia.
Ao analisar a Constituição para Europa podemos observar alguns
princípios que regem a divisão de prerrogativas entre os governos nacionais e
as instituições da União Européia. Entre outros, destacamos:
1)
O princípio da atribuição:
Especifica que a
União deverá atuar somente nos limites em que os Estados-membros lhe tenham
atribuído através da constituição. Toda e qualquer competência que não lhe
tenha sido atribuída será prerrogativa dos Estados-membros. Estes domínios
passam então a serem de competência
exclusiva da União.
2)
O princípio da subsidiariedade:
Determina que a
União só poderá intervir nos outros domínios, uma vez que os Estados-membros
não tenham condições adequadas de implantar as diretrizes adotadas.
3)
O princípio da proporcionalidade:
Estabelece que a
União atuará única e exclusivamente para alcançar os objetivos prescritos na
constituição e nenhum além destes.
Há, além destes princípios, uma divisão de competências e
classificação das prerrogativas na qual constam três tipos: As competências
exclusivas, as compartilhadas e as de apoio aos governos nacionais.
As competências exclusivas são aquelas onde
a União pode agir independentemente dos Estados-membros, devendo estas decisões
aplicar-se automaticamente a todos os membros. Podemos citar a título de
exemplo, a celebração de certos acordos internacionais e a Política Comercial
Comum.
As competências compartilhadas são aquelas em
que os Estados-membros exercem seus poderes na exata medida em que a União não
o faça ou opte por não fazê-lo. São exemplos deste tipo as políticas de energia
e de meio-ambiente.
Por último, as ações de apoio visam coordenar ou complementar a
ação dos Estados-membros, sem substituir a competências destes nestes domínios,
ou seja, sem poder proceder a uma harmonização das legislações nacionais. As
políticas industriais, de cultura e de educação podem ser citadas como exemplo.
Constatamos que, assim como no modelo típico de federalismo, há uma
clara definição de exclusividades e divisão de prerrogativas através dos
princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. As diversas
instâncias do poder atuam de forma autônoma e não há concorrência entre estes
diversos níveis do poder, configurando, deste modo, um sistema de poder
descentralizado.
6. Órgãos Supranacionais na União Européia.
Já observamos anteriormente que um dos principais critérios para
distinguirmos as Confederações das Federações, é a presença de órgãos
supranacionais nestas últimas. Analisando o caso europeu, podemos observar a
existência de órgãos com tais características. São eles o Parlamento Europeu, o
Conselho da União Européia (também conhecido como Conselho de Ministros) e a
Comissão Européia.
A Comissão Européia, apesar de cumprir o papel de um “poder
executivo”, têm também o monopólio da iniciativa legislativa. Será a Comissão
que irá propor os projetos de legislação e caberá ao Conselho e ao Parlamento
(partilhando o “poder legislativo”) decidir quanto à adoção ou rejeição desta
proposta.
Constata-se assim, que instituições supranacionais foram constituídas.
Elas possuem soberania real em determinadas matérias sendo independentes,
nestas áreas, das instâncias nacionais. No processo de decisão destas
instituições não há a necessidade de formação de unanimidade como seria num
modelo confederativo. Outrossim, estes órgãos supranacionais possuem poder de
obrigar os Estados-membros à adoção de suas diretrizes mesmo sendo estes
Estados contrários.
Diante destas observações deduzimos então estar a União Européia além
de um modelo tipicamente confederativo.
7. Limitadores do Demos na
União Européia.
Há na União Européia um sistema similar ao bicameralismo onde duas
Câmaras são responsáveis pela produção de leis. Podemos observar a existência
de uma Câmara Alta (Conselho da União Européia) responsável por representar as
unidades da federação (demoi) e de
uma Câmara Baixa (Parlamento Europeu) representando a população (demos).
Pressupondo serem os sistemas bicameralistas inexoravelmente
restritivos do demos e lembrando ser esta uma das características do modelo
federalista acreditamos ser possível indicar o grau de federalização
baseando-nos no grau de restrição imposto a este demos.
Em relação à primeira variável
já anteriormente citada, a saber, o grau de sobre-representação da Câmara
Territorial, podemos observar que, na estrutura institucional da União
Européia, as decisões mais importantes (como a alteração de tratados, a adesão
de um novo membro à União) ainda devem ser tomada por unanimidade. Contudo, na
maioria dos casos é exigida a maioria qualificada e em algumas situações até
uma maioria simples. Com a redução das exigências para a aprovação das
propostas, o demos que era extremamente restrito - devido à necessidade de
formação de unanimidade ou de “supermaiorias” - passa a ter mais facilidade de
atuação. Todavia, para contrabalançar estes avanços a favor do demos, foi
criado um mecanismo de sobre-representação das minorias no Conselho da União
Européia. Neste órgão, os votos dos ministros são ponderados, tendo este peso
proporcional à dimensão relativa da população do Estado-Membro frente ao total
populacional da União Européia.
No modelo pós-alargamento [3], os votos são ponderados da seguinte forma:
§
Alemanha, França, Itália e
Reino Unido: 29.
§
Espanha e Polônia: 27.
§
Países Baixos: 13.
§
Bélgica, República Checa,
Hungria, Grécia e Portugal: 12.
§
Áustria e Suécia: 10.
§
Dinamarca, Irlanda, Lituânia,
Eslováquia e Finlândia: 7.
§
Chipre, Estônia, Letônia,
Luxemburgo e Eslovênia: 4.
§
Malta: 3.
Totalizando: 321 =
[(29x4) + (27x2) + (13x1)... (3x1)].
Apesar de reduzida pela ponderação, a sobre-representação da minoria
persiste. O voto de um representante da Alemanha com seus 82 milhões de habitantes
[4], tem o mesmo peso que o voto de um representante da Itália que tem 57
milhões. O voto de ministro cipriota representando seus 700 mil habitantes
tem peso 4 enquanto o de um representante de 10,5 milhões de portugueses tem
peso 12. Evidencia-se assim que apesar da população portuguesa ser aproximadamente
treze vezes maior que a cipriota, o voto de um ministro português tem somente
o triplo do peso de um ministro do Chipre, ao invés de ter um peso trezes
vezes maior, como seria no caso de uma ponderação perfeita. Isso nos demonstra
que às minorias é dado um peso no processo de decisão que não corresponde
a sua real importância, ou seja, elas são sobre-representadas. O princípio
democrático da igualdade expresso na frase “um cidadão, um voto” é ferido
em prol da restrição do demos, o que nos aproxima do modelo federativo.
A segunda variável se
refere à abrangência das políticas elaboradas pela Câmara Territorial. Sabemos
que a União terá algumas prerrogativas exclusivas, algumas compartilhadas e, em
outros casos, atuará somente sob a forma de auxílio os Estados-membros. A União,
através do Conselho da União Européia (Câmara Territorial) e o Parlamento
Europeu, terá como políticas sob sua abrangência o papel de determinação das
regras de todas as atividades da Comunidade Européia nas quais se incluam
decisões sobre o mercado único e grande parte das políticas econômicas comuns.
Além disso, o Conselho é o principal responsável pela cooperação
intergovernamental em matéria de política externa e segurança comum, estando
prevista até mesmo a criação de um sistema de defesa comum. Uma vez que este
Conselho só possa atuar nos estritos limites que a constituição lhe atribui (proporcionalidade) e, mesmo dentro
destes, com uma restrita margem de prerrogativas exclusivas e uma maior gama de
questões nas quais ele só atua quando as unidades não o fizeram adequadamente (subsidiariedade); vemos que seu poder de
restrição do demos, embora existente,
é muito limitado. Indica-nos então, estas constatações, uma tímida aproximação
do modelo federativo.
A terceira das variáveis é o
grau em que a constituição confere poder de legislar às unidades da federação.
Como expresso acima, à União caberá, principalmente, a competência relativa à
determinação das regras sobre o mercado único e grande parte das políticas
econômicas comuns; assim como as políticas relativas à cooperação
intergovernamental em matéria de política externa e segurança comum.
A existência dos princípios da subsidiariedade
e da proporcionalidade garantindo que
toda e qualquer política que não esteja prevista na carta constitucional esteja
fora das competências da União faz com que o papel dos Parlamentos nacionais
ainda sejam preponderante. A partir disto observamos mais uma vez a existente,
porém limitada capacidade de restrição do demos
pelo poder central da União Européia.
8. Considerações Finais
Nosso
ponto de partida implicava classificar a União Européia dentro de um continuum que possuísse em uma de suas
extremidades o modelo confederativo e na outra o federativo.
A União
Européia já dispõe de instituições com uma presente e crescente autonomia em
relação aos Estados-membros. Tais membros transferiram-lhes parte de suas
soberanias, sobretudo a relativa às áreas de políticas econômicas comuns e
cooperação intergovernamental em matéria de política externa e segurança comum.
Os Estados-membros não tem mais poder de veto sobre as decisões tomadas por
tais órgãos nestas áreas que são suas prerrogativas exclusivas, podendo ser
impostas à estes, mesmo que seu posicionamento tenha sido contrário à adoção de
tais decisões.
Nas
Confederações todos os Estados-membros tem poder de veto e, devido a isto, os
frágeis órgãos não têm qualquer autonomia em relações às unidades. Dito isto,
fica impossível pensar em classificar a União Européia dentro de um modelo
confederativo. Contudo, isto não significa dizer que estejamos diante de uma
Federação.
Num
modelo Federativo o poder é descentralizado fazendo com que as diferentes
instâncias do poder possuam matérias de sua exclusiva competência não cabendo a
nenhuma outra instância contestá-la. A União Européia já preenche este tipo de
requisito à classificação de um sistema como Federativo. Contudo, em toda
Federação é necessário que seja delegado à União um razoável conjunto de
prerrogativas exclusivas, ou seja; parte da soberania dos Estados-membros seja
transferida para esta instância superior. Sendo o montante de prerrogativas de
exclusividade da União muito limitado, as chances de uma real divisão do poder
entre esta e as instâncias locais se tornam mais restritas e, desse modo,
afastam-se as chances de Federalização neste sistema.
No caso
europeu são delegadas à União as exclusividades, nas decisões acerca de
políticas econômicas comuns e em matéria de política externa e de segurança
comum. Pelos princípios da subsidiariedade
e da proporcionalidade cabem às
unidades todas as outras bases jurídicas. Assim sendo, a importância da União
para o total da aprovação de propostas ainda é muito limitada quando comparada
como papel desempenhado pelas instâncias nacionais. Assim, suspeitamos ser
equivocado tratar a União Européia como um sistema federativo consolidado.
Além
disso, cabe lembrar que a quase totalidade das federações costuma ser
bastante rígidas no que concerne à
entrada e, principalmente, à saída de algum dos signatários. A constituição para
a Europa é bem clara neste ponto. Segundo ela, todo e qualquer Estado europeu
que respeite os princípios da constituição poderá aderir ao pacto mediante a
aprovação por unanimidade de todos os demais membros. Uma vez membro, qualquer
Estado que venha a desrespeitar estes princípios pode ser desligado da União.
Numa terceira hipótese, qualquer membro que deseje, pode se retirar
voluntariamente. Além disso, caso o Estado que foi desligado volte a respeitar
os preceitos constitucionais, ele poderá ser reintegrado ao pacto. Do mesmo
modo um país que tenha saído voluntariamente - sem descumprir quaisquer
princípios da constituição – poderá ser readmitido à União seguindo o mesmo
processo que ele realizou à época de uma “primeira adesão”. Esta grande mobilidade
de adesão e desligamento a afasta do padrão federalista.
Não
podendo classificar a União Européia como uma confederação devido à existência
de órgãos supranacionais independentes aos Estados e, ao mesmo tempo, não
podendo nomeá-la uma Federação em conseqüência do caráter ainda limitado destes
órgãos e à grande liberdade de desligamento e adesão atribuída aos Estados
associados; só nos resta classificá-la como uma instituição totalmente nova.
Algo entre o confederalismo e o modelo federalista.
Traçando um continuum para
situar em um pólo o modelo confederativo e, no outro, o federativo, podemos,
diante dos fatos acima, situar a União Européia em um locus intermediário conquanto mais próxima do pólo federativo
parecendo-nos mais adequado denominá-la, como um Federalismo Incipiente.
ANEXO
1 – Quadro conjuntural do atual processo de ratificação da Constituição.
Estado-membro |
Procedimento Escolhido |
Data Agendada
|
Alemanha |
Parlamentar (Bundestag and Bundesrat) |
Aprovada pelo Bundestag:
12 de Maio de 2005. Adoção pelo Bundesrat:
27 de Maio de 2005. |
Áustria |
Parlamentar (Nationalrat e Bundesrat) |
Aprovada
pelo Nationalrat em 11 de Maio de
2005. Aprovada pelo Bundesrat em 25 de Maio de 2005. |
Bélgica |
Parlamentar (Câmara e Senado + Assembléias Comunitárias e Regionais). |
Aprovada pelo Senado:
28 de Abril de 2005. Aprovada
pela Câmara: 19 de Maio de 2005. Aprovada pelas demais assembléias prevista dentro
das próximas semanas. |
Eslováquia |
Parlamentar |
Aprovada pelo Parlamento:
11 de Maio de 2005 |
Eslovênia |
Parlamentar |
Aprovada pelo
Parlamento: 1 de Fevereiro de 2005 |
Espanha |
Parlamentar (Congresso e Senado) +
referendo consultivo |
Referendo 20 de Fevereiro de 2005: Aprovada do Congresso
em 28 de Abril. |
Grécia |
Parlamentar - Mas partidos de esquerda apresentaram uma proposta conjunta para um
referendo |
Aprovada pelo
Parlamento: 19 de Abril de 2005 |
Hungria |
Parlamentar |
Aprovada pelo Parlamento : 20 de Dezembro de 2004 |
Itália |
Parlamentar |
Aprovada pela Câmara em
25 de Janeiro de 2005 e pelo Senado em 6 de Abril. |
Letônia |
Parlamentar |
Aprovada
pela Câmara em 2 de Junho de 2005 |
Lituânia |
Parlamentar |
Aprovada pelo
Parlamento em 11 de Novembro de 2004 |
Rejeitadas |
||
França |
Referendo |
Referendo de 29 de
2005: Negação (NÃO: 54,8%; Comparecimento às urnas: 70%) (a ser oficialmente confirmado) |
Holanda |
Parlamentar (Primeira e
Segunda Câmara)+ referendo consultivo |
Referendo em 1° de Junho
de 2005: Negação (61,7%, Comparecimento às urnas: 63%) (a ser posteriormente
confirmado). |
Em
processo |
||
Chipre |
Parlamentar |
Aprovação pela Casa postergada para 30 de Junho
de 2005 |
Dinamarca |
Referendo |
27 de Setembro de 2005 |
Estônia |
Parlamentar |
Não fixado |
Finlândia |
Parlamentar |
Proposta sobre referendo será entregue ao
Parlamento no outono de 2005 Ratificação planejada para o fim de 2005 ou
começo de 2006. |
Irlanda |
Parlamentar + Referendo |
Referendo provavelmente realizável no período
Outubro-Novembro de 2005 |
Luxemburgo |
Parlamentar (dois
votos) + referendo consultivo |
Primeira votação da Câmara sobre a aprovação do
Tratado prevista para meados de Junho. Referendo em 10 de Julho de 2005 (adoção de uma
lei específica relacionada à organização do referendo adotada pela Câmara em
12 de Abril) Segunda votação na Câmara: Após o referendo |
Malta |
Parlamentar |
Votação do Parlamento prevista para Julho de 2005 |
Polônia |
Provável Referendo Nenhuma posição
definitiva tomada sobre o procedimento até o momento pelo Parlamento. |
A referendo poderia se realizar em 9 de Outubro
de 2005 junto às eleições presidenciais. |
Portugal |
Referendo |
Referendo provavelmente realizando-se em outubro
de 2005 junto às eleições locais. |
Reino Unido |
Parlamentar (Casa dos
Comuns e Casa dos Lordes). + referendo |
Ratificação era esperada na primeira metade de
2006. |
Republica Tcheca |
Provável Referendo Mas
se definições até agora |
Data de um provável referendo atualmente em
debate: Talvez em Junho de 2006 juntamente com as eleições nacionais |
Suécia |
Parlamentar |
Projeto de Lei para Ratificação deverá ser
entregue ao Parlamento no verão podendo ser aprovada em dezembro de 2005. |
[1]
Apesar de a análise conjuntural não ser o foco central deste trabalho, optei
por incluir anexo um quadro no qual consta o atual status do processo de ratificação da Constituição Européia. As informações
foram coletadas diretamente do site
oficial da União e são referentes ao dia 10 de junho de 2005.
[2] Revisão
judicial: Trata-se do processo através do qual uma corte constitucional
especial externa e independente ao Parlamento irá analisar a constitucionalidade
de uma lei ordinária em questão que possa vir a ferir os preceitos estabelecidos
na carta constitucional. Analisando esta lei este tribunal irá testar sua
constitucionalidade e, caso esta decisão parlamentar vá de encontro às normas
da constituição, poderá este tribunal anular a decisão sob o argumento de
ter a constituição um status legal superior a toda e qualquer lei ordinária.
[3] Alargamento:
O termo alargamento é usado para se referir à adesão de novos membros na
União Européia. Em 2004 se integraram 10 novos membros ao bloco. São eles
Polônia, República Checa, Hungria, Lituânia, Eslováquia, Chipre, Estônia,
Letônia, Eslovênia e Malta.
[4] Para
facilitar a compreensão, trabalharemos aqui com valores aproximados.
ALMEIDA,
Maria Hermínia Tavares. Federalismo,
Democracia e Governo no Brasil: Idéias, Hipóteses e Evidências. Bib -
revista brasileira de informação bibliográfica em ciências sociais, nº 51, 1°
semestre de 2001, p.3-152. 2001
COMISSÃO
EUROPÉIA. A Europa em 12 lições. Série documentação européia. Luxemburgo:
serviço das publicações oficiais das comunidades européias. 2003 – 62 p. – 16,2
x 22,9 cm. ISBN 92-894-6786-8
______.
A União Européia num ápice. Disponível em: <
http://europa.eu.int/institutions/index_pt.htm >. Acesso em: 03 de junho de
2005.
______.
Como funciona a União Européia: um guia sobre as instituições da União
Européia. Disponível em: < http://europa.eu.int/index_pt.htm >.
Acesso em: 05 de junho de 2005.
DAHL, Robert A. (1986), "Federalism and the Democratic Process",
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PROJETO
DE TRATADO QUE ESTABELECE UMA CONSTUIÇÃO PARA A EUROPA. Aprovado por consenso
pela Convenção européia, em 13 de Junho e 10 de Julho de 2003. Entregue ao
Presidente do Conselho Europeu, em Roma, a 18 de Julho de 2003. Luxemburgo:
serviço das publicações oficiais das comunidades européias. 2003 – VIII – 333p.
– 17.6 x 25 cm. ISBN 92-78-40201-X
STEPAN,
Alfred. “Para uma nova análise
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TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2ª Ed. SP: EDUSP, 1977.
Resumo: A crise
deflagrada pelo “não” nos referendos
de ratificação da Constituição trouxe à luz debates sobre o futuro da União
Européia. A adoção de uma Carta Magna representa muito mais que a simples
consolidação, em um único texto, dos principais tratados vigentes. Ao ser
ratificada ela garante a exclusividade de formulação de políticas por parte da
União em determinadas matérias, gerando-se condições para que se especule
acerca das possibilidades de esta associação tender, gradativamente, a se
metamorfosear em uma federação. Utilizando variáveis empregadas pelos
principais autores da Ciência Política que se dedicam aos estudos sobre o
Federalismo, pretendemos situar o caso da União Européia dentro de um continuum que possua, em uma de suas
extremidades, o modelo confederativo e, na outra, o federativo. Para tanto,
pretendemos identificar no “Tratado que estabelece uma Constituição para a
Europa” elementos que indiquem o grau de centralização / descentralização do
poder político no delineamento institucional da União Européia.
Palavras-chave:
Federalismo; União Européia; Constitucionalismo; Integração Regional.
* Este artigo é o resumo de um trabalho elaborado para
a avaliação da disciplina ‘Tópicos Especiais em Ciência Política III: Federalismo’,
do Departamento de Ciência Política do IFCS/UFRJ. Agradeço ao Profº Charles de Freitas Pessanha
pela orientação e ao amigo Rilden Mendes Ramos de Albuquerque pelos ricos
comentários e pela contribuição no processo de síntese deste trabalho.
** O autor é acadêmico de Ciências Sociais do Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. É também pesquisador
do Programa de Estudos Europeus onde desenvolve pesquisas sobre Relações
Internacionais, Integração Regional e metamorfoses do Estado
contemporâneo.