PODER, PUNIÇÃO E IMPUNIDADE NA AMÉRICA LATINA

 

Gizlene Neder*

 

         Este texto [1] encaminha a discussão sobre as possibilidades históricas, e políticas, de criação de um tribunal penal internacional em termos regionais, envolvendo, prospectivamente, países da América do Sul. A política externa encetada pela diplomacia brasileira na última década tem apontado esforços no sentido de estabelecer um processo de criação de condições políticas, econômicas e culturais mínimas que garantam uma unidade regional sul-americana, tendo em vista o processo de globalização no plano internacional. Esse encaminhamento tem sido insistentemente nomeado pelos diplomatas brasileiros como sendo uma “política de Estado”. Visam perspectivas de desdobramentos de longo prazo, em contraposição a uma “política de governo”, referida à política externa, implementada no período de um mandato de governo; portanto, de alcance mais limitado. Visam, sobretudo, a construção de uma identidade regional, capaz de garantir minimamente padrões de resistência cultural e estabelecer cadeias produtivas ainda não viabilizadas, apesar da proximidade geográfica dos países sul-americanos. 

         Evidentemente, vários condicionantes históricos indicam algumas possibilidades de articulação: a quase totalidade dos países sul-americanos originou-se da expansão ibérica; com exceção das três Guianas, no norte do continente. 

         Entretanto, se a latinidade oferece vasos comunicantes facilitadores, do ponto de vista cultural, as cadeias produtivas carecem de serem estabelecidas, em termos regionais. Praticamente todas as economias sul-americanas estão articuladas com o mercado mundial, em função da expansão capitalista. Desde fins do século XVIII, a hegemonia ibérica no continente foi, primeiramente, de forma paulatina, e posteriormente, aceleradamente, substituída pela proeminência anglo-saxônica (inglesa, e norte-americana, sucessivamente).     

         A história política da América Latina tem sido marcada por desmandos, autoritarismo e impunidade. Embora o paradigma legalista-constitucionalista tenha predominado na região, desde o processo de emancipação colonial, das dificuldades de afirmação de seus preceitos foram (e seguem sendo) muitas. As possibilidades de criação de um tribunal penal internacional sul-americano devem lidar com esta situação. 

         Tomaremos como ponto de partida para nossa reflexão uma situação limite vivenciada pela sociedade chilena no tempo presente: o caso do general chileno, Augusto Pinochet. Pensamos realizar um exercício de reflexão a partir deste caso específico, visando colocar uma lente de aumento que seja capaz de produzir efeitos de análise para outras situações. 

         O affair é emblemático, pois envolve vários aspectos do autoritarismo latino-americano: conspiração, golpe de Estado e Estado de exceção à normalidade institucional-legal; militarismo, tortura e impunidade. 

A discussão situada no campo do Direito Internacional, que durou mais de um ano, envolveu a solicitação de extradição do General, que se encontrava na Inglaterra, por um juiz espanhol. Augusto Pinochet foi à Inglaterra em busca de tratamento médico e contava receber proteção privilegiada do governo inglês tendo em vista sua cumplicidade (política, estratégica e ideológica) no episódio das disputas pelas ilhas Malvinas, na costa da Argentina. Naquela ocasião, o Chile, sob a ditadura do general Pinochet, emprestou solidariedade aos ataques ingleses, oferecendo base aérea para os bombardeiros daquele país. No entanto, sua extradição foi solicitada por um juiz espanhol, tendo em vista o desaparecimento de cidadãos espanhóis nas prisões chilenas à época da ditadura militar.

 

Enquanto durou a discussão acerca da legalidade da extradição, a imprensa internacional (no interior das formações históricas ocidentais, portanto, nas duas margens do Atlântico) passou a limpo, num amplo debate, a ditadura, a tortura e pesou as possibilidades de criação de tribunais penais internacionais, sobretudo nos crimes contra a humanidade (VERDUGO, 2001; MATUS, 1999).

 

Todo o episódio coloca no cerne da discussão os direitos, a punição e a impunidade na história política da América Latina.

 

É, portanto, numa conjuntura internacional de globalização (criação de mercados cada vez mais internacionalizados e economia capitalista cada vez mais mundializada) que vislumbramos a possibilidade de radicalização política sobre a questão dos direitos, mormente em relação aos crimes contra a humanidade.

 

A criminalização dos crimes contra a humanidade (tortura e genocídio),  – a designação emerge no quadro do pós-guerra com a condenação moral dos crimes do nazismo -  tem se inscrito numa dinâmica nas quais as bases internacionalistas de luta pelos direitos tendem se afirmar.

 

Neste ponto, a simbologia do processo jurídico, com seus tribunais, juizes, réus, júris, etc. reforçam uma idéia de direito que se quer internacional, e, para muitos, “universal” [2] , no sentido da teologia política ocidental (teoria!?). No caso em tela, importa menos o resultado do processo em si (e a execução penal, por conseguinte, com a condenação jurídica do General), e mais os efeitos ideológicos da condenação moral. Certamente, as pressões internacionais contribuíram para a tal condenação moral de Augusto Pinochet pelos seus crimes contra a humanidade, ainda que a solução do affair não tenha tido propriamente um desfecho jurídico, mas diplomático.

 

Destacamos, portanto, a grande importância do Direito, vista em seus aspectos subjetivos (os direitos para todos) nas lutas democráticas na história do tempo presente na América Latina. Nesse ponto, destacamos também um paradoxo: no passado, no auge da vigência do Iluminismo (virada do século XVIII para o XIX), quando o paradigma legalista-constitucionalista afirmava o fetiche da lei na construção e sustentação do poder na cultura política ocidental, o Direito desempenhava um papel articulador fundamental para a afirmação da dominação burguesa. Até bem pouco tempo, a circulação e recepção das idéias e da cultura jurídica iluminista estiveram na base de estruturação do campo político [3] . O tempo das nacionalidades, construído pelo projeto de dominação burguesa, impunha um “caráter nacional” ao Direito e vinculava-o às classes dominantes.  Hoje, entretanto, vivemos a crise deste paradigma legalista, com uma forte hegemonia da lógica cultural do capitalismo (Jameson, 1996) sobre o jurídico e sobre os demais campos. Aparentemente, a questão da globalização do mercado cria uma falsa impressão de projeção dos aspectos econômicos – e projeção social e política dos economistas. Quem sabe então não estamos diante da possibilidade de repor, através do Direito Internacional (quiçá internacionalista [4] ), várias das questões da pauta democrática que estão ainda obscurecidas? E, neste caso, o direito positivo deixaria de cravar-se na relação ideologia dominante/classe dominante, sobressaindo os aspectos do direito  subjetivo (referido aos direitos, de todos, numa agenda igualitarista, democrática e, portanto, internacionalista).

 

Neste sentido, precisamos pensar, historicamente, o Direito – a Lei – como estruturante cultural e ideológico presente no estreito espaço das tradições da cultura ocidental, ou seja, da Europa ocidental; melhor dizendo, da cristandade ocidental -  latina, onde o teólogo e o jurista – na relação poder & saber -  construíram o conjunto das ciências. Pensar também que as sociedades ocidentais desenvolveram uma técnica de submissão, pois a grande obra institucional da cristandade ocidental – a Lei – opera, ideologicamente, a partir da crença, da obediência e da submissão. Portanto, o fetiche (feitiço [5] ) prende-se fundamentalmente à fantasia que é base  constitutiva da crença (P. Legendre, 1983). 

Obediência e submissão constituem idéias-chave que tem pregnância social e indicam uma permanência cultural de longa duração da violência política no mundo ibero-americano, com fortes implicações nas formas historicamente assentadas de concepção sobre os direitos na cultura ocidental. 

Desenvolveremos nossa reflexão sobre as possibilidades de criação dos tribunais penais internacionais, a partir de duas dimensões: 1) aspectos internacionais relacionados à cultura política ocidental, acima enunciados e 2) dentro desta cultura política ocidental, faremos um destaque para as questões ligadas às especificidades ibero-americanas. 

Um primeiro posicionamento conceitual em relação à proposta de criação de um Tribunal Penal Internacional deve ser explicitado: não existe, ainda, um “direito internacional”. 

O que consideramos como “direito internacional”, ou como ficou também designado como “direito comparado”, nada mais é do que a permanência (de longa duração) do direito romano. Este, por sua vez, chega aos tempos modernos através do processo de aculturação ocorrido entre as culturas jurídicas romana, germânica e canônica. Sobretudo, o texto do direito romano foi atualizado histórica e culturalmente pelos teólogos e copistas das universidades da reforma gregoriana, no início do segundo milênio. Atendeu uma necessidade da conjuntura de expansão das cidades e das trocas comerciais, século XI (TIGER & LEVY, 1978).
 

Foi, portanto, na pena de canonistas que ocorreu a transmissão do texto romano (SAVIGNY, 1830). Entretanto, foi o projeto político e ideológico do iluminismo que deitou luzes sobre a a-historicidade do direito romano, obscurecendo (!) os feitos dos intelectuais do medievo. Construiu-se, assim, uma mitificação acerca da perfectabilidade do direito romano tido como um legado da Antiguidade Clássica, greco-romana. Nesse sentido, as fantasias iluministas em torno do direito romano converteram-se em invólucro de um outro tipo de transcendência. Isto porque estas luzes foram excessivas, a ponto de cegarem e impedirem que se enxergasse a mediação da Igreja Romana e suas instituições neste processo de atualização histórica do direito romano. Sobretudo, no auge do tempo das nacionalidades (século XIX), a visão iluminista realizou um movimento intelectual – no campo político da esquerda, de então - de busca das origens (nacionais, genuínas e autênticas) dos “direitos pátrios”. Naquela conjuntura, não se falava em “direito internacional”, mas em “direito comparado”. Von Savigny, jurista romanista e reconhecidamente tido como conservador, caminhou na direção oposta deste movimento e destacou, numa obra cuidadosa e criteriosa, a “história do direito romano na Idade Média”. Embora este autor seja bastante citado, cuja importância é destacada pela grande maioria dos juristas brasileiros, sua mais importante obra para os estudos da história da cultura jurídica (“História do Direito Romano na Idade Média”, de 1830) sequer recebeu uma tradução para língua portuguesa. Não se trata aqui de revigorar os escritos “conservadores” dos juristas romanistas, mas de lê-los com os olhos postos nos aspectos transnacionais que possibilitem as atualizações históricas e apropriações da cultura jurídica ocidental (romanista e inscrita na latinidade). Portanto, inscrita naqueles aspectos referidos ao legado do cristianismo ocidental (ZIZEK, 2000), romano, à cultura ocidental como um todo, e ibero-americano, particularmente. Para tanto, o resgate deve situar-se no sentido de trazer à tona e clamar pela consciência histórica e social do legado, para então, buscar pontos de referência para o processo de criação de condições para a criação de um tribunal internacional. Não deve, no entanto, deixar de relevar e criticar os aspectos de opressão, repressão e impunidade, que também se encontram inscritos no legado cultural.

 

O que chamamos de “direito internacional” relaciona-se, pois, tanto com a estabilidade na Europa, através do incremento do comércio, quanto com o movimento de estruturação da arquitetura institucional da cristandade ocidental, no momento mesmo de resgate do direito romano, (o Código de Justiniano – Corpus Juiris Civilis – compilado pelo jurista e teólogo cristão, imperador do oriente no século VI, Justiniano), pela reforma religiosa gregoriana, a partir do século XI, e que culminou no século XIII. Dentro do processo de institucionalização e montagem da arquitetura político-institucional da Europa ocidental temos a criação das universidades, dos orfanatos, dos hospitais, dos colégios, dos seminários; além da criação de duas das principais ordens religiosas mendicantes: a dos franciscanos e dos dominicanos. Acompanhou e consolidou este processo um movimento político e cultural da massa de leigos que pressionou pela participação ativa na espiritualidade cristã, portanto, na salvação (VAUCHEZ, 1995).

 

Ao mesmo tempo, a cristandade ocidental se consolidou, politicamente, num processo de múltiplas apropriações culturais, onde a cultura jurídica romana e a tradição do direito positivo levam à consolidação dos Decretais (decretos e bulas papais do Código Canônico, de Graciano, início do séc. XIII, que vigorará até o ano de 1917). Isto só ocorreu no ocidente cristão em vista de permanências culturais e políticas romanas.

 

Assim, o que se designa por “direito internacional” opera hoje sobre uma dupla base: (1) aquela do resgate do direito romano e (2) aquela da referência ao direito canônico.

 

A construção de um “direito internacional” em torno de algumas iniciativas básicas na contemporaneidade inclui: o tratado de não proliferação de armas nucleares, o acordo sobre o meio-ambiente de Kioto, as normas comerciais da OMC (Organização Mundial de Comércio), o Tribunal Penal Internacional, os próprios acordos tendentes à construção da Comunidade Européia (o mais importante deles refere-se à unidade monetária do euro), e obviamente a ONU (Organização das Nações Unidas).

 

      Por tudo que está exposto, é possível dimensionar os enormes percalços e obstáculos a serem transpostos tendo em vista a criação do Tribunal Penal Internacional. Sobretudo, porque os EUA se negam a legitimar as cortes internacionais. O que constitui um paradoxo para aqueles que se apresentam como portadores do discurso dos direitos humanos, referenciado aos pensadores liberais norte-americanos, pais fundadores do país e da nacionalidade. Recentemente, as pressões norte-americanas para a mudança na lei belga que ampara os julgamento dos crimes contra a humanidade, fizeram retroceder juridicamente, naquele país, os esforços de afirmação do Tribunal.

 

     De outro lado, pela lógica da argumentação desenvolvida neste artigo, pode-se vislumbrar obstáculos ainda maiores, se forem consideradas as dificuldades decorrentes da falta de condições histórico-culturais para a legitimação do Tribunal Penal Internacional em termos universais.

 

A cultura jurídica do mundo ocidental, que proclama a universalidade dos direitos humanos, teria que se impor a outras culturas. Ademais, não se pode esquecer que a expansão européia, desde fins do século XV, vem carregando as marcas dos deslocamentos e empreitadas das cruzadas do século XIII para além do eixo europeu-mediterrânico. Essa expansão, comercial e mercantil, implicou, como já mencionamos, um processo de evangelização, onde a aplicação da designação “igreja católica”, portanto, “igreja universal”, vem amalgamando as práticas políticas coloniais e imperialistas.

 

As dificuldades não se encontram tanto nas diferenças culturais no interior das referências teológico-culturais das três religiões monoteístas nascidas e estruturadas no espelho d´água do Mediterrâneo: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. As intensas trocas e apropriações culturais, mormente aquelas ocorridas no primeiro milênio do calendário cristão, portanto, antes da reforma religiosa gregoriana que consolidou a referência cultural da cristandade ocidental (a do “continente” europeu [6] ) podem ser pontuadas e interpretadas, através de um ponto de partida comum: o Antigo Testamento.

 

Destarte, uma larga parcela da comunidade política internacional (referida às três culturas religiosas acima mencionadas), malgrado suas diferenças – que são muitas - vem operando simbolicamente com a idéia do Juízo Final. Esta idéia vem sendo reproduzida ad infinitum através de inúmeras práticas políticas (tribunais, júris, execuções penais, etc.) e simbólicas do julgamento e da justiça divina, com a repetição de topoi de virtudes morais e com as idéias de pecado, crime, penitência e punição.

 

Desse modo, destacamos, sobremaneira e de propósito, os aspectos culturais contingentes do projeto político de criação do Tribunal Penal Internacional.

Queremos com isto dizer que, a despeito do distanciamento social, cultural e religioso empreendido no decorrer do segundo milênio (inclusive no interior de cada uma destas referências culturais específicas), quando a Europa enquanto unidade cultural se constitui em torno do processo de simbolização da cristologia romana (KANTOROWICZ, 1998), ainda se podem vislumbrar variáveis de convergência cultural que permitiria pontos de partida para um pacto internacional efetivo.

 

Porquanto, há condições imagináveis para que uma discussão política, no plano internacional, venha a apontar as possibilidades de criação e legitimação do Tribunal Penal Internacional (através da produção social de mecanismos de simbolização e ritualização a serem inventados).

 

Evidentemente, que os aspectos legalistas não devem ser desprezados. Em primeiro lugar, há que se distinguir claramente, a partir do ponto de vista da comparação – portanto, do “direito comparado” – as formações históricas nas quais vige a cultura jurídica anglo-saxônica que não tem base legal romanista, mas que estão, culturalmente, inseridas na cultura jurídica ocidental. Como estamos trabalhando com um conceito de cultura abrangente, não vemos esta variante cultural no interior das formações históricas ocidentais como contradição intransponível para a internacionalização de um direito penal garantista. Mesmo porque, um intenso processo de trocas e apropriações culturais não apenas jurídicas, tem tido lugar na cultura ocidental, no segundo milênio.

 

Se tomarmos a comparação olhando para as relações entre a cultura jurídica romano-germânica-canônica e a cultura jurídica “socialista”, portanto aquela desenvolvida a partir da construção do socialismo nas formações históricas do leste europeu, não se pode deixar de mencionar as grandes transformações ocorridas a partir de 1945, quando o ensino do direito romano tornou-se obrigatório nas universidades da antiga União Soviética. Nesta parte oriental da cristandade (predominantemente greco-ortodoxa), tem-se tido um crescente interesse pelos estudos romanistas, de modo que nos anos 1980, partes dos Digesta Iustiniani foram traduzidas para o russo e foram publicadas sob a direção da Academia de Ciências da União Soviética. Na conjuntura pós-queda do Muro de Berlim os estudos de direito romano foram intensificados na República Tcheca, na Polônia e na Rússia. Na República Popular da China foram editados novos manuais de Instituições do Direito Romano (CATALANO, 2000) [7] . Ainda que estas informações vocalizem explicitamente interesses “romanistas”, portanto, ligados ao papado romano e à Universidade de Roma “La Sapienza”, e, evidentemente, empenhados na difusão ideológica laudatória das maravilhas e universalismo do “direito romano” -canônico(!) - não se pode deixar de considerar esta possibilidade, se pretende-se pensar as condições histórica para a criação do Tribunal Penal Internacional. Gianni Vattimo,  também vocalizando tais interesses, oferece um caminho para o universalismo cristão. Sugere que se expurguem os aspectos imperialistas, emprestados culturalmente da herança política romana (do império), expressos na cultura ocidental pelas cruzadas (as antigas, do medievo, e as modernas, atualizadas na luta anti-terror) (VATTIMO, 2002).

   

Se os aspectos legalistas são tecnicamente imagináveis, dependendo muito as condições políticas para sua aplicabilidade, os aspectos culturais são mais melindrosos. Dito de outro modo, e explicitando o dilema: como trabalhar, política e ideologicamente falando, para a criação e a legitimação de um Tribunal Penal Internacional fora dos marcos da dominação e da hegemonia imperialista ocidental? Como resolver a questão da universalidade (portanto, catolicidade) fora dos marcos do processo de evangelização? E, claro, fora dos marcos do imperialismo. Mais que isto, como situar essa luta ideológica na referência de um direito penal garantista (dos direitos humanos) de amplos segmentos da humanidade que se encontram em condições vulneráveis?

 

Pensamos que, antes de tudo, é necessário que se faça uso da transparência política, onde se enunciem, claramente, as intenções políticas implicadas. Portanto, o primeiro passo para a eficácia é declarar o solo político e cultural matricial destas intenções.

   

A construção de condições políticas internacionais para a criação do Tribunal Penal Internacional passaria, ainda, pelo encaminhamento prévio de um processo de simbolização das questões dos direitos, a partir de uma subjetivação realmente inovadora. Primeiramente, há que se identificar onde está a mudança no horizonte da imaginação histórica a partir da qual se pode imprimir, prospectivamente, uma ruptura significativa com a estrutura fantasmática subjacente, que se manifesta nas ideologias. Para isso, faz-se necessária a assunção plena da ideologia contingente nos processos sociais e políticos (e jurídicos), como condição para por em prática a crítica das ideologias (CERQUEIRA FILHO & NEDER, 1997).

 

Deve-se, ainda, destacar a superação da idéia de que a ideologia implica uma falsidade da realidade, pois, quanto ao seu conteúdo, ela pode ser “verdadeira”, muito precisa, uma vez que o importante não é o conteúdo em si, mas a maneira como esse conteúdo se relaciona com a postura subjetiva envolvida no seu próprio processo de enunciação (ZIZEK, 1996). Para o filósofo esloveno, Slavoj Zizek, quando uma potência ocidental intervém, por exemplo, num país do chamado Terceiro Mundo devido a violações dos direitos humanos, pode ser “verdadeiro” que, neste país, tais direitos não têm sido respeitados e, mais, que a intervenção ocidental irá efetivamente melhorar a situação desses direitos. Para Zizek, no entanto, essa legitimação é “ideológica”, na medida em que deixa de mencionar os verdadeiros motivos da intervenção (econômicos, ou estratégicos, etc). Assim, o cinismo constitui o modo usual de expressão da “mentira sob disfarce de verdade” (ZIZEK, 1996, p. 14). Com franqueza desconcertante, tem-se admitido tudo. Entretanto, o pleno reconhecimento dos interesses envolvidos não impede que estes sejam perseguidos. A fórmula do cinismo já não é, portanto, o conhecido enunciado marxista “disso, eles não sabem, mas o que fazem”, mas “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo” (ZIZEK, 1992).

 

Mais do que enunciar a “universalidade” (catolicidade) dos crimes contra a humanidade, ocultando a teologia política ocidental sob as máscaras do iluminismo secularizado, o essencial para a construção de condições políticas para a criação do Tribunal Penal Internacional é o reconhecimento de fortes conteúdos morais e religiosos nas práticas ideológicas do penalismo “internacional”, apontando em duas direções: 1) no sentido garantista (como já defendemos acima); e 2) no outro sentido, descortinar as possibilidades da crítica à intolerância política e ao fundamentalismo religioso.

 

Retirar, portanto, os véus sagrados da cultura jurídica iluminista, ocidental, revelando suas implicações com a cultura religiosa. A partir daí, atribuir publicidade aos conteúdos universalistas do legado cristão (ZIZEK, 2000), sobretudo naqueles aspectos onde estão calcadas suas marcas de tolerância e reciprocidade com os Outros. Em seguida, auscultar que negociação política e cultural seria possível, tendo em vista os atributos da cultura jurídica e da punição em formações históricas que se encontrem em outras referências culturais. Dessa forma estariam, possivelmente, assentadas algumas bases para um pacto político abrangente para a constituição do Tribunal Penal Internacional. 

Por fim, estendemos esta discussão para uma reflexão sobre as condições históricas e culturais de criação de um tribunal penal sul-americano. 

A expansão ibérica fez-se a partir de anexações territoriais que devem ser olhadas por um viés político, assim como pelo econômico. As exigências da Reconquista fizeram-se presentes: ocupação estratégica do território, do ponto de vista militar e religioso, associada a uma visão hierárquica sobre a Lei e os direitos. Juridicismo, militarismo e religiosidade cristã perfomática, tais são as características dos impérios espanhol e português que se estruturaram, então. A ênfase em alegorias do poder que combinam o caráter militar com a legitimidade jurídico-política, e religiosa, situa-se numa moldura de raízes históricas profundas a serem buscadas desde a fundação dos reinos peninsulares. Sobretudo, deve-se destacar a forma como o território foi reconquistado e colonizado. As lutas religiosas de “recuperação” do território ocupado pelos mouros (pelos índios, pelos negros, ou por um “Outro” diferente da cristandade européia) têm implicações jurídicas, político-ideológicas, mas também simbólicas. Os “donos do poder e da terra” legitimam a propriedade da terra/território nestes suportes ideológicos e simbólicos, produzindo efeitos econômicos de monopólio latifundiário da terra, por exemplo. Estes suportes produzem, também, efeitos ideológicos de resistência à democratização dos direitos, através de entraves psico-afetivos à legitimação destes direitos. 

Juridicismo, militarismo e religiosidade cristã perfomática [8] devem, portanto, nortear a nossa análise. A perfomatividade política e alegórica encontra-se expressa, sobretudo, numa simbologia hiperbólica, seja do militarismo (fardamento, galões, medalhas, bandeiras, etc), seja das manifestações religiosas de fé e devoção (procissões, ornamentos de altares e andores, idolatria de imagens, etc), seja na teatralidade dos autos-de-fé e dos tribunais do Santo Ofício, ou mesmo dos ritos e pompas dos tribunais comuns [9] . A ênfase nestas alegorias situa-se numa moldura de raízes históricas profundas a serem buscadas, como dissemos, desde a fundação dos reinos. 

A assimilação do ultramar às metrópoles fica assim compreendida se tomarmos as opções ibéricas de meados do século XVI, quando os intelectuais da Península abraçaram a segunda escolástica, (também designada escolástica barroca) de corte tomista e construiu-se uma visão coerente e hierárquica do universo. Tratava-se de adotar uma visão de mundo que combinava a teologia especulativa com a filosofia racional, mantendo-se um equilíbrio entre  fé e razão; enquanto que, no século XVII, o pensamento político inglês reformulava suas premissas sob inspiração de Hobbes e Locke, a Península continuava a ensinar e repetir a visão segundo-escolaticista. Vigoraram os ensinamentos de Suárez, que ao codificar as leis para o Ultramar (1680), reafirmou os princípios de uma ordem integrativa, das partes no todo; são princípios assimilacionistas, e, ao mesmo tempo, profundamente assentados numa visão social aristocrática e rigidamente hierarquizada (NEDER, 2000). 

Chegamos, por fim, ao ponto que consideramos nodal para nossa reflexão, se pretendemos a superação da impunidade e a construção de possibilidades para pensar um tribunal penal sul-americano: a visão social aristocrática e hierarquizada no mundo ibero-americano tem produzido, ao longo dos séculos, uma diferenciação penal, segundo a “qualidade” (ou seja, a posição de classe social) do criminalizado. Ao mesmo tempo, a forte presença do penitenciário canônico, especialmente na sua vertente tomista (jesuítica), acopla à diferenciação penal um outro elemento. Trata-se de uma influência profunda e silenciosa que está na base da intervenção moral no sistema penal (julgar os pensamentos ou a origem étnica e social das pessoas, por exemplo). 

Portanto, os aspectos mais salientes da cultura jurídica ibero-americana no que concerne a punição são: inquisitorialidade, dogmatismo legal, processo de desqualificação jurídica do réu e, finalmente, foro privilegiado (já que o sistema penal assenta-se no princípio da diferenciação penal). 

E aqui, destacamos a tendência exterminadora deste sistema penal que vige poderoso no mundo ibero-americano, através da autorização do emprego da tortura, cuja base no mundo da cristandade ocidental, latina (como acima descrita). Sobretudo, esta tendência está na introdução da confissão auricular e na adoção da confissão como prova de cometimento de crime. Vale lembrar, contrastivamente, que no mundo anglo-saxão (origem da cristandade da reforma religiosa de corte calvinista-luterana) a confissão (que fora introduzida pela reforma gregoriana do século XIII) fora abolida desde o século XVI e não vale como prova de crime; só valem as provas materiais. 

Cabe ressaltar, ainda, que o pressuposto penal do Tribunal Penal deveria estar referido ao enquadramento mais abrangente da concepção jurídica dos direitos à vida e sua proteção. Somente nesta perspectiva, seria possível imaginar um tribunal penal sul-americano. Antes de pensar em estabelecer bases políticas e jurídicas para a penalização de crimes internacionais na região (tráfico de armas e drogas, crimes econômicos, etc.), os direitos humanos e os crimes contra a humanidade (como aqueles atribuídos ao general Augusto Pinochet), deveriam ser julgados num Tribunal Penal Internacional Sul-Americano. Os grupos de direitos humanos e as forças do campo democrático na região deveriam atentar para a importância da iniciativa. Com certeza, qualquer ingerência de fora da região para reprimir, investigar e punir outros crimes internacionais (o tráfico de drogas, por exemplo) que ocorresse sem que os crimes contra a humanidade estivessem na pauta de discussão e das práticas políticas do campo democrático, implicará, prospectivamente, intervenção imperialista (de novo!) na América do Sul.
 

A legitimação política, e ideológica do Tribunal Penal Internacional Sul-Americano deveria, portanto, se assentar em dois pilares: 1) na criminalização de procedimentos e ações contra a humanidade – os crimes contra a humanidade. Vale dizer, aquelas práticas, de indivíduos, de instituições e de governos (os indivíduos que respondem pelos governos e pelas instituições na comunidade política internacional), que ferem direitos de segmentos e setores vulneráveis da sociedade humana. 2) Através da denúncia pública no foro internacional da opressão penal, levada a cabo por políticas autoritárias de caráter punitivo, exclusivamente da pobreza. Portanto, só há sentido em se falar em penalização, a partir de uma concepção garantista, e não repressora e punitiva, do direito penal (BATISTA & ZAFFARONI, 2003). 

Defendemos, portanto, que na luta pelos direitos e contra a impunidade na América do Sul, precisamos conhecer profundamente as matrizes da cultura jurídica que dá suporte ideológico e afetivo à impunidade, e à diferenciação penal que permite a desqualificação jurídica dos réus, mormente quando oriundos das classes subalternas.



 

 

NOTAS

[1] Este texto vincula-se a projeto de pesquisa (CNPq), intitulado “Religião, Punição e Impunidade: raízes teóricas da formação doutrinal do iluminismo penal”, desenvolvido junto ao Laboratório Cidade e Poder da UFF.

[2] “Universal” no sentido de católico, dado à cristandade ocidental e seu processo de legitimação do processo de evangelização, desde a afirmação política do Papado Romano.

[3]   Sobre o processo de circulação de idéias e apropriação cultural, ver de Gizlene Neder & Gisálio Cerqueira Filho (NEDER & CERQUEIRA FILHO, 2001) texto intitulado “Os filhos da lei”, onde trabalhamos a afirmação do ideário do iluminismo jurídico para o direito de família nas duas margens do Atlântico.

[4] A referência inscreve-se nos esforços de organização dos trabalhadores no plano internacional, iniciados em Londres(1864), com a criação da Associação Internacional dos Trabalhadores.

[5] A palavra fetiche (de origem francesa) é uma apropriação da portuguesa, feitiço (Legendre, 1983, N.T. p. 24).

[6] De fato, a Europa não constitui um continente, na definição geográfica stritu sensu; trata-se, pois, de uma unidade cultural (a da cristandade obediente ao papa de Roma).

[7] Ainda que estas informações vocalizem explicitamente interesses “romanistas”, portanto, ligados ao papado romano e à Universidade de Roma “La Sapienza”, e, evidentemente, empenhados na difusão ideológica das maravilhas e universalismo do “direito romano” -canônico(!) - não se pode deixar de considerar esta possibilidade, se pretende-se pensar as condições histórica para a criação do Tribunal Penal Internacional. Gianni Vattimo,  também vocalizando tais interesses, oferece um caminho para o universalismo cristão. Sugere que se expurguem os aspectos imperialistas, emprestados culturalmente da herança política romana (do império), expressos na cultura ocidental pelas cruzadas (as antigas, do medievo, e as modernas, atualizadas na luta anti-terror) (VATTIMO, 2002). 

[8] Estamos tomando a expressão "perfomático" no sentido emprestado ao termo pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek (ZIZEK, 1988).

[9] O texto do antropólogo francês Georges Balandier, “O Poder em Cena”, embasa estas colocações (BALANDIER, 1982).

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

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RESUMO: O propósito do artigo  é refletir sobre as possibilidades da criação de um tribunal penal internacional em termos regionais, envolvendo os países da América do Sul, levando em conta a conjuntura política e histórica da contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE: Crimes contra a humanidade, Tribunal Internacional Penal, Direito Internacional, Am’rica do Sul e Globalização.

* A autora é Professora do Departamento de História da UFF

            gizlene@superig.com.br

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