TOTALITARISMO,
SOCIALISMO BUROCRÁTICO OU DOGMÁTICO?
Resumo:
O artigo
coloca em evidência usos e abusos do conceito de totalitarismo e reflete sobre as limitações da noção de socialismo burocrático para tipificar o
regime político da antiga URSS.
Palavras-chaves: totalitarismo, lei de ferro da oligarquia,
socialismo burocrático, socialismo dogmático.
Assim como
a noção de totalitarismo não conseguiu,
até agora, desprender-se do formalismo, por um lado, e do feeling ideológico liberalista, por outro, de modo análogo, a expressão
socialismo burocrático – hoje usual
no vocabulário de especialistas – também parece precária, presumindo-se que
siga ela na mesma esteira do enfoque teórico liberal.
Na verdade, a noção de socialismo burocrático (que se supõe
ter sido cunhada por Trotsky) foi incorporada pela esquerda intelectual
francesa nos anos 60, desencantada com o socialismo real experimentado na URSS
e nos países do leste europeu. As revelações sobre a era stalinista, o
esmagamento da rebelião húngara em 1956 e a intervenção soviética na
Tcheco-Eslováquia, em 1969, transtornaram a esquerda européia. Esta se afastara
cada vez mais do comunismo ortodoxo, porém, conservava o sentimento de que o
socialismo ainda se constituía numa promessa de realização dos ideais de
justiça social e de humanização como alternativa ao capitalismo. Em suma, a
nova esquerda fustigava a URSS e o partido comunista como continuadores de um
stalinismo sem Stalin, porém, não rompia em definitivo com o marxismo, presumindo
salvar o ideal socialista – o socialismo com rosto humano – o que lhes parecia
ter sido completamente comprovado pelas perversões da experiência soviética.
Esta bem podia ser considerada como uma falsificação contraposta ao ideal
socialista, do verdadeiro socialismo
com face humana.
Mas falar em socialismo burocrático pode parecer
tecnicamente inadequado, senão redundante, pelo menos, de um certo ponto de
vista da sociologia política. Foi Max Weber (1979) quem primeiro vislumbrou o
socialismo vinculado à fatalidade burocrática do Estado moderno. Julgava Weber
que o socialismo, para realizar seu projeto de justiça social igualitária,
teria de reforçar e ampliar os componentes organizacionais típicos do Estado
moderno: mecanismos administrativos de controle, de previsão e cálculo da
produção, distribuição e consumo dos bens econômicos. Isto implicaria em novas
formas de regulamentação das atividades produtivas, do trabalho, da
propriedade, quer dizer, planejamento estatal centralizado.
Dentro dos quadros e do sentido cada vez mais racionalizador
da sociedade industrial moderna, o socialismo, então, iria exigir uma necessária
expansão da burocratização das atividades sociais tout court. O antídoto proposto por autores marxistas que assimilaram
a crítica weberiana (o próprio Lenin, inclusive) estaria em manter o partido
comunista (revolucionário) desvinculado
do aparato estatal, mantendo-se como o instrumento revolucionário
de crítica das massas na luta vigilante contra as tendências
burocratizantes da máquina estatal. Mas, ironicamente, um discípulo
de Weber que militava na social-democracia alemã, Robert Michels, escrevia
um ensaio que se tornaria um clássico na sociologia dos partidos políticos.
Michels tomou como seu objeto de estudo o mais vigoroso dos partidos
socialistas europeus: a social-democracia alemã do início do século. Seu estudo
concluía que a burocracia era uma fatalidade das organizações modernas e que
nem mesmo um partido socialista de massas conseguia escapar ao que ele denominou
de “lei de ferro das oligarquias”
(1970). No modelo leninista do partido como vanguarda revolucionária das massas,
de que meios efetivos estas poderiam dispor para exercer algum controle sobre
as decisões do partido, conjurando, em tempo, aquela “maldição” predita por
Michels a toda organização moderna?
Todavia, a expressão “socialismo burocrático”, permaneceu ao
que parece restrita nos meios da esquerda trotskista até os anos 50, para
designar e qualificar o sistema soviético implementado por Stalin. Para Trotsky,
a revolução proletária permanente deveria ultrapassar os limites da ordem
mundial capitalista dividida em estados nacionais. A luta de classes em escala
mundial promovendo um completo triunfo da revolução comunista liquidaria de um
só golpe as estruturas burocratizantes e opressivas próprias do moderno estado
burguês; que sustentam a racionalidade capitalista da produção de mercadorias
e, em conseqüência, a exploração do proletariado em nível mundial.
Mas o fracasso da revolução bolchevique levada além das fronteiras
da Rússia, como por exemplo, na Alemanha, na Polônia e na Hungria, nos anos
20, levou o partido bolchevique liderado por Lenin, a concentrar sua estratégia
na consolidação do socialismo na Rússia, no enfrentamento da guerra civil,
da intervenção e das ameaças de cerco das potências capitalistas. O leninismo
promovia, assim, a ditadura do proletariado sob a direção única e centralizada
do partido bolchevique. O que nas condições extremas da Rússia do pós-guerra
consistia em promover a industrialização e acelerar a produção agrícola;
quer dizer, modernização rápida. Sintomaticamente, Lenin definia então o socialismo,
na etapa da ditadura do proletariado, como “eletrificação + poder soviético”.
Suprimida qualquer forma de oposição aos métodos bolcheviques, particularmente
após o esmagamento dos sovietes rebelados em Kronsdadt, em 1921, o partido e o Estado se fundem controlando todas
es atividades sociais. Simultaneamente, o partido e sua direção definem e
traçam as diretrizes e metas a serem rigorosamente cumpridas, nomeando todos
os cargos de direção das empresas, os quais ficam responsáveis perante a comissão
executiva do partido pelo cumprimento de suas tarefas. O não cumprimento das
diretrizes e metas, qualquer que seja o motivo, é interpretado, em tais circunstâncias,
como “sabotagem”, “traição” ou “conspiração”. Essa direção hiper-centralizada
da ditadura do proletariado no estado-partido bolchevique e sua ideologia
se constitui no modelo de construção do socialismo inaugurado por Lenin e
que Alfred Stepan chama de “socialismo
de comando” (1980).
Sob Stalin, o socialismo de comando leninista amplia e
consolida as estruturas do Estado Soviético e do partido, no sentido da
burocratização, estimulada, em parte, pela planificação. A industrialização
acelerada, a coletivização forçada e massiva das terras agrícolas e as
circunstâncias da 2a guerra nos anos 30 e 40 ampliaram, ainda mais,
o perfil burocrático do regime soviético[1].
Contudo, há que se considerar que o burocratismo já previsto
por Weber como uma característica intrínseca ao próprio socialismo nas
condições da racionalidade moderna, assume uma configuração específica no caso
da URSS e dos países do leste europeu,
porque ela se identifica com uma
concepção doutrinária monolítica com forte conotação profetista e messiânica,
que se auto-denomina como “científica” e que se afirma como única e verdadeira
intérprete de um sentido pré-determinado e fatal da História. Essa doutrina
que, a partir dos anos 30 passou a ser adotada não só na URSS mas em todos os
partidos comunistas se constituiu no
marxismo-leninismo. Ela definiu, doravante, a postulação das orientações
teórico-práticas do socialismo real e dos partidos comunistas filiados ao Komintern por um sentido dogmático.
Assim, o dogmatismo doutrinário cristalizado no período stalinista
não só definia o modelo tido como verdadeiro para uma autêntica construção
socialista – armado com a “ciência do marxismo-leninismo” – como recusava
toda e qualquer divergência, qualquer mínima oposição à direção executiva
do partido, logo considerada como “direitista”, “revisionista”, “anti-partido”,
etc.
Essa postulação doutrinária dogmática do marxismo-leninismo
condicionou a interpretação teórico-prática do que seria a ditadura do proletariado
e determinou ideologicamente e politicamente a construção do socialismo real,
tanto na URSS quanto nos países do leste europeu. Nesses regimes, as estruturas
sociais e estatais moveram-se sob forte coerção ideológica e política no sentido
da máxima homogeneização social, pela mobilização continuada e intensa dos
quadros do partido e das organizações de massa, visando a uma totalização
socialista absoluta. Todavia, o que se produziu foi um sistema de totalização
dogmática, desde que Lenin já havia descartado que nenhuma instância de subsidiariedade (indivíduo, família, associação civil ou religiosa,
propriedade, etc.) poderia ser reconhecida de pleno direito e, portanto, considerada,
enquanto a ditadura do proletariado não tivesse completado plenamente a transição
para uma sociedade integralmente socialista. O dogmatismo erigido assim à
condição de “linha correta” do partido-estado, bloqueou e anulou qualquer
outra possibilidade de um experimento socialista mais orgânico e menos sectário
e coercitivo.
Socialismo burocrático, se nos situarmos na perspectiva weberiana
soa, assim, como uma redundância, não definindo, a rigor, o que há de específico
no socialismo real e no tipo de totalização que ensejou promover. Neste caso,
estamos procurando interpelar a essência mesma deste sistema e recusando uma
interpretação que pretende defini-lo apenas por uma de suas variáveis. Pois
a organização burocrática ainda que assuma no socialismo real dimensões mais
abrangentes, não parece ser suficiente para uma caracterização que possa dar
conta do sentido mesmo daquela experiência histórica além da superfície.
Se as grandes burocracias são fruto da racionalidade moderna
e próprias das estruturas do Estado moderno qualquer que seja o modo de
produção, quer capitalista quer socialista, isto é, quer sustentando a
propriedade privada quer promovendo a propriedade coletiva dos meios de
produção, o elemento “burocrático” não
se mostra suficiente para, por si só, revelar a natureza particular dos regimes
que prevaleceram no leste europeu até a queda do muro de Berlim. O burocratismo
é parte importante do socialismo real, mas não o define em sua natureza
ontológica.
Desse modo, pode-se sugerir que as análises interpretativas
da história mais recente da URSS e dos países do leste europeu revelem sinais
que apontam para contradições culturais, étnicas, religiosas e sociais que
prevaleceram no contexto desses países, malgrado todo esforço coercitivo
daqueles regimes em alcançar uma última síntese histórica, isto é, por meio de
uma totalização forçada e não espontânea. Por outro lado, por paradoxal que
possa parecer, a debilidade orgânica do socialismo real – revelada pela rápida
implosão daqueles regimes – parece demonstrar quão frouxos eram os laços de
lealdade para com o sistema, apesar da propalada “consciência socialista”. Por
que então não se falar mais adequadamente em socialismo dogmático, ao invés de burocrático?
Esses sinais parecem, portanto, sugerir que as análises
voltadas para uma interpretação dos regimes socialistas que prevaleceram no
leste europeu devem orientar-se mais para o campo cultural e intelectual se
pretenderem desvendar as características próprias que imprimiram ao ideal
socialista e ao marxismo revolucionário a configuração particularmente
“totalitária” e dogmática que assumiram.
Neste ponto merece destaque as reflexões que o historiador
ítalo-francês Giogio Locchi (1990) propõe no campo da história das idéias e da
filosofia política, assumindo uma postura nitidamente crítica com relação ao
uso que se tem feito da palavra “totalitarismo” elevada ao nível de categoria
analítica, porém com fins puramente ideológicos que não se deixam ocultar.
Locchi, que tem feito estudos interessantes sobre o fascismo
de um ponto de vista da filosofia política e da filosofia da cultura, mas
abarcando o vasto campo da história da cultura do Ocidente, sustenta que o
problema do chamado “totalitarismo” remete
a uma questão fundamental da filosofia política. A rigor, Locchi considera
que toda sociedade (ou mais exatamente, comunidade) aspira, quando quer integridade
e sanidade, por ser totalitária.
Trata-se aqui de uma aspiração por homogeneidade, no sentido de que se admite
um só “discurso”, o que é inspirado pelo princípio
que informa e conforma a comunidade e que, por sua vez, venha constituir
o “vínculo comunitário”, preservando sua integridade. Nesse sentido, não faltariam,
segundo Locchi, exemplos históricos a enumerar:
“Asi la ecumene católica no admite más que el discurso
cristiano en el catolicismo y hoy los sistemas democráticos, tras el período
de crisis e de confusion de ideas de la primeira postguerra, no admiten –
como es lógico, por outra parte- más que el ‘discurso democrático’ y prohiben
terminantemente el ‘discurso fascista’, que esta inspirado en un ‘princípio’
oposto.” (Locchi, 1990, p. 38).
Todavia, Locchi sustenta que autores liberais têm insistido
na similitude da estrutura política “totalitária” imposta por regimes fascistas
e comunistas, e comodamente, cunharam a expressão genérica “totalitarismo” que
se presta para igualizar esses dois regimes, ocultando o que há de substancial
diferença no modo de organizarem a vida social e no sentido que, em última
instância, imprimem a existência. O termo, viciado na origem, serviria apenas
como arma de combate ideológico, sem conter qualquer validade científica. Não
descarta, contudo, a validade cognitiva de categorias como “totalitário”,
“totalitária” (particularmente no caso do Fascismo) para identificar uma
concepção e uma prática no sentido de totalizar
as relações humanas em seu conjunto.
Neste debate teórico sobre a pertinência de tais categorias
na análise de conjunturas histórico-concretas devemos lembrar que a perspectiva
liberal, desde sua mais genuína metafísica, jamais considerou a noção de totalidade social, razão pela qual, o modo
como exerce o atual monopólio do discurso da “democracia” esclarece, como
contraposto, a lógica do discurso do “totalitarismo” e os limites de sua serventia
na era da globalização.
Em suma, é a lógica da anti-política, da “negatividade”, que
afirma como único “positivo” o discurso
liberalista-parlamentar da democracia.
Bibliografia:
LOCCHI, Giorgio. La esencia del fascismo. Buenos Aires: Ed. Tizona, 1990.
MICHELS, Robert. Os partidos políticos. São Paulo:
Editora Senzala, 1970.
STEPAN, Alfred. Estado corporativo e autoritarismo. Rio
de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1980.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1979.
* O autor é professor do Departamento de
Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
[1] Numa
versão paretiana da substituição de “elites no poder, uma elite revolucionária
deu lugar a uma nova elite de técnicos e burocratas destinada a pôr em execução
as tarefas dos planos qüinqüenais; o que seria brutalmente ensejado pelos
expurgos de 1934 e 1938”.